sábado, 22 de março de 2014

A depressão na perspectiva da Psicologia Complexa

A psique não pode ser apreendida numa teoria; tampouco o mundo. As teorias não são artigos de fé; quando muito, são instrumentos a serviço do conhecimento e da terapia; ou então não servem para coisa alguma. Jung.

A depressão tornou-se, indubitavelmente, um tema dos mais importantes para o debate psicológico e a saúde pública. Muitos elementos podem ser elencados para demonstrar essa importância, mas talvez um dos mais dramáticos sejam os números relacionados ao consumo de antidepressivos. A imprensa estadunidense noticiou, a não muito tempo, um estudo do Centers for Disease Control and Prevention que indicava um espetacular aumento de 400% no consumo de antidepressivos desde 1988, o que transformava esses medicamentos no mais consumido pela faixa etária que vai de 18 a 44 anos, e 11% dos americanos a partir de 12 anos começam a utilizar tais drogas. É preciso, por certo, algum cuidado ao associar esse aumento de maneira exclusiva à depressão, isso por alguns motivos: existe um elevado índice de automedicação; tais drogas não são utilizadas exclusivamente para o tratamento da depressão, podendo ser utilizadas também para combater transtornos de ansiedades e outros problemas; a definição psiquiátrica hodierna dessa afecção é ateórica, tendo se tornado meramente descritiva e útil apenas para fins epidemiológicos e, mesmo assim alguns pacientes que são diagnosticados não se enquadram nos critérios previstos pelo DSM. Mesmo com todas essas reservas, são números impressionantes. Não é debalde que a OMS (Organização Mundial de Saúde) classificou a depressão como “uma das doenças mais incapacitantes do mundo”.
Ao tratar da perspectiva da Psicologia Complexa no que concerne à depressão, creio que se faz necessário um cotejamento com o que a psiquiatria atual considera depressão, por mais que o conceito psiquiátrico seja de escassa, ou mesmo nula, utilidade psicológica, é por meio dele que o tratamento medicamentoso dessa afecção é realizado e muitos pacientes encaminhados a psicoterapia. É importante salientar que apenas médicos e dentistas podem legalmente prescrever medicamentos, e que, o tratamento medicamentoso, é o mais difundido e, por certo, o que pode de maneira mais cômoda e rápida ter seus resultados mensurados pelos métodos estatísticos.
A depressão está elencada no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders entre as Psychiatric Disorders (distúrbios psiquiátricos), mais especificamente no subgrupo das Mood Disorders (distúrbios de humor). Esse subgrupo se caracteriza por, eu traduzo “os distúrbios dessa categoria incluem aqueles em que o sintoma primário é a perturbação do humor. Em outras palavras, inapropriado, exagerado ou limitada variação de humor”. Entre os distúrbios dessa categoria está a Major Depressing Disorder (Grande distúrbio depressivo), os outros são: Bipolar Disorder, Cyclothymic Disorder, Dysthymic Disorder.
No Major Depressive Disorder, a etiologia pode ser resumida na primeira frase dessa entrada no texto, eu traduzo, “estudos mostram que a depressão é influenciada por ambos os fatores biológicos e ambientais”. Uma etiologia bastante vaga, mas essa não é a crítica que se pode, ou deve fazer, no que diz respeito à perspectiva da Psicologia Complexa. O diagnóstico se faz por meio da verificação da existência de alguns dos sintomas elencados, são eles: humor depressivo (como sentimentos de tristeza e vazio); redução do interesse em atividades que eram consideradas agradáveis e distúrbios do sono; perda de energia ou significativa redução do nível de energia; dificuldade de concentração, manter uma conversa, prestar atenção, ou tomar decisões que deveriam ser muito simples; pensamentos suicidas. O tratamento indicado pode ser uma combinação de psicoterapia e medicamentos, a que se segue uma lista de medicamentos indicados e sobre a psicoterapia se diz “é útil em ajudar o paciente a compreender os fatores envolvidos em criar ou exacerbar a sintomatologia depressiva”. Não se especifica o que se entende por psicoterapia, mas fica claro o seu papel auxiliar no tratamento. Como veremos, esse tipo de perspectiva, impõe uma imagem de mundo que exclui a psique humana real.
Existem diversas diferenças entre a perspectiva de Jung e a psiquiatria hodierna, e qualquer uma delas poderia ser trazida à baila primeiro como a mais importante. Nesse caso, eu principio pelo papel do diagnóstico em psicoterapia, visto ser essa uma etapa crucial no tratamento medicamentoso e conditio sine qua non do mesmo. Há, no opus Junguiano, uma diferença entre diagnóstico clínico e diagnóstico psicológico que é crucial compreender para fazer o contraste entre as duas perspectivas. Jung é bastante claro quanto a esse ponto.
O médico comum parte do pressuposto de que o exame do paciente deve levar, dentro da medida do possível, ao diagnóstico da sua doença, e, uma vez feito o diagnóstico, à decisão quanto aos pontos essenciais do prognóstico e da terapia. A psicoterapia constitui uma visível exceção a essa regra: para ela o diagnóstico é extremamente irrelevante, na medida em que – exceto um nome mais ou menos adequado para o estado neurótico do paciente – nada se ganha, principalmente no que diz respeito ao prognóstico e à terapia. Contrapondo-se declaradamente ao resto da medicina, em que de um determinado diagnóstico, decorre eventualmente um tratamento específico e um prognóstico relativamente seguro, o diagnóstico de qualquer neurose psíquica significa, no máximo, que um tratamento psíquico é recomendado. Quanto ao prognóstico, ele é extremamente independente do diagnóstico. (1981, pp. 82 e 83).
