Will Grahan é o protagonista do romance Red Dragon, de autoria Thomas Harris, e,
mais recentemente, um dos protagonistas do seriado Hannibal, e é justamento o
Will do seriado (não suas encarnações literárias ou cinematográficas) que me
leva a deitar a pena ao papel.
A personagem é um consultor do FBI que faz perfis
psicológicos com uma notável habilidade, pois pode com facilidade se colocar na
pele dos perpetradores. Utilizando a própria linguagem do seriado, ele seria
portador de um raro “distúrbio de empatia”, assim, com essa capacidade, e o uso
da imaginação (algo um tanto similar à imaginação ativa de Jung) ele consegue
“adivinhar” os pensamentos e intenções que se escondem por trás de uma cena de
crime, especialmente aquelas cometidas por psicopatas e assassinos seriais, que
além de um modus operandi, possuem uma “assinatura”, ou seja, realizam de maneira
mais ou menos compulsória ações que identificam e individualizam seus crimes,
mas que não são necessárias para a consecução dos mesmos.
Meu intuito aqui é o de analisar justamente a
possibilidade de “recriar uma forma de vida alienígena”, o que tem sido um
debate importante no que concerne à hermenêutica e as ciências do espírito como
pensadas por Dilthey, e, a relação da empatia com essa possibilidade. A empatia
é um termo que é usado de maneira muito frouxa nos meios junguianos, a despeito
de se tratar de um conceito com uma delimitação teórica e epistêmica precisa,
normalmente, em virtude de uma vulgata humanista que se faz da obra de Jung e,
de uma corriqueira falta de rigor, esse termo é utilizado mais como chavão do
que como um conceito, e seu sentido é corriqueiramente haurido do senso comum,
o que serve para mistificar e obscurecer o fenômeno ao invés de esclarecê-lo.
Há que se notar que o referido seriado é extremamente sofisticado em termos
psicológicos e não duvido que seus roteiristas tenha feito uma pesquisa
considerável, especialmente no que concerne a análise individual, e não imputo
ao roteiro qualquer “erro” no que concerne ao uso do termo, todavia, ao
utilizá-lo e problematizá-lo aqui, ao invés do que é feito mais amiúde (mesmo
em círculos junguianos), utilizo no sentido proposto por Jung.
O que Will faz, ao reconstruir geneticamente a ideia
seminal do perpetrador dos crimes e que o permite compreender a cena do crime
como a composição para dar forma a essa ideia ou meditação da parte do
criminoso, é, justamente aquilo que Schleiermacher chamava de método
divinatório. Parto da analogia, que justificarei adiante com Dilthey, de que a
interpretação hermenêutica pode ser utilizada aqui, pois é justamente o modelo
da compreensão (Verstehen) que é o
processo de cognição próprio das ciências do espírito, não bastasse isso, a
discussão de Schleiermacher sobre a interpretação psicológica e os métodos
divinatórios e comparativos, possuem um inestimável valor heurístico para o
debate que proponho aqui, que seja: pode Will por um método divinatório chegar
a ideia que motiva o crime, tendo por uma base objetiva a “composição” da cena
crime?
Em termos de uma “hermenêutica da cena do crime” Will se
utiliza do método divinatório para ser capaz de reconstituir a individualidade
do perpetrador, chegando às ideias que são expressas, mas não imediatamente
evidentes (daí a necessidade de uma compreensão) na cena do crime. Como método,
ele imagina, se colocando na pele do criminoso e vendo através de seus olhos,
como o assassinato foi cometido e, por meio desse método ele descobre também o
porquê. Na linguagem dos personagens do seriado, ele se utiliza de empatia para
fazê-lo.
