O texto que segue é uma tentativa fraterna de resposta ao vídeo abaixo
https://www.youtube.com/watch?v=POXvyB2QQxc
A psique não pode ser
apreendida numa teoria; tampouco o mundo. As teorias não são artigos de fé;
quando muito, são instrumentos a serviço do conhecimento e da terapia; ou então
não servem para coisa alguma. Jung.
Caro Rafael,
Seu vídeo me suscitou o desejo de lhe escrever uma
resposta, não nos conhecemos, mas essa possibilidade de comunicação é uma das
mágicas de nosso tempo e espero que, assim como a sua opinião chegou a mim, a
minha resposta possa, de alguma maneira chegar até você. Vou tentar responder
ponto a ponto seus questionamentos, sinceramente não sei se conseguirei
fazê-lo, um de meus autores preferidos, o historiador Marc Bloch, inicia sua
última obra afirmando “(...) não imagino, para um escritor, elogio mais belo do
que saber falar no mesmo tom aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade tão
apurada é privilégio de alguns raros eleitos”. Certamente não me incluo entre
esses eleitos, mas vou me esforçar para ser claro, o mais claro possível.
Começo por aplaudir a sua iniciativa, seu depoimento é
sincero e honesto, também corajoso. A maioria de suas críticas acerta o alvo,
eu mesmo acrescentaria diversas outras e lhe remeto a um de meus textos sobre o
tema (O Lugar da psicologia). Você também está correto ao advertir para a
falácia do argumento de autoridade, por isso, não perderei tempo com tolices
como títulos e diplomas, mas quero salientar a ausência de um, não sou
psicólogo. Você, caro Rafael, inicia suas considerações advertindo para um
ponto crucial, a ausência de um paradigma unificado em Psicologia. Um importante
epistemologo da psicologia, Antonio Gomes Penna, afirma a mesmíssima coisa: não
existe uma, mas várias psicologias. Basta um exame mais atento para perceber
tal fato, chega mesmo a ser algo obvio, mas ao leigo parece sim existir algo
como uma “psicologia”, o que você está correto em apontar como uma quimera e,
principalmente, como algo problemático.
Diante desse fato a que você aludiu, não posso responder
pela miríade de psicologias que existem por aí, espero que compreenda as minhas
limitações, mas irei responder as suas indagações a partir da Psicologia
Complexa fundada por Carl Gustav Jung. De início, gostaria de deixar claro que
poucos autores foram tão mal entendidos e desvirtuados quanto Jung e que, eu
mesmo, sou um ferrenho crítico do que passa hoje em dia por Psicologia
Junguiana, mas abusus non tollit usum.
Assim como você, eu tenho grande apreço pelo método científico, e também pela
epistemologia. Se estiver interessado em saber que resposta a ciência fundada
por Jung tem as suas perguntas, basta continuar lendo. Como última palavra de
introdução, esse também é um tema que me traz profunda irritação e afetos muito
pouco positivos, mas tentarei ao máximo me afastar desses afetos, pois eles
trazem uma terrível restrição da consciência e fazem brotar em nós aspectos
muito primitivos de nossa alma.
Comecemos pela sua primeira indagação dirigida ao
terapeuta, devo salientar que é uma pergunta difícil, “O que você entende como
Psicologia”. Bom, para Jung a psicologia não é nem uma ciência da natureza,
apesar de utilizar o método das ciências da natureza, o método empírico
descritivo e nem tão pouco uma da ciências humanas, mas ocupa uma posição sui generis.
É importante afirmar que a Psicologia não é e nem pode ser filosofia, para ele
a filosofia não passava de “fichas de contar do intelecto movidas para frente e
para trás a milhares de anos”, menos ainda a psicologia pode se arvorar a ser
metafísica, pois não podemos subir em nossos próprios ombros para ver mais
longe, não podemos nos colocar em um estado suprapsíquico e falar das coisas
como elas realmente são, a psicologia não pode falar da essência das coisas,
mas, exclusivamente, da maneira como elas são imaginadas. Voltando ao método
empírico, em psicologia a pergunta “por quê?” é inconveniente, pois não sabemos
por que as coisas são como são, responder a essa pergunta é trabalho do teólogo
e do filósofo (metafísico), mas o método empírico tem a vantagem de nos dizer “como”
as coisas funcionam e, para Jung, não se deve jamais se afastar do campo dos
fenômenos e tampouco, se perder em especulações vãs. Para Jung a psicologia é
uma ciência, mas uma com sérias complicações. Como você bem apontou, não
dispomos de uma matemática, e isso é um problema epistemológico sério! O psíquico
não é matematizável, por isso, o primeiro passo, de uma psicologia que deseje
ser uma ciência é definir seus conceitos da maneira mais precisa possível e que
esses conceitos sejam retirados da linguagem comum sempre que possível. Além
disso eles servem unicamente para descrever grupos fenomenológicos, assim como
o conceito de artrópodes, que descreve os invertebrados com patas articuladas. Além
disso, Jung considerava que o único critério de validez de uma hipótese é o seu
valor explicativo. Como eu disse antes, não se deve perder tempo com divagações
ociosas.