O texto que citei vem bem a calhar, pois nele Jung trata das diferenças entre a medicina e a psicoterapia. Em outro de seus escritos ele afirma que as perturbações nervosas (com seus variegados nomes, em nosso caso depressão) são de origem psíquica e exigem um tratamento da alma, esta mesma alma é que padece e suas funções “mais complexas e profundas” mal podem ser incluídas no campo da medicina “nesses casos o médico precisa ser psicólogo, isto é, um conhecedor da alma humana” (1998). Todo o procedimento psicológico difere daquele adotado pelo médico. A anamnese não pode ser simplesmente uma tentativa de recompor o material histórico do caso, isso não pode satisfazer ao psicoterapeuta. A anamnese em psicoterapia deve indagar sobre coisas que aparentemente nada tem a ver com o caso, bem como depende, da parte do terapeuta, de ideias e intuições que lhe vão ocorrendo. A neurose psíquica procede da totalidade humana, e por esse motivo, não pode ser facilmente delimitada, trata-se de enxergar toda a personalidade e levar em consideração o ser humano que ali está e não reduzi-lo a sua doença. Não é a neurose que precisa de tratamento, mas a pessoa é que necessita. Para Jung, patológico é sinônimo de insólito ou exagerado, nota bene, a neurose não é um ens per se.
Já que metemos na cabeça que queremos curar almas, não podemos fechar os olhos para a realidade de que a neurose não tem existência em si, mas é simplesmente a própria psique perturbada pela doença. (Jung, 1981, p.79).
O diagnóstico, de que tratamos aqui, e que é tão cara ao médico, é de natureza bem diferente no que concerne a psicoterapia, pois o psicoterapeuta faz algumas constatações ao escutar a anamnese, que mutatis mutandis, poderiam ser chamadas de diagnóstico, mas são de caráter psicológico e não servem para serem comunicadas ao paciente, ao contrário, devem ser mantidas em sigilo e servem para orientar, e não determinar, a terapia. Não interessa, ou ao menos não é esse o interesse fundamental, ao terapeuta um quadro clínico, mas sim o quadro psicológico. Pouco importa o nome que se dê, seja ele grego ou latino, seja histeria, fobia ou depressão “isso pouco importa, ao lado de uma constatação tão importante como a de que o paciente é ‘um filhinho de papai’, por exemplo” (Jung, 1981). Um diagnóstico clínico se comunicado ao paciente pode – quero deixar algo claro quanto ao método aqui, por isso cito novamente Jung “toda proposição psicológica só pode ser considerada válida quando, e somente quando a validade de seu sentido oposto também puder ser reconhecida” (1981) – transformar-se em um empecilho ao tratamento e ensejar as maiores resistências, isso em virtude de uma das principais características da neurose, talvez a mais penosa: o neurótico sabe que sofre, mas desconhece os motivos de seu padecimento. Há outro motivo ainda, no que concerne aquilo que Jung denominava de diagnóstico psicológico.
O diagnóstico psicológico visa ao diagnóstico dos complexos e, por conseguinte, à formulação de fatos que seriam antes camuflados do que mostrados pelo quadro clínico da doença. (Jung, 1981, p.83)
Existe em psicoterapia um fator que é inalienável, e de natureza irracional que complica o quadro aparentemente simples do diagnóstico médico realizado pela constatação dos sintomas. A psicologia complexa tem como sua hipótese basilar a existência de um dado irracional existencial inalienável, que Freud antes de Jung e o filósofo von Hartman antes de Freud chamou de inconsciente, em alemão Umbewusste. O termo inconsciente é uma expressão extremamente feliz para designar esse fenômeno, pois, como afirmou certa feita M. L. von Franz, é um conceito limítrofe e negativo que serve para evitar um preconceito (de que julgamos saber do que se trata), o termo inconsciente não diz nada, apenas que não é consciente, não sabemos o que é. A fenomenologia da depressão traz exemplos dramáticos da ação do inconsciente, da maneira como existem fenômenos que não são conscientes, mas que se manifestam a consciência a revelia da vontade.
Ao leigo pode parecer estranho que o quadro tão claro e simples exposto no início, e de que faz uso a medicina, seja perturbado em sua concisão e simplicidade pela adoção de algo que torna o quadro da neurose desesperadoramente complexo e ambíguo, lançando o pesquisador e o psicoterapeuta em um lodaçal aparentemente insolúvel de paradoxos. Como afirmou certa feita Jung, todavia, é o homem que é paradoxal. A aparente simplicidade do quadro oferecido pela medicina é um artifício intelectual que não faz jus ao objeto de sua reflexão: a alma.
O complexo é uma grandeza relativamente autônoma, um corpus alienum, que não se ajusta a hierarquia da consciência. Por complexo Jung compreende a imagem de uma situação psíquica de forte carga emocional, incompatível com a atitude consciente, dotada de coerência interior, totalidade própria e relativamente autônomo. A hipótese basilar da existência de um inconsciente psíquico igualmente supõe uma forma de relacionamento entre a consciência e o inconsciente, que normalmente é compensatória ou complementar, mas que no caso da neurose transforma-se em oposição. O complexo não se ajusta a hierarquia da consciência, podendo até mesmo subverta-la, opondo uma efetiva resistência à vontade. Nesse sentido, o conteúdo de uma neurose nunca pode ser constatado por um exame, ele se manifesta apenas no decorrer do tratamento, e, paradoxalmente, o verdadeiro diagnóstico psicológico só se revela ao final do tratamento. O princípio fundamental, ou como disse Jung, o único princípio válido, que se pode haurir da constatação da existência a autonomia dos complexos, é que, no caso das neuroses, o seu tratamento tem que ser psíquico. Sendo o principal fator de cura no tratamento das neuroses a personalidade do médico “Ars totum requirit hominem”.