De acordo com Schleiermacher interpretar significa
descobrir os pensamentos por trás das expressões. A linguagem é o aspecto
comunitário do pensamento e existe uma conexão entre pensamento e linguagem, e,
o papel do interprete é o de descobrir a ideia do autor de um determinado
texto, seus pensamentos, que só se encontram acessíveis e exaustivamente
expressos por intermédio da linguagem escrita ou falada. A hermenêutica, na perspectiva
de Schleiermacher, como veremos, trata-se de uma arte, isso no sentido de que
existem regras metodológicas, mas sua aplicação não é confinada por regras, do
contrário seria um mero procedimento mecânico. O método utilizado por Will, que
é altamente intuitivo, também pode, em certo sentido ser aproximado mais a uma
arte do que a uma ciência em sentido estrito, ou, ao menos, a uma ciência ao
gosto anglo-saxão.
O mesmo Schleiermacher divide o trabalho da hermenêutica
filosófica universal em duas partes igualmente importantes: a interpretação
gramatical e a interpretação psicológica. Na alegoria do trabalho de Will como
um tipo de hermenêutica, vai nos interessar em especial a interpretação
psicológica, que interpreta o enunciado como “um fato dentro do pensador”. Esse
tipo de interpretação procura reconstruir os pensamentos do autor e a forma
como são expressos. Nesse sentido, o que se busca é revelar a individualidade
do autor. No círculo hermenêutico, considerado aparente por Schleiermacher, (a
parte só pode ser compreendida por meio do todo e o todo só pode ser
compreendido por intermédio das partes), existe uma interdependência entre o
autor e seu contexto histórico/cultural, e esse tipo de interpretação pressupõe
um conhecimento da época em que o autor vive e de sua biografia (no caso de
Will ele desconhece a vida do perpetrador dos crimes). Para realizar a interpretação psicológica
deve-se descobrir a ideia motivadora que deu ensejo ao texto (ideia seminal), e
a composição (o gênero, a escolha das palavras, as regras compartilhadas de
lógica, bem como todos os acolhimentos e exclusões realizados pelo autor) é
tida como a realização objetiva da obra. No caso de Will a composição é uma
junção do modus operandi com a assinatura do assassino. A maneira ou as maneiras
como ele deliberadamente ou inconscientemente deixou a cena do crime. O interprete precisa também compreender a
meditação do autor, a realização genética da obra, ou seja, como o autor
organiza seus pensamentos. Na perspectiva de Schleiermacher, o interprete pode,
a princípio, saber tanto quanto o autor sobre seu enunciado, mas seu real
objetivo ao interpretar é saber mais do que ele, pois o interprete pode
explicitar o que está inconsciente no processo criativo do autor. Interpretar
significa se colocar objetiva e subjetivamente na posição do autor, que, mutatis mutandis, é o que Will faz. Para nos colocarmos subjetivamente na
posição do autor precisamos nos libertar de nós mesmos.
Esse tipo de
interpretação se dá de duas maneiras: extensiva e intensiva. O talento
extensivo se dá pela capacidade ou habilidade de comparar diversos seres
humanos, e, com isso, reconstruir o modo de comportamento de outras pessoas, e
o intensivo trata de descobrir o significado individual de uma pessoa em relação
ao conceito de ser humano. Essa meta só pode ser alcançada por aproximação,
pois uma visão individual nunca se esgota e sempre pode ser corrigida. Os
métodos utilizados para essa tarefa, e que não podem ser separados entre si e
sempre remetem um ao outro são: o método divinatório e o método comparativo.
O método divinatório é aquele que, em se transformando, por assim dizer, no outro, procura compreender diretamente o singular. O comparativo estabelece primeiro como um universal aquilo que deve ser compreendido e identifica então o peculiar, ao ser comparado com outros sob o mesmo universal concebido. Aquele é a força feminina no conhecimento do ser humano, este a masculina. (Schleiermacher, p.200).
