Imaginem
a seguinte conversa hipotética:
–
Você é a favor da marcha da maconha?
–
Não, sou contra. Aqueles caras são uns idiotas de fazerem uma marcha tão
estúpida.
O
seguinte diálogo hipotético:
–
Você concorda com a marcha da maconha?
–
Lógico! Infelizmente um monte de gente idiota discorda e não percebe que a
guerra às drogas causa um genocídio entre os pobres e negros jovens da
periferia. O mundo ficaria melhor sem essas pessoas que reclamam da marcha.
Os
dois diálogos são bastante verossímeis, a despeito de eu pessoalmente nunca ter
presenciado nenhum debate sobre esse tema, seja real ou virtual, o ponto aqui,
compreendam, não é a marcha da maconha. O ponto, senhores, é que é possível
discordar de coisas perfeitamente válidas e lógicas com argumentos igualmente
válidos e lógicos e, pasmem, é possível respeitar o ponto de vista das outras
pessoas.
Como
Jung disse certa vez, verdades são coisas raras e preciosas e qualquer
pedacinho de verdade que as pessoas creem possuir elas o defendem com unhas e
dentes. Acontece que há uma incompreensão terrível de que por eu ter bons
argumentos, ou mesmo, simplesmente por não simpatizar com uma ideia, ela é
necessariamente errada, ou pior, quem a professa é um idiota.
A
desconsideração do interlocutor, mesmo que por essa lógica enviesada “eu não
concordo com uma ideia, essa ideia é ruim, se alguém concorda é ruim ou burro”,
é uma falácia. Chama-se Ad Hominem, mas aqui temos uma versão bem
interessante desse fenômeno, pois não se trata de uma jogada pensada para
desestabilizar o debate e vencer um oponente por meio de retórica, como
explicou Schopenhauer, trata-se de algo bem mais irrefletido.
Há
uma incompreensão, que se baseia numa larga dose de inconsciência, de que não é
possível ter opiniões divergentes, e que há única explicação é a má fé ou a
burrice. Certas ideias são extremamente fascinantes, ideias parecem e podem ter
vida própria em nossa alma, mais ainda, nossa visão de mundo em larga medida
não é simplesmente a maneira como vemos o mundo, para nós, que vivemos
prisioneiros de nossas almas – o grande prisma que traduz para nós o mundo “material”
em imagens – ela é o mundo. Logo a
maneira como o encaramos é crucial, pois, novamente recorrendo a Jung, em
determinadas condições, que se baseiam na inconsciência, o mundo pode se tornar
uma imagem subjetiva porém desconhecida. Essa imagem possui uma força
coercitiva imensa e uma autonomia maquiavélica e se impõem como verdade, possui
algo de universal e me impede de reconhecer a minha própria individualidade e,
sem isso, não sou capaz de reconhecer e nem de admitir a individualidade de
outrem.
Em
termos meramente lógicos, muitas ideias podem ser defendidas ou atacadas
indefinidamente. Um dos grandes méritos de Kant foi mostrar que os grandes
debates metafísicos eram debalde justamente porque se podia tanto provar quanto
mostrar a falsidade deles de maneira lógica (como, por exemplo, a existência de
Deus). A lógica nos prendia numa armadilha sem saída, um debate infindável e
que não apresentava esperança de progresso.
O
que algumas vezes é impossível de se perceber é que pessoas diferentes, por
motivos justos e lógicos, podem discordar de você. Existem muitas dificuldades
em ser capaz de perceber isso. Se eu não sou capaz de ver a trave no meu olho,
para usar a expressão das escrituras, eu vou ver essa trave apenas no cisco do
olho do meu irmão, e julgar sempre e sempre, que o problema é dele e não meu. Quando
somos inconscientes de nossa individualidade, nos tornamos presas de afetos e
paixões inauditas, desejos quiméricos e preconceitos afetivos sem nem mesmo nos
darmos conta de que estamos sob o encanto dessas coisas. Em termos práticos é
ainda mais difícil, pois a maioria de nós está enfeitiçada e sabemos apontar o
dedo direitinho para as outras pessoas que também estão amaldiçoadas por esse
encanto terrível. A maioria das pessoas que discorda de nós não possui bons
argumentos, mas, ao contrário, é possuída por esses argumentos e os defende com
fanatismo religioso, ansiosas para nos convencer para assim aplacar sua secreta
dúvida interior, e, como bem sabemos, nenhum diálogo racional pode subsistir
quando se eleva a temperatura dos afetos e tudo caí a um nível lamentável.