Uma das complicações da Psicologia é o fato de que se
trata não de uma ciência sobre o psíquico, mas no psíquico! Todas as hipóteses
psicológicas são, elas mesmas, fenômenos psíquicos, não há ponto arquimediano
externo, daí a proposição por Jung de uma conceito fundamental chamado de
realidade psíquica, mas que pode ser resumido ao se dizer que tudo aquilo que
age, que atua, é real. Como uma última palavra, Jung advertia que a psicologia
não poderia jamais se converter em uma visão de mundo, mas que era indispensável
que o terapeuta possua uma visão de mundo, mas que esteja aberta a mudança em
virtude do diálogo com o paciente. Para ele o papel do terapeuta é o de espelho
dialético, e o método clínico o método dialético.
Continuando com a sua primeira pergunta, que se subdivide
em várias, passo a “qual a estrutura e a interpretação que você dá para como as
pessoas funcionam”. Bom, você não pega nada leve com os pobres terapeutas,
espero que perceba o terrível grau de complexidade que essa pergunta exige, mas
vou tentar responder. Basicamente, a visão de homem na psicologia de Jung pode
ser resumida pela famosa frase de Freud “não somos senhores em nossa própria
casa”, advirto que junto da resposta a essa questão virá também à resposta, não
menos difícil, de “por que você acredita nisso”. Jung postula a existência de um inconsciente psíquico,
mas o que isso significa? E por que ele precisa postular isso? Bom,
inconsciente é um conceito limítrofe e negativo e que possui a grande vantagem
de não afirmar nada, diz apenas que existem fatores que não são conscientes e
que eu os desconheço completamente e isso evita um preconceito. Fundamentalmente
o inconsciente é aquilo que eu não sei, minha definição preferida é a de que é
um fator irracional existencial inalienável. Repare no termo inalienável. Jung também postula, como
hipótese basilar, que existe uma relação entre a consciência, que é um processo
momentâneo de adaptação, e o inconsciente que é compensatório e/ou
complementar, mas que nos casos de neurose, pode ser de oposição. Além disso, a
consciência é intermitente e momentânea, sendo o inconsciente anterior, simultâneo
e posterior à consciência do eu. Na realidade, o inconsciente só complica e
bagunça as coisas, mas, para nosso azar e sorte paradoxalmente, ele é um fato
empírico. Diga-me Rafael, quantas vezes você já não sonhou com coisas tão
estranhas ou indecentes que você jamais teria coragem até mesmo de pensá-las
conscientemente? Ou quantas vezes, tomado por um afeto, você não disse ou fez
coisas que jamais faria se pensasse um pouco melhor? Ou quantas vezes, diante
de uma pessoa que você sabe perfeitamente o nome, você esqueceu o nome
justamente no momento crucial? Ou, diante de uma prova importante, para a qual
você estudou muito, contra todo o bom senso, diante da tensão você esqueceu
tudo? Esses são apenas alguns exemplos cotidianos de como nossa adaptação
consciente pode ser afetada por um fator desconhecido e que parece dotado de
uma natureza maquiavélica.
Sua segunda pergunta trata do diagnóstico/prognóstico/tratamento,
bem, eu terei de lhe dar uma resposta embaraçosa, pois fundamentalmente, o
terapeuta não pode fazer nada, ou no máximo, muito pouco pelo paciente, mas
deixe-me lhe explicar porque antes que você pense que nossa ciência é inútil,
longe disso. Jung, em um de seus livros mais complicados, sincronicidade, cita
o caso de uma paciência que já passara por 3 médicos (ele era o terceiro), sem
nenhum sucesso em conseguir ajudá-la. Ela estava, junto com ele, a um bom tempo
empacada, mas tivera um sonho com um escaravelho e, ao relatar esse sonho um
inseto parecido com um escaravelho começou a se chocar contra a janela, sobre
esse insólito evento Jung asseverou que para tirá-la de sua condição de estase “para
isto, evidentemente, seria necessário um acontecimento de natureza irracional,
que eu, naturalmente, não teria condições de produzir”. Jung afirmava ser
crucial a irracionalização dos objetivos da terapia. Veja Rafael, quando eu
creio por motivos empíricos, que existe um fator existencial, irracional,
inalienável, isso complica um pouco as coisas. Tomemos o sofrimento neurótico,
ele é um logro, não possui valor moral. Uma pessoa problemática sofre, mas sabe
o motivo de seu padecer (o vizinho, a namorada, a matemática etc), um neurótico
sofre, mas não tem ideia dos motivos de seu sofrer. Em psicologia complexa não
se procura um diagnóstico clínico, algumas vezes ele só é possível ao final do
tratamento, procura-se um diagnóstico psicológico, isto é, um diagnóstico dos
complexos e ele só se revela no decorrer do tratamento, pois é inconsciente. Na
realidade em uma anamnese aquilo que o paciente diz normalmente encobre o
verdadeiro problema, pois nem o paciente e nem o analista sabem de antemão do
que se trata. O paciente só sabe que tem um problema, mas nem faz ideia do que
seja esse problema, parece familiar?