Percebe-se com clareza que o método de Will é um método divinatório, esses dois métodos
referem-se um ao outro, pois o divinatório se dá por comparação consigo mesmo,
pois Schleiermacher supõe uma natureza humana comum, ou, para utilizar as
palavras do próprio autor, o método divinatório se assenta sobre o fato de cada
ser humano ter uma predisposição para todos os outros. Essa suposição de uma
natureza humana comum se dá em bases kantianas. Schleiermacher compreende a
linguagem como um conjunto de sinais criados pelos seres humanos por meio do
processo de esquematização da experiência, o que é uma ideia kantiana. O
conjunto de sensações que eu tenho de uma faca (para entrar no clima do
seriado) produz em meu espírito uma imagem dessa faca, por meio da imaginação
eu crio uma imagem geral indeterminada, um esquema, da faca em geral. Quando eu digo ou escrevo faca isso pode ser
compreendido, pois essa palavra está ligada na linguagem que compartilhamos a
esta imagem geral. Por mais que a linguagem não comunique perfeitamente, somos
capazes de estabelecer algum grau pragmático de comunicação e verdade, ou seja,
há efetivamente uma linguagem compartilhada (por mais que imperfeita),
pressupomos que as imagens gerais que temos são idênticas aos conceitos inatos,
além disso, esse processo de esquematização representa diferenças reais no ser
real, do contrário os conceitos não poderiam refletir a realidade. E, mesmo que
o processo de esquematização não seja exatamente o mesmo, existe um significado
compartilhado das palavras que é suficiente em termos práticas para descartar o
argumento cético. Todavia, a linguagem não é perfeita e não garante uma
identidade universal na construção do pensamento. Uma das principais
influências da obra de Schleiermacher sobre Dilthey foi justamente à percepção
dessa natureza humana comum que compartilhamos.
Os dois procedimentos, divinação e comparação, não podem
ser separados, tampouco existem regras de como e quando se passar de um para o
outro, entrando aqui o caráter de “arte” da interpretação.
Os dois procedimentos não podem ser separados entre si, pois, a divinação apenas obtém sua certeza mediante a comparação confirmadora, posto que sem esta ela sempre pode ser fantástica. O comparativo, entretanto, não confere nenhuma unidade. O universal e o particular precisam penetrar-se mutuamente, e isso acontece somente pela divinação. (Schleiermacher, p.203).
O aspecto fantástico do método adotado por Will o assombra
invariavelmente, e é explorado no seriado como um perigo constante de
alheamento da realidade, e, quanto mais se aprofunda na mente dos criminosos,
de loucura. Nesse ponto, a perspectiva hermenêutica do pai da hermenêutica
universal parece concordar com a exploração dramática da habilidade divinatória
de Will, visto essa ser uma comparação, fundamentalmente, consigo mesmo, ele
precisa encontrar em si as trevas que testemunha nos assassinos que investiga.
O objetivo do método investigativo de Will é o mesmo da hermenêutica universal,
ou seja, descobrir a individualidade do autor, sua decisão seminal, bem como o
significado, o valor dessa decisão para a vida do autor – no caso dele para
encarcerar o autor do crime. Ao invés de interpretar textos escritos, Will
interpreta cenas de crime de psicopatas. Pode parecer que se trata de uma
extrapolação injustificada comparar o método de Will a hermenêutica, mas há uma
justificativa para tal procedimento em Dilthey.
Parece-me, que o que Will faz com o seu método é muito
similar ao que Dilthey denominou de compreensão (Vestehen) em oposição à explicação causal (Erklären), segundo Schmidt, para Dilthey a hermenêutica é o modelo
para a compreensão, que é o modo particular de cognição que fundamenta
metodologicamente as ciências do espírito. No que concerne a Schleiermacher,
Dilthey compreende que sua hermenêutica consiste da fusão da teoria da produção
de Fichte e da teoria da reprodução de Schlegel. A primeira afirma que o eu
cria uma obra particular e a segunda que o intérprete precisa reproduzir o ato
de criação para poder compreender, a teoria de Schleiermacher que une as duas é
capaz de demonstrar que interpretações válidas são possíveis, e que a
compreensão é um processo de recriação do processo criativo. Para Dilthey, e
isso é justamente o que justifica a analogia entre a hermenêutica e o método de
Will de fazer perfis psicológicos, as regras de hermenêuticas para interpretar
textos são um caso específico do processo mais geral de compreensão. Além disso,
o intérprete e o autor compartilham uma natureza humana geral e graças a isso o
intérprete é capaz de recriar uma forma de vida alienígena.