Os manuais psiquiátricos de nossos dias nomeadamente abandonaram qualquer pretensão teórica em favor de uma perspectiva epidemiológica, ou, em outras palavras, estatística. É extremamente difícil, se não impossível, fazer-se epidemiologia com o método da psicoterapia, que dá importância aos dois aspectos que se apresentam no fenômeno vivo: o coletivo (ou genérico) e o individual, mantendo-se nessa situação paradoxal. Na perspectiva da Psicologia Complexa, uma das antinomias fundamentais para o exercício da psicoterapia, ou simplesmente para fazer jus ao paradoxo que é a alma é: O individual não importa perante o genérico, e o genérico não importa perante o individual. Essa é uma posição sumamente complicada, e que mostra, no sentido de um tratamento da alma, ainda maiores dificuldades relacionadas ao diagnóstico. O médico pode, e se espera dele, emitir um diagnóstico, pois a terapêutica e o prognóstico dependem disso, mas no caso da psicoterapia, isso é sinal de falta de espírito crítico. Tendo em mente a antinomia entre o genérico e o individual, não posso me colocar como autoridade diante do paciente, ou mesmo me arvorar a saber de sua individualidade e totalidade da personalidade. Qualquer declaração dessa ordem – como o diagnóstico de depressão – dizem respeito ao ser humano genérico, se assim não fosse, não seria passível de uma consideração epidemiológica (estatística). Nesse ponto resta mais evidente o papel da personalidade do médico como mais importante fator de cura, pois tudo o que vive, vive individualmente e jamais terei a minha frente uma categoria, ou universal, ou mesmo um ser humano genérico, mas sempre um indivíduo. “só posso afirmar sobre a individualidade de outrem, o que encontro em minha própria individualidade” asseverou Jung, isso significa, para utilizar alegoria expressa por ele no Tipos Psicológicos, que sem o cisco em meu olho não seria possível ver a trave no olho de meu próximo, mas sem o confronto com o inconsciente e o desenvolvimento de minha personalidade, corro o risco de supor que todos os ciscos são traves. Isso é ainda mais grave no que concerne à psicoterapia, pois se sou inconsciente dos mesmos conteúdos que o paciente, passo a enxergá-los de maneira projetiva e, ao invés de um auxílio transformo-me em estorvo ao tratamento. Só posso ajudar a curar aquilo que já foi curado em mim mesmo.
É preciso ter clareza de que a neurose é uma ficção, em nosso caso, devemos ter em mente que a depressão é uma ficção, ela não é nem pode ser o objeto da psicoterapia, mas sim a “integridade perturbada de uma pessoa humana”. A clareza quanto a esse ponto lança luzes aos inconvenientes de um método estatístico. Não se enganem, não estou aqui advogando contra o método estatístico, mas contra seu uso unilateral e hipostasiado. Não é uma crítica ao “o quê”, mas ao “como”.
Jung faz uma importante diferenciação epistêmica entre conhecimento e compreensão, o primeiro mirando nos aspectos genéricos e o segundo no individual. Para a psicoterapia ambos são importantes, mas isso coloca, novamente, o psicoterapeuta em uma posição nada confortável no que diz respeito a seus pressupostos teóricos, e ele precisa estar ciente disso. Quanto maior a pretensão de universalidade de uma teoria, menor sua possibilidade de aplicação aos fatos individuais. Perceba, estimado leitor, que os manuais de psiquiatria aspiram essa universalidade. O problema com o método indutivo, é que ele estipula uma média ideal, que elimina todas as exceções, substituindo-as por um valor médio abstrato que figura na teoria como fato incontestável mesmo que não ocorra uma vez sequer na realidade. Para ilustrar esse fato insólito Jung utiliza uma alegoria das mais elucidativas: alguém que conheça peso médio de um seixo de rio, certamente vai se desapontar depois de encontrar um monte de seixos e perceber que, muito provavelmente, nenhum deles corresponde a esse valor médio abstrato.
O método estatístico proporciona um termo médio ideal de uma conjuntura de fatos, e não o quadro de sua realidade empírica. Embora possa fornecer um aspecto incontestável da realidade, pode também falsear a verdade factual, a ponto de incorrer em graves erros. Isso acontece, de modo especial, em teorias baseadas em estatística. Os fatos reais, porém, evidenciam-se em sua individualidade; de certo modo, pode-se dizer que o quadro real se baseia nas exceções da regra, e a realidade absoluta, por sua vez, se caracteriza-se predominantemente pela irregularidade. (Jung, 2011, p.14).
A situação a que está submetido o psicoterapeuta é a de que ele sempre estará diante de um indivíduo, ou seja, uma exceção e irregularidade relativas, algo que em última análise não pode ser conhecido nem comparado. Todavia, sem que o homem seja descrito como unidade estatística nenhuma característica geral lhe poderia ser atribuída, e sem isso seria impossível uma psicologia geral que se baseia no quadro abstrato do homem médio, alijado de todos os traços singulares, justamente os mais importantes para a compreensão do homem. Ao que me parece, o intuito da psiquiatria pende para o lado do conhecimento sobre o homem, essa ciência transmite uma cosmovisão irreal, apesar de racional, em que o indivíduo desempenha um papel marginal. É importante salientar que o método da Psicologia Complexa não advoga um individualismo, ou que só se pode conquistar a si mesmo, ou conseguir a cura de sua neurose por meio de uma atitude individual. Existem atitudes coletivas que possibilitam a solução de conflitos típicos, entretanto, como asseverou Jung, normalmente a dificuldade do paciente é um problema pessoal que não pode se enquadrar numa norma coletiva, e, para que a totalidade da personalidade permaneça viável, ele precisa encontrar uma solução individual. Raramente, ou quase nunca, uma norma coletiva pode substituir uma solução individual sem violentar a totalidade da personalidade do indivíduo. Pois, me adiantando um pouco, há na neurose uma unilateralidade da consciência que leva a uma separação entre consciência e inconsciente.