Eu gosto de recordar sempre algo narrado por Franz,
principal discípula de Jung, certa feita ela estava sendo supervisionada por
Jung e falava de como estava se esforçando ao máximo para que uma de suas
pacientes não surtasse, ao que Jung retrucou “como você sabe que ela não deve
surtar? Como você sabe que depois do surto ela não pode melhorar? Fundamentalmente
não sabemos o que deus quer das pessoas”. Embaraçoso não? A sua pergunta, uma
pergunta que se deve levar a sério, um terapeuta realmente comprometido com o método
deveria responder “não sei”. Em psicologia complexa se considera que a empatia
não nos leva muito longe, em análise importa a simpatia, no sentido de sofrer
junto, o analista e o paciente sofrem juntos as agruras do processo e uma parte
considerável desse processo é Deo
concedente, ou seja, depende da natureza, depende do inconsciente e da
manifestação espontânea de um acontecimento de natureza irracional. Para Jung irracional
significa simplesmente extra-racional, se você já conheceu alguém com depressão,
deve ter notado que muitas pessoas lhe dão conselhos bem intencionados e muito
sensatos, mas que não adiantam de nada, pois o aspecto irracional da vida é
impermeável à racionalidade. Se fôssemos senhores em nossa morada, jamais faríamos
algo tão insensato quanto ficarmos deprimidos. Sobre o diagnóstico, Jung também
dizia algo embaraçoso, mas verdadeiro, de que dizer que alguém é um filhinho de
papai é muito mais preciso psicologicamente do que dizer que é histérico.
O tratamento consiste um diálogo em que todas as técnicas
são abandonadas, e em que o papel de sujeito cabe ao paciente. Procura-se
prestar muita atenção aos sonhos, pois eles são a “via régia de acesso ao
inconsciente”, mas basicamente o terapeuta vai ouvir o que o paciente tem a
falar, até que ele tenha realizado uma confissão mais ou menos completa, pois
ali ele pode falar, desde que deseje, de coisas inconfessáveis, e isso, por si
só, já possui algum efeito sobre a sua alma.
Você, caro Rafael, está correto ao afirmar que alguns psicólogos
se escondem por trás de suas teorias, Jung afirmava a mesma coisa, isso se
chama persona medici, e você acerta o alvo ao apontar que isso é uma fraude, mas,
paradoxalmente, pode ser contraproducente gastar tempo falando ou explicando a
teoria. Jung escreveu muitos livros e possui realmente uma teoria bastante
complexa, veja a minha dificuldade aqui na tentativa de ser claro, todavia, se
o paciente insistir nisso, deve-se aquiescer ao menos em parte. Jung
considerava essa postura que você aponta como sendo extremamente daninha e um
obstáculo ao tratamento e que, a principal ferramenta que o terapeuta tem a sua
disposição é a sua própria personalidade, por isso ele mesmo deve passar pelas
agruras do processo de análise.
Como eu lhe disse, é provável que as minhas resposta
apenas ratifiquem para você que a psicologia é uma grande fraude, já que não é
possível fornecer um diagnóstico preciso e um prognóstico, pois estamos a mercê
do inconsciente, mas é exatamente dessa maneira que as coisas são. Seria mais fácil
se não fosse assim, mas os fatos mostram isso, e quem se dispõe a ser um
analista deve abdicar do desejo de curar, certamente ele deve se esforçar para
ajudar, mas, paradoxalmente, o desejo de curar barra o processo, pois ele é
algo espontâneo. No mesmo livro que lhe citei antes Jung diz algo interessante
sobre o papel do analista e eu finalizo com isso. Disse ele
A paciente do escaravelho se encontrava em uma situação “impossível”, porque seu tratamento estacionara e parecia não haver saída para o impasse. Em tais situações, quando bastante sérias, costumam ocorrer sonhos arquetípicos que revelam alguma possibilidade de progresso no qual não se teria pensado. É esta espécie de situações que constela o arquétipo com grande regularidade. Em determinados casos, o psicoterapeuta, portanto, se vê obrigado a descobrir o problema racionalmente insolúvel à luz do qual o inconsciente do paciente dirige o seu curso. Uma vez descoberto este problema, as camadas mais profundas do inconsciente, as imagens primordiais são ativadas, e o processo de transformação da personalidade entra em andamento. (Jung, 2000, p.18, grifo meu)
Espero ter podido, de alguma maneira, lhe dar alguma
resposta, é preciso que eu diga que compartilho de sua irritação e preocupação,
mas também é preciso que você compreenda que há uma incomensurabilidade entre medicina
e psicologia, por isso suas comparações entre uma e outra acabam sendo
descabidas. Mesmo assim, isso não retira o valor de sua crítica e de seus
questionamentos, se mais pessoas se questionassem certamente haveria menos
charlatões, e, com pesar, devo admitir que entre os “junguianos” existem muitos
charlatões. Outras teorias ou abordagens lhe darão outras respostas, talvez até
mesmo respostas mais convincentes, tentei ser tão honesto e sincero quanto você
foi e, espero, não ter usado das falácias que apontou.
Ab Imo Pectore
Heráclito Aragão
Pinheiro, Fortaleza, 16/04/2014