(...) através da modificação imaginativa de seus próprios processos psíquicos (ou seja, mentais) e assim compreender a vida interior de outra pessoa (ou seja, o método divinatório). (Schmidt, 2012, p.54).
Will reconstrói por intermédio da imaginação e da
comparação consigo mesmo o processo criativo dos assassinos, ou seja, ele
reconstrói uma realidade espiritual. Essa realidade, de acordo com Dilthey é
descoberta em nós mesmos por introspecção, diferente da realidade externa
descortinada pela percepção, nesta é possível perceber claramente conexões
causais entre os fenômenos, mas, no exemplo de Will e seu método, ele não pode
estabelecer essas mesmas conexões causais de maneira direta entre os processos
mentais que ele descobre pro divinação e os fatos materiais observáveis (a cena
do crime), a pesar de se poder perceber correlações entre estados mentais e
fatos materiais, não se pode aplicar diretamente nenhuma conexão de causa e
efeito. Nesse caso, trata-se de compreensão e não explicação. Isso se dá, pois
os objetos das ciências naturais são apresentados empiricamente à consciência
pelos sentidos, enquanto os da ciência do espírito são um nexo experimentado de
dentro, uma realidade interna. O que Will faz é objetivar o aspecto subjetivo
dos perpetradores, seu processo criativo e suas intenções. Nas palavras do
próprio Dilthey, em seu A Hermenêutica e
o Estudo da História, citado por Schmidt,
(...) nós chamamos de compreensão o processo através do qual reconhecemos por trás de sinais dados aos nossos sentidos, aquela realidade psíquica que eles expressam.
De acordo com Dilthey, fundamentalmente só podemos
compreender a nós mesmos, entretanto as ciências humanas se baseiam em um nexo
de experiência vivida expressão e compreensão, sendo a própria vida uma
categoria importante para ele. Mesmo com essa explicação sucinta se percebe
claramente que há uma possibilidade de justificar teoricamente a capacidade de
Will de recriar uma forma de vida estranha a ele. A pergunta agora é saber se
isso se dá por empatia. Como afirmei
antes, não me interessa subescrever ou reprovar o uso do termo no seriado,
contudo a minha análise vai se pautar pela perspectiva de Jung. Não considero
ocioso, no entanto, fazer uma digressão sobre o significado e etimologia do
termo empatia e discorrer, mesmo que brevemente, sobre a história desse termo,
em que Dilthey desempenha um papel importante.
De acordo com a Stanford
Encyclopedia of Philosophy, o termo empatia (em inglês empathy) foi introduzido no vernáculo inglês pelo psicólogo Edward
Titchener (1867–1927) no ano de 1909 como uma tradução da palavra alemã Einfühlung, um termo que nos círculos
filosóficos germânicos do último quartel do século XIX era tido como importante
para a estética, mas, mesmo em língua alemã, o termo não possuía uma longa
tradição, sendo usado de maneira informal, especialmente por pensadores
românticos como um “sentir em”, como uma atitude de sentir a natureza ao invés
da atitude cientifica de apenas “dissecá-la”. Foi Robert Vischer o primeiro a
delimitar de maneira mais técnica o termo Einfühlung,
em sua forma substantivada ele indicava um objeto digno de uma análise
filosófica, como exposto em seu On the
Optical Sense of Form: A contribution to Aesthetics (1873). Foi Theodor
Lipps (1851–1914), todavia, quem examinou o termo de uma maneira mais rigorosa.