O intuito do viés epidemiológico é estudar a distribuição do fenômeno, nesse caso as afecções, nas populações humanas e sua distribuição geográfica, além de classificar. O aspecto psicológico a que aludi, o diagnóstico dos complexos, permanece camuflado ao se receber, simplesmente, a classificação de “depressão”. A perspectiva do psicoterapeuta deve ser a de, paradoxalmente, ter em mente os dois lados dessa antinomia entre o conhecimento e a compreensão. Tendo sempre em mente que o que é vantagem para o conhecimento, redunda em desvantagem para a compreensão. Está o psicólogo, fatalmente, exposto a uma colisão de direitos entre duas perspectivas opostas e excludentes, e tal conflito só se resolve por uma via dupla de pensamento em que se faz uma coisa sem jamais perder de vista a outra.
Certamente, ao falar de neurose, ou afecções, ou perturbações psíquicas, ou mesmo depressão, o que nos concerne aqui, os termos possuem um conotações diferentes tanto do senso comum do leigo, quanto da perspectiva psiquiátrica, que se filia de maneira exclusiva as ciências naturais. O que significa neurose para a psicologia complexa? E o que significa depressão? O leitor há de ter por certo que Jung faz uso do método das ciências naturais, o método empírico descritivo e que, por mais desejável que seja a avaliação quantitativa, não se pode prescindir do método descritivo qualitativo, pois os fatos mais importantes com que lida o psicólogo são, como vimos, terrivelmente complexos e só podem ser apreendidos pela descrição casuística. O método descritivo das ciências naturais não pode ser sobrecarregado por pressupostos teóricos e filosóficos. E, novamente, por força do método, temos de aludir à posição nada confortável do psicoterapeuta que deve também ser um pesquisador, pois, no dizer de Jung, “em cada caso singular, cientificamente observado, devemos levar em consideração o fenômeno anímico em sua totalidade” (2003).
Os conceitos, em psicologia complexa, têm por único objetivo nomear um grupo de fenômenos análogos e afins. Creio que não é ocioso reafirmar esse ponto, pois existe um insidioso e difundido preconceito entre os que se dizem “Junguianos” de que os conceitos devem ser comunicados ao paciente, como se fossem um diagnóstico médico. Mas, ao fazer isso, o suposto psicoterapeuta, abandona a posição proposta por Jung de espelho dialético. Essa atitude revela falta de espírito crítico e se transforma numa violência contra o paciente, pois coloca o psicoterapeuta como uma autoridade capaz de fazer afirmações válidas ao seu respeito, nesse caso abrem-se duas sendas: ou violento o outro (o que leva a terapia por sugestão), ou corro o risco de eu mesmo sucumbir ao seu poder de persuasão. Infelizmente poucos espíritos são capazes de sustentar uma posição tão irremediavelmente paradoxal. Essa atitude, a que aludi, revela que o “psicoterapeuta” está preso ao preconceito segundo o qual o nome explica ao mesmo tempo os fatos psíquicos que ele denota. Anima, sombra, persona, para aquele que é realmente versado no método representam, para utilizar uma alegoria proposta por Jung, não mais do que meros algarismo e, seu sistema conceitual, não mais do que uma rede trigonométrica recobrindo uma área geográfica. É fundamental na prática clínica não sucumbir à tentação de substituir a realidade por palavras!
Mas, voltando à vaca fria, o que caracteriza a neurose é a dissociação da personalidade. A neurose não pode ser facilmente localizada e circunscrita, pelo contrário representa sintoma de uma atitude errônea da personalidade global. Por esse motivo não se pode esperar por uma cura com um tratamento que se limite à doença, o tratamento deve levar em consideração a personalidade como um todo. Os complexos são subtraídos ao controle da consciência, são fatos objetivos, e jamais podem ser reduzidos a mero arbítrio. O inconsciente possui uma autonomia quase demoníaca, que escapa ao controle de qualquer iniciativa racional bem intencionada, e a cisão que caracteriza a neurose pode ser descrita como um isolamento do sujeito consciente em relação a sua natureza humana básica. A neurose consiste basicamente de uma alienação dos instintos e uma separação da consciência dos fatos fundamentais da alma. O sofrimento neurótico é um logro inconsciente e não tem mérito moral como o sofrimento por coisas verdadeiras. O processo de conscientização que é necessário para o desaparecimento dos sintomas neuróticos representa uma tortura para aquele que passa por ele, em compensação, seu sofrimento passa a ter sentido e se refere a um mal verdadeiro. Isso por que só se pode alterar algo que esteja na consciência.
Muitas vezes, ao falarmos em complexos e sua atuação na consciência, o leigo pode ter a impressão de que estamos a falar de alguma demonologia primitiva, de casos de possessão que melhor figurariam no breviário de algum padre interessado em exorcismo, e, psicologicamente, essa impressão é extremamente precisa! Muitas pessoas estranham o interesse junguiano por mitos – outros abusam desse interesse – é necessário salientar que esse interesse se situa completamente no plano científico e psicológico, não se trata de metafísica ou teologia, mas de ciência psicológica. Não é supérfluo sublinhar que a psicologia não se ocupa das coisas “em si mesmas”, mas exclusivamente da maneira como são imaginadas. A minha definição preferida de mito, das que Jung nos legou, e que traduz com clareza essa aparente demonologia é que os mitos são, antes de mais nada, a manifestação da essência da alma. Toda mitologia é uma espécie de projeção do inconsciente coletivo. Para a alma do primitivo a observação exterior deve corresponder a um acontecimento anímico. A existência dos complexos é um resíduo notável do estado de espírito primitivo, ou seja, um elevado grau de dissociabilidade. Os complexos, assim como os deuses, demônios elfos e fantasmas são experiências psíquicas sumamente impressionantes. Quando um complexo se instala na superfície da consciência ele progressivamente assimila a consciência do eu, que já não pode mais evitá-lo, resultando disso a dissociação neurótica. As histórias de fantasmas, tão universalmente difundidas, dão testemunho notável desse processo[1].
