terça-feira, 17 de junho de 2014

Looney Tunes e Schleiermacher






 http://www.watchcartoononline.com/the-looney-tunes-show-season-2-episode-10-a-christmas-carol

O desenho animado Looney Tunes “A christmas Carol” (deixei em inglês, pois, do contrário, perde o sentido), apresenta uma excelente oportunidade para exemplificar alguns aspectos da hermenêutica de Schleiermacher. Esse autor, um teólogo, com forte influência romântica, foi o primeiro a propor uma hemenêutica universal, e foi uma importante influência no pensamento de Jung, especialmente em seu método, que é justamente o interesse do nosso curso. Para Schleiermacher a hermenêutica, ou interpretação, passa por uma interpretação gramatical e, por outro lado, uma interpretação psicológica. A interpretação é psicológica, pois a linguagem (especialmente a escrita) é o aspecto comunitário do pensamento e, ao se interpretar um texto, o que se busca é justamente descobrir o pensamento do autor, aquilo que ele desejava transmitir por meio de suas palavras, mas a interpretação hermenêutica permite que se conheça o pensamento do autor melhor do que este próprio conhecia, pois supõe que há fatores inconscientes que se manifestam na linguagem, fatores esses que, obviamente, não são do conhecimento do autor. No caso do desenho, e do erro interpretativo, podemos ver com destaque o valor do aspecto gramatical da interpretação.


O mote do episódio é que está na época natalina, porém não há neve e o ânimo de todos na cidade não está nada bom. Para resolver isso, Lola – a namorada de Bugsbunny – resolve fazer uma montagem da peça natalina “A christmas Carol”, que ela desconhece completamente. Pelo título, que no nosso vernáculo é normalmente traduzido como “Um conto de Natal”, Lola supõe que seja a história de uma garota chamada Carol. Carol em inglês, todavia, significa “hino de natal”, mas se escreve exatamente como o nome próprio Carol, por isso, ao ler o texto e não encontrar nada sobre a Carol, Lola resolve escrever e estrelar sua própria versão da história de Carol. Lola desconsidera completamente o chamado princípio hemenêutico da caridade, que parte da suposição de que o texto, ou o que quer que seja, que se está tentando interpretar possui um sentido. Como ela não encontrou o sentido que desejava, abandonou completamente a famosa peça natalina.


Vejam, para Schleiermacher, o objetivo da hermenêutica é compreender de forma correta aquilo que foi expressado por outra pessoa, em especial na forma escrita. Sendo a hermenêutica o processo de descobrir os pensamentos por trás das expressões. A hermenêutica possui, ergo, duas partes, sendo uma delas a gramatical que interpreta o enunciado como algo derivado da linguagem. O que Lola faz, que é um grosseiro mal-entendido, é algo pressuposto pela hermenêutica tal como proposta por Schleiermacher, para ele o mal-entendido é um resultado costumeiro, a regra e não a exceção (os leitores de Jung são a prova viva disso...). No que concerne ao aspecto gramatical da hermenêutica (que é onde Lola escorrega), nos colocamos objetivamente na posição do autor ao compreendermos a sua linguagem. Isso parece ser uma parte simples da interpretação, mas não o é. A linguagem muda com o tempo, e mesmo a nossa linguagem atual é eivada de polissemia e metáforas, compreender a linguagem do autor significa, entre outras coisas, compreender o contexto da linguagem da plateia ao qual ele se dirigia, o que, em sua época e em seu contexto, significavam aquelas palavras. O círculo hemenêutico é justamente a percepção de que não se pode compreender a parte sem compreender o todo, mas, paradoxalmente, não se pode compreender o todo sem se compreender a parte. Lola escorrega na parte, como para ela Carol é um nome próprio e não um hino natalino, ela interpreta todo o texto incorretamente. Para compreendermos os escritos de um determinado autor, é preciso compreender a linguagem e a história de seu tempo, isso é um lado do círculo hemenêutico.


O que Lola fez? Bom ela ignorou que as palavras perdem e ganham significados, que existe uma polissemia nas palavras e que, como o autor deseja comunicar algo a alguém, pressupomos uma linguagem comum. O que a coelhinha maluca faz – em certo sentido – se assemelha ao erro de interpretar a o enunciado a partir da compreensão contemporânea da linguagem, mesmo que esse enunciado venha de um uso anterior, o que leva a mal-entendidos. No caso de Lola, para ser mais preciso, se assemelha mais ao que Bachelard chamava de “obstáculo verbal”, ou seja, uma falsa explicação obtida com a ajuda de uma palavra explicativa, uma tendência de se associar uma palavra concreta a uma abstrata. Como se pode perceber, é muito comum que ocorram mal-entendidos, e nem todos eles são tão engraçados qanto o cometido por Lola...