Ele não apenas argumentou que a empatia era um conceito central para nosso
entendimento filosófico e psicológico da estética, como também o transformou em
um conceito essencial na filosofia das ciências humanas, para além do escopo
mais limitado da estética. Para Lipps, a empatia além de seu papel desempenhado
em nossa apreciação estética dos objetos também devia ser compreendida como a
base primária para sermos capazes de nos reconhecermos como seres pensantes,
dotados de uma mente. Quando Titchener realizou a tradução do termo Einfühlung era a conceituação de Lipps
que ele tinha em mente. Ainda de acordo com Lipps, e aqui, estimado leitor, vem
um ponto importante para a nossa discussão, reconhecemos outro organismo como
algo possuidor de uma mente graças à empatia. Nesse contexto a empatia é
entendida como uma “imitação interior” em que a minha mente espelha a atividade
mental de outras pessoas baseada na observação de suas expressões corporais e
faciais. Em última instância, nessa perspectiva, a empatia tem sua base
fundamental na disposição inata para a mímica motora. A noção de empatia de
Lipps, entretanto, não se limita simplesmente ao reconhecimento de emoções por
meio de gestos e expressões faciais, ele também argumenta a respeito de uma
empatia intelectual, ele considera que nossa capacidade de reconhecimento de
qualquer atividade mental – seja ela qual for – repousa sobre a empatia ou uma
imitação interior.
A reivindicação de Lipps do lugar de centralidade
epistemológica da empatia como o modo primário de percebermos outras pessoas
como seres dotados de um espírito, uma mente, foi profundamente influente,
mesmo entre seus críticos, pois estava intimamente relacionada à crítica do que
era tido a época como a única alternativa para conceber um conhecimento da
mente de outras pessoas: a inferência por analogia de Mill. O pressuposto da
teoria de Mill era a concepção cartesiana de mente de acordo com a qual o
acesso a nossa própria mente é direto e infalível, entretanto o conhecimento de
outras mentes é indireto, inferencial e falível. Pode-se caracterizar a
inferência por analogia de acordo com os seguintes passos: 1 – outra pessoa X
manifesta o comportamento B; 2 – o meu próprio caso de comportamento B é causado
pelo estado mental M; 3 – como o aspecto exterior do meu comportamento de tipo
B é similar a da pessoa X, logo deve possuir causas mentais internas similares,
assim sendo, o comportamento de X é causado pelo estado mental M.
Lipps atacou o aspecto duplamente contraditório dessa
hipótese, todavia ele falhou em demonstrar epistemologicamente como a empatia
poderia nos facultar conhecimento de outra mente, além disso, não explicou
suficientemente como o “sentir em” não é mera projeção. Mais importante ainda,
Lipps não explicou suficientemente como a hipótese da empatia não se deparava
com as mesmas contradições por ele apontadas na hipótese de Mill, ou como somos
capazes de por meio da empatia conceber outras pessoas como tendo mentes
similares as nossas se somos familiarizados de maneira direta apenas com nossa
própria mente. O principal problema da argumentação de Lipps é que ele parte
dos mesmos pressupostos cartesianos e, em virtude disso, se expõe as mesmas
contradições de Mill.
No início do século XX a empatia compreendida como um
método não inferencial e não teórico de apreender o conteúdo de outras mentes
tornou-se intimamente associado ao conceito de compreensão (Vestehen), um conceito que foi defendido
pela tradição da hermenêutica filosófica preocupada em explicar os métodos
utilizados para apreender o sentido e o significado de textos, obras de arte, e
demais ações humanas. Eles insistiam que o método utilizado para se compreender
um texto, ou um evento histórico tinha que ser fundamentalmente diferente da
maneira de explicação dos eventos da ciência natural. Dois dos expoentes desse
debate sobre os métodos foram Droysen e Dilthey. Para o primeiro a história não
estava interessada em explicar, um procedimento derivado de uma forma de
argumento inferencial, mas sim em compreender. O segundo afirmou que “nós
explicamos a natureza, mas compreendemos a vida da alma”. A empatia não era
vista por esses autores como simplesmente como um ato de imitação mental, nem
em um ato de imaginação por meio do qual você se transporta para o ponto de
vista de outrem. Esse tipo de “interpretação psicológica” como Schleiermacher
costumava chamá-la era apenas uma parte do método de interpretação utilizado
pelos historiadores. Para Dilthey, todavia, apreender o significado cultural de
qualquer fato era fundamentalmente um ato mental de “transposição”. Compreender
de um texto, ou uma obra de arte, ou qualquer outro fato da cultura nos obriga
a relacioná-lo ao reino primário do significado, nossa própria vida mental
acessível por meio da introspecção. Dilthey nunca utilizou em seus escritos o
termo empatia, a despeito de sua noção de compreensão poder ser entendida como
uma forma de empatia. Não é de se espantar, portanto que em sua época o
conceito de compreensão e empatia fossem utilizados quase como sinônimos na
tentativa de delimitar uma fronteira entre os métodos das ciências do espírito
e das ciências da natureza.