A depressão corresponde a um quadro particular no panorama mais geral da neurose. Finalmente, depois de todos esses prolegômenos, chegamos ao que foi prometido no título desse escrito. Pois bem, M. L. von Franz, em seu conhecido seminário sobre alquimia, ao tratar desse tema no mundo grego e árabe (como se sabe, no início do que se convencionou chamar de idade média, foram os árabes os herdeiros da cultura grega, e foi por meio deles que a filosofia e ciência grega retornaram à Europa séculos depois) teceu considerações sobre um dos textos de Olimpiodoro e, ao traçar paralelos ao chumbo, para interpretar a passagem que fala de Osíris sufocado pelo chumbo, traduz a passagem em termos psicológicos fazendo alusão a depressão.
Na antiguidade o chumbo era o metal do planeta Saturno e possuía, como o planeta, qualidades ambíguas: no aspecto negativo depressão, e, no positivo, depressão criativa. Saturno era o deus dos aleijados e criminosos, e, de maneira ambivalente, também das pessoas criativas e artísticas. As confissões de muitas pessoas deprimidas, em termos psicológicos, soam como chumbo. Numa depressão a pessoa se sente pesada, incapaz de sustentar o próprio peso e se levantar da cama ou de uma cadeira, deixa-se ficar onde está como um bloco pesado.
Como a palavras sugere, numa depressão a pessoa é pressionada para baixo, comprimida, em geral porque uma parte da libido psicológica está embaixo e tem que ser resgatada; a verdadeira energia da vida caiu numa camada mais profunda da personalidade e só pode ser alcançada através de uma depressão. Assim, a menos que haja uma psicose latente, as depressões devem ser encorajadas e as pessoas, aconselhadas a entrar nelas e ser deprimidas (...) e, se as depressões dizem que a vida nada significa e que nada vale a pena, deve-se aceitar isso e perguntar o que fazer. O que há a fazer é ouvir, mergulhar cada vez mais fundo, até se atingir o nível da energia psicológica onde alguma ideia criativa pode surgir; de repente, no fundo, aparecerá um impulso de vida e de criatividade que havia sido ignorado. (Franz, 1993, p.87).
O que Franz descreve corresponde ao fenômeno, bem conhecido da antropologia, que Jung denominou de perda da alma. O livro de Mircea Eliade O Xamanismo está repleto de exemplos da maneira como a mentalidade primitiva, mais sujeita a esse fenômeno, o compreendia. Joseph Campbell, para ilustrar o mesmo fato psicológico, gostava de utilizar como paralelo algo bem mais singelo, o conto de fadas A Princesa e o Sapo. Vou tentar resumir o melhor possível à interpretação de Campbell. O conto de fadas em questão trata do nosso problema de uma perspectiva feminina – ao final desses escritos retomarei esse ponto – para o mitólogo estadunidense masculino é igual à ordem social e o feminino a ordem natural. A função do homem é agir a da mulher é existir, pois ela é a vida e a totalidade da vida, o homem é apenas o agente do seu poder. Ele gostava de citar Spengler que afirmou “O Homem faz história. A mulher é a história”, a mulher é “Isso”, a tarefa do homem é relacionar-se com a vida a da mulher tornar-se vida, em termos mitológicos, a mulher representa a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é aquele que passa a conhecer. Existe, no entanto, um sério problema para as mulheres de nosso tempo, muitas delas passaram a crer que a realização masculina é adequada para todos.
A garotinha tem uma bola de ouro. O ouro é o metal incorruptível, a esfera é a forma perfeita e o círculo é a sua alma. Ela gosta de ir até o limiar da floresta, o abismo, e de se sentar ao lado de uma lagoa, uma pequena fonte, que é a entrada para o mundo inferior. Aí começa a jogar sua alma para lá e para cá: joga a bolinha e pega, joga a bola e pega, joga a bola e – ping! – perde-a, e ela cai na lagoa.
Ela começa a chorar. Ela perdeu sua alma. Isso é a depressão. Isso é a perda de energia e da alegria de viver. Alguma coisa escapou. Ela é a contrapartida de Helena de Tróia raptada na história clássica da Ilíada: Helena de Tróia foi raptada, e eles a querem de volta.
Assim, a pequena bola caiu, sua alma foi engolida pelo lobo do mundo interior. Bem, quando a energia cai dessa maneira, o poder que está no fundo da lagoa, o habitante do mundo inferior, emerge – um dragão ou, neste caso, um sapinho. Ele diz: “Qual o problema Menininha?” E ela diz: “Perdi minha bola de ouro.” E ele: “Vou pegá-la para você.” Ela diz: “isso seria muito bom”. E ele diz: “O que você me dará?”. Ela precisa abrir mão de alguma coisa, é preciso fazer uma troca, e ela diz: “Eu lhe darei minha coroa de ouro.” Ele diz: “Eu não quero a sua coroa de ouro.” “eu lhe dou o meu belo vestido de seda.” “Não quero o seu belo vestido de seda.” Bem, exige ela, “e o que você quer?” “quero comer a sua mesa, estar com você como seu amigo, dormir com você em sua cama.” Assim, subestimando o sapo, ela diz: “Está bem, farei isso.”