Sendo assim, é fácil encontrar idiotas rematados em ambos os lados da contenda
e, mesmo pessoas inteligentes – “o dom da razão e da reflexão crítica não
constitui uma propriedade incondicional do homem” – podem agir como idiotas
quando esses afetos se inflamam.
Fundamentalmente,
quando possuímos o precioso e fugaz dom da reflexão crítica, não é a lógica que
é decisiva para a nossa escolha, mas um julgamento de valor que é altamente
subjetivo, dificilmente pode ser universalizado, que decido por que vereda do
pensamento racional eu vou seguir. James, em sua maravilhosa filosofia pragmática,
afirmou logo no início do seu livro Pragmatism
algo de um brilhantismo irretocável, que a história da filosofia era, em larga
medida, a história do choque de temperamentos. Para qualquer filósofo, o seu
temperamento desempenha um papel reduzido em suas articulações teóricas e busca
por argumentos objetivos, todavia, o temperamento oferece ao filósofo o seu
mais poderoso e mais inconfessável argumento, “aí emerge uma certa insinceridade
em nossas discussões filosóficas. A mais potente de todas as nossas premissas
nunca é mencionada” (eu traduzo). Fundamentalmente, nos filiamos a uma corrente
de pensamento, ou ideologia, de acordo com o nosso temperamento sentimos que um
dos lados da questão está correto e o outro errado.
Jung
asseverou que, se fizermos como James acusa os filósofos de fazerem, ocultar
seus temperamentos, se colocar numa posição impossível de objetividade, nosso
temperamento, nossa personalidade vai aparecer de maneira insidiosa. Mas para
anunciarmos uma verdade – não a
verdade – é preciso que tenhamos sentido em nós o problema que se afigura a
coletividade e isso garante a possibilidade de afirmar algo válido. Lacan,
tempos depois ao pensar sobre o discurso científico, asseverou algo similar.
Assim,
se formos capazes de nos darmos conta de nossa individualidade, o que ocorre,
paradoxalmente, ao percebermos o quanto somos coletivos, o quanto carregamos
em nós de nossa família, professores, e daquilo que são os grandes símbolos de
nossa sociedade, seremos capazes de reconhecer o outro como diferente de nós. Sem
isso o que vemos é sempre um espelho distorcido de nós mesmos e da validade
universal de nossas premissas inconscientes. Jung, que era leitor de James, foi
ainda mais longe ao propor dois tipos fundamentais: a extroversão e a
introversão. Um se orienta pelo objeto e o outro pelo sujeito, o que é valor
para um é desvalor para o outro. Falta-nos, como sociedade, começarmos a nos
dar conta disso.
O
fenômeno das pessoas no Sul, acusando os nordestinos de serem burros,
ignorantes, ou “comprados” com o bolsa família é um exemplo desse fenômeno que
aqui tento descrever (o reverso desse discurso é igualmente um exemplo da
mesmíssima inconsciência), a não percepção da existência de diferentes
interesses, diferentes visões de mundo, igualmente válidas. Não bastasse isso,
estamos ainda mesmerizados pela possibilidade de gritar a plenos pulmões nas
redes sociais e sermos ouvidos por dezenas ou centenas de pessoas, privilégio
antes reservado a poucos. Antes nossa mesquinharia e estupidez estava reservada
apenas aos nossos familiares, vizinhos e nosso círculo mais próximo, agora
podemos compartilhá-la, esquecendo que se trata de opinião e, mesmo uma opinião
válida e bem fundamentada, não é A Verdade. Mas o reverso disso é que também
podemos compartilhar aquilo que somos em nível mais profundo, a nossa
experiência única e irrepetível de ser e estar no mundo. Podemos participar da
aventura de nosso tempo como nunca antes, porém, se permanecermos a atacar
quimeras e a nos batermos sempre e sempre com nossos próprios fantasmas e
demônios essa aventura nos escapará, e em seu lugar ficará um amargo
ressentimento com o mundo que parece não enxergar a obviedade das nossas
verdades.