Paradoxalmente, a identificação da empatia com a compreensão
juntamente com a reivindicação de que a empatia seria o único método válido
para as ciências humanas levou ao declínio do uso do conceito de empatia. Hodiernamente
a identificação entre empatia e Vestehen
é duramente criticada, a pesar da divisão entre as metodologias das ciências do
espírito e as ciências da natureza se manter como algo válido, e a compreensão
como proposta por Dilthey ser considerada o método das ciências do espírito, o
que caiu em desuso foi a identificação entre ambas e a noção de que a empatia é
a maneira fundamental de reconhecer outros indivíduos como seres dotados de uma
mente. A empatia não se reveste mais de tão grande significado por diversos
motivos, primeiro, o que um historiador, ou um intérprete de textos literários
ou não está interessado atualmente não dependem mais unicamente dos fatos de
uma mente individual. Na filosofia da história, necessariamente se superou a
categoria conceitual do agente, desde que, nessa perspectiva, o significado dos
eventos históricos não se constitui apenas pela intenção do agente, mas pelas suas
consequências de longo prazo, muitas vezes até, não intencionais. Filósofos como Gadamer asseveraram que o
significado de um texto não está intrinsecamente ligado as intenções do autor
ao escrever o texto, mas o que os textos têm a dizer por eles mesmos. Além
disso, o significado de um texto é dependente de seus efeitos sobre gerações
subsequentes de leitores. Mas existe ainda uma segunda crítica à empatia e seu
papel nas ciências do espírito, ou, ao menos, seu papel como o único método
dessas ciências (sua identificação com a compreensão). Conceber o entendimento
de outros indivíduos como sendo baseado na empatia é visto como
epistemologicamente uma concepção muito ingênua da interpretação dos indivíduos,
desde que parece conceber o entendimento como um misterioso encontro de duas
mentes independente de seus condicionamentos históricos e culturais (tal
crítica é profundamente influenciada por Heidgger e Wittgenstein).
A despeito das discussões na filosofia e hermenêutica
serem desfavoráveis à noção de empatia, em psicologia a empatia vem sendo um
conceito importante desde a década de oitenta do século passado. Todavia me
reservo o direito de me dar por satisfeito com a sucinta investigação sobre a
história desse termo no que concerne à hermenêutica, estética, história e
filosofia, e deixar de lado o debate psicológico sobre o termo e me concentrar
na perspectiva de Jung sobre o tema, pois, confessadamente, é a única
psicologia que me interessa. Resta dizer, no entanto, que a empatia em Jung não
é um conceito de importância tão fundamental quanto para as demais psicologias,
como veremos.
Retomando a pergunta inicial que me motivou a deitar a
pena ao papel, ou seja, analisar o “distúrbio de empatia” de Will pela ótica de
Jung. Inicio pela delimitação teórica do conceito de empatia no opus Junguiano.
Jung define empatia
de maneira lacônica como uma introjeção
do objeto. A introjeção é um processo
normal da psique e, psicologicamente, é um processo de assimilação, em oposição
à projeção que é um processo de dissimilação. A introjeção supõe uma assimilação do objeto ao sujeito. A introjeção
é um processo de extroversão, pois
necessita para a assimilação do objeto de uma empatia, uma ocupação total
do objeto. Existe tanto uma introjeção ativa
quanto passiva. No primeiro caso
incluem-se os processos de transferência no tratamento das neuroses, na segunda
está à empatia como processo de
adaptação. Como extroversão Jung compreende uma relação manifesta do sujeito
para com o objeto, um movimento positivo do interesse subjetivo pelo objeto. Em
certa medida, a extroversão é uma transferência de interesse do sujeito para o
objeto, assim como a introjeção, a extroversão poder ativa ou passiva. Em
termos energéticos, é um voltar-se para fora da libido.