O sapo mergulha e traz a bola. Agora ele é o herói que participa da aventura. Ela, sem sequer agradecer, pega a bola e vai para casa, e ele vai saltando atrás dela, dizendo: “espere por mim.” Ele é lento.
Ela chega em casa e, naquela noite, enquanto está jantando com Rei Papai e Rainha Mamãe, tendo uma bela refeição, essa criatura verde pula nos degraus da frente: plop, plop, plop. A menina empalidece e seu pai lhe pergunta: “Qual o problema? O que é isso?” Ela diz: “Ah, é um sapinho que eu conheci.” E ele diz: “Você lhe fez alguma promessa?”
Agora o princípio moral faz a sua aparição: é preciso correlacionar todas essas coisas. E quando ela responde: “Sim”, o rei diz: “Bem, então abra a porta e deixe-o entrar”. O sapo entra, aparece na sala e diz: “Quero sentar-me à mesa. Quero comer no seu prato de ouro.” Claro que isso estraga o jantar. Eles terminam a refeição e ela vai para a cama. Ele sobe as escadas atrás dela, todo molenga, e bate na porta, dizendo: “Quero entrar.” Ela abre a porta e deixa-o entrar. “Quero dormir em sua cama com você.” Agora isso é mais do que ela pode tolerar.
Há várias maneiras de finalizar essa parte da história, mas a de que mais gosto é aquela em que a menina pega o sapo e o atira contra a parede. O sapo se abre, e dele sai um belo príncipe, com cílios como os de um camelo. Ele também tinha seus problemas: foi amaldiçoado por uma bruxa e transformado em sapo. Esse é o garotinho que não teve coragem de se tornar adulto. Ela é a garotinha que está prestes a se tornar adulta. Ambos recusam sua própria condição, mas cada um ajuda o outro a solucionar o dilema, e é uma bela experiência.
Na manhã seguinte, segundo a história, depois de se casarem, aparece uma carruagem na porta da frente. Era a carruagem dela. Afinal ele era um príncipe cujo reino ficou desolado desde que ele foi transformado em sapo. Ele e sua mulher entram na carruagem e, após a partida, ouvem o um som forte: Bang! Ele pergunta ao cocheiro: “O que houve, Henry?” E Henry responde: “Bem, desde que você se foi, meu Príncipe, surgiram quatro anéis de ferro em torno do meu coração. Um deles acaba de se romper.” Enquanto seguiam viagem, ouviram mais três “bangs”, e então o coração do cocheiro voltou a bater adequadamente.
O cocheiro simboliza a terra que tem no príncipe o poder gerador e governador. Ele fracassou em seu dever e foi para o mundo inferior, mas encontrou nele sua noivinha. (Campbell, 2002, pp.225 a 227)
Gostaria que o leitor prestasse especial atenção a passagem relativa ao cocheiro e seu simbolismo, pois retornarei a esse aspecto mais a frente. Vemos o fenômeno aludido por Franz, Campbell até mesmo utiliza uma terminologia semelhante. A garotinha perde a sua bola e, quando surge o sapinho das profundezas ela precisa passar por um confronto moral.  Jung afirmou, que a existência de complexos gesta três tipos de problemas, três questões capitais: o problema terapêutico, o problema filosófico e o problema moral. A neurose é um problema moral, ou melhor, ela nos força a encarar um problema moral ao atravessá-la, pois seu sofrimento é um logro, somente quando nos dispomos a encarar esse sofrimento e vivê-lo até o seu amargo fim, no processo que passa por aquilo que Zimmer chamou de autodissolução do herói. O sapo, o ser de aparência repugnante, ou insignificante, é justamente aquele que recupera a alma da garotinha e com quem ela precisa lidar (ele também deve lidar com ela, que é um tanto mimada e não muito boa em manter a palavra empenhada) ao lidar conscientemente com o sapo, que sai das profundezas onde levava uma vida autônoma sem que a princesa sequer suspeitasse de sua existência, ele pode passar por uma transformação. Só se pode mudar algo que está na consciência, tudo o que cai nas mandíbulas do inconsciente adquire uma qualidade de automatismo e compulsividade. Nosso grau de liberdade empírica é proporcional à extensão de nossa consciência. Perceba, estimado leitor, que na depressão a liberdade do indivíduo se acha extremamente cerceada, e isso acarreta uma grande quantidade de sofrimentos e dores a quem padece desse mal e também as pessoas que o cercam, não raro, contra sua vontade sua vida se vê completamente arruinada.
É importante anotar que a psicologia dos neuróticos diferencia-se daquela de indivíduos considerados normais por traços muito insignificantes, até mesmo pelo fato de que em nossos dias poucos podem ter a absoluta certeza de não serem neuróticos. Mas dito em outras palavras, o que salta aos olhos na restrição de liberdade da personalidade empírica no neurótico é a característica que é normal e corriqueira do dado psíquico ser algo de objetivo, que escapa ao controle da consciência. Da mesma maneira, a depressão é um processo normal, e, seu estado patológico, como afirmei antes, é uma condição insólita, exagerada. Antes de toda e qualquer atividade criativa, seja um novo livro a ser escrito ou quadro a ser pintado, as pessoas criativas são susceptíveis de passar por uma depressão, alguns em escala menor. A libido da consciência escoa para o inconsciente e vai ativar as imagens da fantasia. Jung compreende fantasia como fantasma e atividade imaginativa, nos interessa a segunda. A energia psíquica pode estar sujeita a direção voluntária também à fantasia pode ser produzida conscientemente em sua totalidade ou em parte, nesse caso não passa de uma combinação de elementos conscientes. A fantasia espontânea é acionada por uma atitude intuitiva de expectativa ou pela irrupção de conteúdos inconscientes na consciência. Jung distinguia entre fantasia ativa e passiva, a primeira causada por uma atitude orientada para a percepção dos conteúdos inconscientes. A segunda aparece de forma evidente e o sujeito permanece passivo, é um tipo de automatismo psíquico. Essa segunda possibilidade, a da fantasia passiva, é do que fala Franz ao falar da depressão de que sofrem as pessoas criativas, isto é, mais permeáveis ao inconsciente, de acordo com Jung essas fantasias.
