sábado, 30 de maio de 2015

Os jovens precisam ser salvos?


De quando em vez deparo com exclamações como “essa juventude está perdida!”, “não leem mais!”, “perdem tempo jogando videogames!”. A lista é longa, e enfadonha, sempre há algum reformista – alguns mais sérios outros mais caricatos – com a excelente intenção de salvar a juventude, mas de quem?

Eu mesmo cresci jogando videogames, e os considero uma narrativa tão ou mais válida quanto um romance ou um filme, passei momentos memoráveis jogando Zelda, ou Breath of Fire, que ajudaram a construir o meu caráter e o meu amor por boas histórias. Quando eu era bem mais jovem, a televisão era a grande vilã, hoje é a internet, quem será o vilão de amanhã? É comum lamentar pelo fato dessas “crianças de hoje” não terem infância, bem, aqui vai uma novidade, elas têm sim! O fato de não ser a infância dos “bons e velhos tempos” não quer dizer que seja melhor ou pior, é diferente.

Deixe eu lhes dar um exemplo, outro dia, estava em uma padaria com meu amigo Filipe Jesuíno e meu filho Ícaro, de dez anos. Eu e o Filipe conversávamos sobre modelos de sociedade, e eu falava sobre o neo-liberalismo em sua versão mais radical de anarco-capitalismo, com ausência de estado e o mundo controlado por corporações, após eu explicar um pouco, meu filho atalhou “isso não é bom não, é igual ao mundo de Bioshock, lá é assim o mundo é comandado por corporações e igrejas e é bem ruim”. A visão de mundo do meu filho pequeno era um pouco mais ampla graças a narrativa de um jogo de videogame – por sinal um jogo com uma história fenomenal – eu espero que ele um dia leia Um Conto de Duas Cidades, ou 1984, mas o jogo já cumpriu um papel importante, e não alienante como se pensa. Por sinal, ler e jogar não são mutuamente excludentes, ao contrário, o mesmo impulso humano básico do brincar, do lúdico está presente nas duas atividades, bem como o uso da imaginação e a narração de boas histórias.

Se é que os jovens precisam ser salvos de alguém, não é deles mesmos, mas de nós, velhos. Independente de nossas aspirações passadistas, de nossos anseios pelo que se foi, as coisas mudam. Como historiador não posso deixar de enxergar com um olhar de crítica para esse tipo de memória. A memória é um território repleto de armadilhas e descaminhos, o que retorna não é o que foi, mas o que imaginamos que foi, o passado, res gestae, está para sempre perdido. Não é debalde que a história é “imaginação sobre aquilo que já foi imaginado”. Nossas memórias são reconstruções daquilo que se passou, que retornam para nos alegrar ou nos assombrar, mas elas existem em relação com o presente, com quem somos hoje, não são nem podem ser absolutas. Como historiador, me interessa o dia de hoje o presente, e ele pertence aos jovens.

Então, aos outros velhotes como eu, olhemos com dignidade e atenção para o dia de hoje, não viremos as costas ao presente em busca da fantasia do paraíso perdido, afinal, mesmo que tenha existido, ele foi perdido! Sempre que nos debruçarmos sobre a Atlântida afundada nas profundezas do mar, mesmo com sua sociedade maravilhosa, sejamos lúcidos, essas águas em que suas ruínas repousam são as águas turvas de nossa própria alma, é ali que ela se esconde com todas as suas maravilhas. Deixem os jovens em paz, deixem que eles construam suas próprias lembranças. Penso até, que são eles que podem nos salvar e não o contrário.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O Chiste da República


As imagens tragicômicas dos deputados assistindo a um vídeo pornográfico durante a sessão que discutia a reforma política de Eduardo Cunha (essa sim sacanagem das brabas) é um detalhe, mas um detalhe revelador, como o chiste que, por um instante, coloca a descoberto aquilo que estava nas sombras, um não dito que rasga os véus de hipocrisia consciente. Não pretendo enveredar pelo mesmo falso moralismo que fez a fama de muito desses senhores, paladinos da família e dos bons costumes, não tenho nada contra – ao menos em princípio – que se veja isso ou aquilo na internet dentre dos limites da lei e do desejo de cada um, mas me incomodo o farisaísmo.

Temos hoje o mais conservador congresso desde a nossa redemocratização, nossa jovem república passa por momentos surreais com figuras do quilate de Cunha, Calheiros e Bolsonaro saindo das sombras do congresso e agindo em plena luz do dia, alterando a constituição para tornar a picaretagem legal, pregando abertamente o racismo e a homofobia, sendo machistas sem nenhum pudor ou vergonha. Esses mesmos defensores da família, igreja e propriedade, assistem as escondidas filmes pornográficos. É assim que sempre foi, desde a época dos grandes cafeicultores paulistas que aprisionavam suas filhas e exigiam de todos decoro e pudor, mas frequentavam bordeis luxuosos as escondidas. 

Do velho slogan igreja, família e propriedade, o único realmente levado a sério, de maneira quase religiosa é a propriedade, os dois outros mais servem para justificar a opressão e o controle sobre os subalternos, sobre os outros, bem como para lhes dar justificativas morais tacanhas para serem os piores seres humanos possíveis, afinal, está lá em Levítico, deus abomina os homossexuais e isso é absoluto – não cortar barba e o cabelo é relativo, pois melhor convém – fazendo o oposto do que é a essência do cristianismo, que ordena que se ame ao próximo e deixe o julgamento ao altíssimo, ao invés de cristão, viram caricaturas grotescas de judeus do antigo testamento.

Aos hipócritas se unem sempre os fanáticos de ocasião, que amam odiar, e não precisam de meia desculpa para vomitar sua raiva sobre tudo e todos. Eu mesmo não duvido que logo algum pastor via jogar a culpa sobre as garotas dos vídeos, elas é que são culpadas por tentar os homens de bens, não eles, sucubi tentadoras a testar de maneira demoníaca a fé – essa é uma desculpa velha, mas muito boa, afinal mulher, ainda mais se for puta é culpada de tudo mesmo, desde Eva – Nossa hipocrisia secular é posta a descoberto pela banalidade de um vídeo repassado pelo Whats Up (zap zap), coloca-se as claras aquilo que usualmente tentamos esconder de nós mesmos com aquilo que Jung chamou de inconsciência artificial, preferimos não saber. Preferimos não saber que quase todo mundo fuma maconha e cheira pó, mas só os pretos pobres sentem o peso da força policial; preferimos não saber que uma parcela enorme dos homens já esteve com um travesti, mas apenas os travestis recebem a conta altíssima da homofobia; preferimos não saber que quase a totalidade dos homens casados traem ou frequentam prostíbulos (o que dá na mesma), mas só quem sofre com tudo isso são as putas e não os honrados pais de família.

Nossa cegueira moral nos levará ao abismo, enquanto formos uma república de hipócritas raivosos espumando de ódio. Nossa cegueira nos destruirá, pois como Jung gostava de repetir, citando um ditado árabe “a ignorância é vizinha da maldade”.