A empatia é discutida por Jung com maior propriedade no
capítulo VII do Tipos Psicológicos. Nesse capítulo ele discute
o problema dos tipos introvertido/extrovertido na estética. Jung faz menção a
Worringer e as suas duas atitudes estéticas possíveis à empatia (Einfülung) e a abstração (Abstraktion), sua definição de empatia deriva de Lipps, e Jung cita
sua definição de empatia “é a objetivação de mim mesmo num objeto distinto de
mim”.cita ainda Jodl, para quem a empatia seria melhor chamada de Beseelung (animação) pois a obra de arte
não é apenas um ensejo para lembrarmos de nossos sentimentos por associação,
mas é uma exteriorização, se apresenta como algo de fora e projetamos
simultaneamente para dentro dela os processos exteriores que ela reproduz em nós,
o que resulta na animação dessa imagem. Jung prossegue citando Wundt, para quem
a empatia é um dos processos de assimilação elementares. Segundo este, a empatia é um processo
caracterizado por transferir sentimentalmente um conteúdo psíquico para o
objeto, e isso o leva a ser assimilado pelo sujeito que se torna a ele
vinculado de maneira tão íntima que o sujeito se sente no objeto. Todavia a
percepção do sujeito não é a de que ele projetou algo no objeto (visto a projeção
se rum processo inconsciente e automático), mas ele lhe aparece como que
animado e falando por si. A projeção transfere conteúdos inconscientes para o
objeto, por isso a empatia também é denominada de transferência na psicologia
analítica, logo a empatia é uma extroversão.
A empatia pressupõe uma confiança no objeto, e vai ao
encontro deste de modo confiante, que transfere o conteúdo subjetivo para o
objeto, o que provoca uma assimilação subjetiva (introjeção) do objeto pelo sujeito, o que faz com que exista um bom
entendimento entre sujeito e objeto, ou o simula. Um objeto passivo se deixa
assimilar subjetivamente, mas isso não modifica suas qualidades reais, que são
disfarçadas ou violentadas pela transferência. A empatia também pode gerar
semelhanças e qualidades comuns que não subsistem em si mesmas. A empatia
pressupõe um objeto vazio que pode ser preenchido com a própria vida. No polo
oposto está a abstração que supõe que
o objeto está ativo e procura se esquivar de sua influência, logo a atitude
abstrativa é centrípeta, isto é, introvertida. A abstração se afasta do objeto
evitando a sua influência por meio de uma atividade psíquica destinada a fazer
cessar a esta influência, pois na abstração se supõe que o objeto possua já de
antemão vida e influência. Para o abstrativo o objeto possui uma qualidade
aterradora, um perigo contra o qual é mister proteger-se. A abstração é uma
função que luta contra a participação mística primitiva, pois procura destruir
os vínculos com o objeto. O efeito da abstração é o de matar a atividade independente
do objeto por meio de um relacionamento mágico com a psique do sujeito.
A essência da empatia é uma projeção de conteúdos
inconscientes, mas ela é precedida por uma fantasia subjetiva que despotencializa
o objeto e valoriza o sujeito soerguendo-o acima do objeto, para que ele possa
ser esvaziado e assim preenchido pela vida do sujeito, que passa a senti-lo
como um objeto interior. Em termos energéticos, isso significa que com o
soerguimento do sujeito e o rebaixamento do objeto surge a diferença de nível
necessária à empatia para transferir conteúdos subjetivos para o objeto. A pessoa
com empatia empresta confiantemente animação ao mundo, pois este parece
precisar de seu sentimento subjetivo.