Elas só podem ocorrer numa dissociação relativa da psique, pois seu aparecimento pressupõe que quantidade considerável de energia se tenha subtraído ao controle consciente e se apossado de materiais inconscientes. (...) É provável que a fantasia passiva tenha sua origem num processo inconsciente e oposto à consciência mas que reúne em si quase tanta energia quanto a atitude consciente e, por isso, é capaz de quebrar a resistência desta. (Jung, 1991, p.407).
Trata-se de um processo normal, de ritmos de introversão e extroversão, sístole e diástole como lhes chamou Goethe. Acontece que esses ritmos menores aparecem em grande escala na depressão, ou seja, surge de maneira patológica, isto é, insólita e exagerada. Isso nos diz que, de maneira geral, a pessoa deprimida desprezou certos fatores que se constelaram embaixo e atraíram a libido, daí resultando a apatia. Pode se tratar, igualmente, de um sintoma pré-psicótico, quando irrompe a psicose o que surge a consciência também é um conteúdo criativo, mas que é tão poderoso que pode destruir a personalidade. Franz, ao interpretar psicologicamente o Chumbo alquímico no que diz respeito à depressão, assevera que ele é essa sensação de peso e apatia que sufoca o conteúdo do inconsciente. Na simbólica do Chumbo, tido como venenoso pelos velhos alquimistas, existe também o elemento da loucura. Segundo Franz, isso alude ao fato que se um estado depressivo for explorado encontramos normalmente, um desejo violento e não sacrificado ou um conteúdo criativo – que como vimos é um processo oposto à consciência e que reúne tanta energia quanto ela – a depressão pode significar que no primeiro caso essas pessoas estão deprimidas por terem frustrados certos desejos desvairados, normalmente pueris e a depressão possui a qualidade do desejo frustrado. Algumas pessoas possuem em seu íntimo uma criança frustrada. Paradoxalmente, é no Chumbo que está encerrado Osíris. A fantasia frustrada normalmente alude a um estado paradisíaco, elas desejam tudo, e são inteligentes o bastante para saber que a vida não é assim, daí a frustração. Mas a fantasia em si mesma nada tem de doentio, ela é inteiramente legítima, trata-se de uma ideia religiosa que naturalmente é projetada na vida exterior e desejada concretamente no aqui e no agora, perde-se, para utilizar a expressão que era tão cara a Campbell, o valor de metáfora dessa ideia religiosa. O que é infantil é o modo como à pessoa quer realizar fantasia, mas ela, por si mesma é algo de extremamente precioso e que nada tem de mórbido. Para Franz, o significado alquímico de extrair o Osíris do chumbo era,
(...) salvar a fantasia que é propiciadora de vida e eliminar a puerilidade do desejo para concretizá-la. Isso é terrivelmente delicado. A grande tarefa a enfrentar é salvar o núcleo, a fantasia do Si-mesmo e eliminar toda a infantilidade, o desejo primitivo, etc que o cerca. O que significaria retirar o Osíris do esquife de chumbo. (Franz, 1993, pp. 91 e 92).
É possível ver no conto de fadas narrado por Campbell, de maneira singela, justamente a superação da infantilidade do desejo para se chegar ao núcleo, o esquife em que estava encerrado o núcleo sadio da fantasia era a pele de sapo, que foi quebrada quando a menina, a garotinha que está prestes a se tornar adulta e o garotinho que não teve coragem de se tornar adulto encaram sua condição. Paradoxalmente, dentro do esquife, da pele do sapo repugnante está o príncipe. Além disso, o conto de fadas nos fornece outro paralelo dos mais importantes, os anéis de ferro envolvendo o coração do cocheiro, o metal do planeta marte, ligado a ação. O cocheiro, a terra estava imobilizada, incapaz de agir, há em toda neurose um aspecto coletivo, expresso na fábula pelo cocheiro, como asseverou Jung,
A neurose está intimamente entrelaçada com o problema do próprio tempo e representa uma tentativa frustrada do indivíduo de resolver dentro de si um problema universal. (Jung, 1998, p.12)
Com o intuito de explorar a maneira como esse tema, da perda da alma, tem sido tratado em nossa cultura, vou analisar em detalhe um paralelo que me é caro, a animação japonesa A Viagem de Chihiro. O título original já mostra a relação da película com o tema, em japonês o título seria algo como sen to chihiro no kamikakushi (千と千尋の神隠し) o nome da protagonista é formando por dois caracteres chineses chamados kanjis, o primeiro é que pode ser pronunciado (os kanjis possuem dois tipos de pronuncia kunyomi e onyomi e diversas maneiras de se falar uma mesma letra chinesa, o que pode parecer um pouco confuso e o título original faz uso dessa característica) sen (セン) ou chi () e sozinho significa mil. O segundo caractere pode se pronunciado como jin (ジン) ou, na forma de verbo, tasuneru (たず・ねる) que significa perguntar, inquirir, questionar, procurar. Se traduzido literalmente e de uma maneira livre Chihiro significa mil perguntas. No início do filme ela perde o próprio nome, a bruxa rouba um dos caracteres deixando apenas o primeiro sen, fazendo com que ela passe a não se recordar de seu nome original o que a enfeitiça. O modo como ela é enfeitiçada já evidencia o fenômeno da perda da alma, mas o segundo termo do título kamikakushi (神隠し) é de tradução mais difícil, ele designa um estado de espírito especial, que pode ser observado de maneira quase universal nos mitos, ele significa ser “sequestrado pelos deuses”, algo da esfera humana desaparece e é levada para a esfera divina, exatamente como no caso da bola de ouro do conto de fadas narrado por Campbell, ou os inúmeros casos narrados por Eliade em sua obra sobre xamanismo. O que há em comum com relação aos diversos relatos de adoecimento e tratamento pelos xamãs é que o papel do xamã é resgatar a alma do doente que se perdeu na esfera divina. Em certo sentido, kamikakushi é um nome japonês para perda de alma. Em uma tradução ainda mais livre do título teríamos: de mil a mil perguntas no sequestro dos espíritos.