Jung certa feita afirmou que a “empatia não nos leva muito
longe”, isso, pois ela pressupõe um elevado estado de inconsciência, foi falado
até agora em projeção, mas o termo técnico mais correto seria o de identidade
arcaica, ou participação mística, esse termo formula a relação original do
primitivo com seus objetos, pois eles possuem uma animação dinâmica e estão
carregados de força anímica exercendo uma influencia psíquica direta sobre as
pessoas, o que produz uma identidade dinâmica com seu objeto. A empatia se
funda no significado mágico do sujeito que se apodera do objeto mediante uma
identificação mística. Jung, ao falar de empatia estabelece uma dinâmica entre
esta e a abstração, pois o que o empatizante transfere para o objeto é ele
mesmo, e o que o abstrativo pensa sobre a impressão que recebe do objeto ele
pensa sobre seus próprios sentimentos que surgiram a partir do objeto. Ambas as
funções existem no indivíduo, mas normalmente estão desigualmente
diferenciadas. Acontece que, na medida em que o empatizante preenche o objeto
com seus conteúdos inconscientes, ele se entrega ao objeto, pois esses conteúdos
são parte essencial do sujeito, ele sai de si mesmo e, na medida em que vê, sem
o perceber, a si mesmo no objeto (ele crê que essas qualidades pertencem
realmente ao objeto) ele se desubjetiva. Nesse sentido, diferente do abstrativo,
que precisa se proteger dos objetos inconscientemente animados, a transferência
para o empatizante é uma proteção contra a dissolução por fatores internos
subjetivos, possibilidades ilimitadas de fantasias que correspondem a impulsos
a ação. Empatia e abstração, extroversão
e introversão, são mecanismos de adaptação e proteção.
Esse par empatia/abstração (extroversão/introversão) indica
que, a uma atitude consciente de empatia há, de antemão, uma abstração
inconsciente que esvazia o objeto (o despotencializa) e valoriza o sujeito, e a
uma atitude consciente de abstração, já existe de antemão uma empatia, no
sentido de uma transferência de conteúdos subjetivos inconscientes que anima o
objeto e os tornam ameaçadores. Por isso, para o primeiro os objetos parecem
sedutores, mas a fantasia inconsciente parece algo tremendo e terrível e, para
o segundo, suas ideias e fantasias lhe servem de salvaguarda contra objetos que
são potencialmente destrutivos.
Retornando, finalmente, a Will, me parece que, numa
perspectiva Junguiana o seu “transtorno de empatia”, pode fazer certo sentido,
a empatia é algo normal, entretanto devemos recordar que, para Jung, patológico
é sinônimo de insólito, exagerado e o que vemos em Will de fato aponta para
algo insólito. Will, a despeito de sua empatia, abraça sua fantasia (sempre
ameaçadora) e a utiliza mais ou menos como uma imaginação ativa (o caráter de
objetividade de suas fantasias é muito forte e evidente, não fossem elas
autoinduzidas se diria tratar-se de um delírio) e isso tem efeitos
profundamente deletérios. Também é digno de nota a relação dele com Lecter, seu
analista/mentor/adversário, visto a empatia passiva ser também chamada de
transferência, faz sentido a sua relação profundamente doentia com Lecter (que
estabelece com ele uma intensa contratransferência). Em Will vemos com clareza
a dinâmica apontada por Jung entre abstração e empatia. Parece-me, que não é
tanto a empatia que ameaça Will, mas suas fantasias, que são o recurso de que
se utiliza para compreender os perpetradores de homicídios. Para Jung, tanto a
empatia quanto a abstração são compreendidas como formas de proteção e adaptação,
mas igualmente como maneira de percepção e criação artística, bem como meios de
se estabelecer algum conhecimento objetivo. O método de Will procura justamente
descobrir algo que subjaz a cena do crime, a individualidade e os desejos e
objetivos dos assassinos, a possibilidade de fazê-lo por intermédio desses
processos adaptativos (que, assim como introversão/extroversão estão
dinamicamente associados) é vista como algo possível por Jung e, no seriado, os
riscos desse procedimento parecem mostrados de maneira bastante precisa, em que
pese o exagero característico do drama televisivo.