O filme principia com a menina Chihiro em um estado de apatia e tristeza dentro do carro dos seus pais, eles estão de mudança e ela não deseja se mudar, pelo contrário, a ideia da mudança à lança num estado de tristeza e letargia. Ela se deixa ficar deitada, abatida, no banco de trás do carro, agarrada a um buquê de rosas de despedida com seu nome. A metáfora é pujante, no conto do príncipe sapo, ambos os protagonistas estavam presos em sua própria atitude pueril, incapazes de dar o passo adiante, incapazes de mudar. Chihiro está de mudança e se agarra à última lembrança de seu passado, as rosas, nada mais efêmero do que rosas! Chihiro se vê lançada contra a sua vontade na mudança, o filme deixa claro desde o início um dos fatores cruciais para o desenvolvimento da personalidade, para o confronto com o inconsciente: a necessidade. Há aqui igualmente, uma representação extremamente poética de um dos aspectos mais tristes da neurose, por mais que a vida de alguém que padece de uma depressão esteja estagnada, o resto do mundo continua a se mover, o relógio continua a bater, mas agora ele é algo monstruoso e assustador, como o crocodilo com um relógio no estômago que perseguia o Gancho. Não se deseja crescer, a criança frustrada que habita no íntimo dessas pessoas não se importa com o tempo, mas ele é implacável e passa a ser visto como reptil monstruoso que a tudo devora.
Assim como Chihiro, Hako também está em apuros, ele também foi enfeitiçado e perdeu o seu nome, ele é o dragão das profundezas, que ao invés de devolver a bola, a alma de Chihiro, retirou ela por inteiro das águas do submundo quando ela caiu em um riacho na mais tenra infância. Hako é o nosso príncipe sapo. Seu nome original, antes de ser roubado (ou encurtado) era Nigihayami Kohaku Nushi (饒速水琥珀主) que significa o kami (espírito, deus) do ligeiro rio das brasas.  Após ser enfeitiçado ficou apenas (ハク), esse caractere sozinho não tem um significado próprio, mas, mesmo sozinho também pode significar brasa. Esse kanji é formado por dois radicais o primeiro significa rei – o que é bastante significativo – e o segundo branco. É interessante como a imagem do complexio opositorum que é o si mesmo está presente em seu nome completo “rio das brasas”, do fogo na água. Essa imagem, do fogo das profundezas, é discutida por Jung em sei Aion, e é um dos símbolos tradicionais do espírito santo. O nome Haku, brasa, da conta de algo que ainda queima, ainda possui calor e intensidade, mas está fraco e prestes a se apagar. Ele e Chihiro se salvam juntos, ele foi amaldiçoado por uma bruxa, mas sem isso não poderia ter encontrado Chihiro.
A interessante simbólica presente no nome de Hako (rio das brasas) possui uma história venerável, desvendada por Jung no já referido tratado, e está relacionado ao simbolismo do peixe na alquimia, em que se fala de um peixe redondo e sem ossos, tratando-se não de um peixe no sentido moderno, mas de um molusco (também um habitante das profundezas). O texto alquímico afirma que o peixe redondo ao ser aquecido reluz, o que significa que já existe nele um calor que se manifesta como luz. Há nesse texto a influência de Plínio, pois este descreve um peixe que causava admiração aos filósofos, a stella marina, pois era muito quente e queimava tudo o que tocasse no mar, queimava como se fosse fogo. A atitude do medievo, ávida por símbolos, rapidamente se apoderou da lenda da stella marina, em virtude das características desse peixe, de possuir um calor tão forte que não apenas queima tudo o que toca, como o transforma imediatamente em seu alimento, Nicolau Causino afirmou que significava “veri amoris vis inextinguibilis” (a força inextinguível do verdadeiro amor), que, como vemos na película, é a força que salva os dois protagonistas. Para o medievo, tudo aquilo de passageiro e acidental, era apenas uma imagem do drama divino, rapidamente associou esse fogo que arde nas águas com o espírito santo, capaz de “inflamar os corações mergulhados no mar do pecado”, em virtude disso o peixe significa também o caritas, o amor divinus.
Chihiro não perde apenas o nome (na verdade Hako logo restitui seu nome), mas também os seus pais, que ao ingerirem a comida do submundo ficam prisioneiros, e se transformam em porcos. Há uma imagem muito bela no início, é dia quando eles chegam e há um regato e uma vau que é facilmente atravessado. Normalmente interpretamos a água como o inconsciente, mas há que se levar em consideração sempre o contexto psicológico. No início Chihiro dá sinais de estar deprimida, triste e abatida, a água da vida se afastou dela. Mas a noite, quando ela tenta fugir, a água a impede, o inconsciente transbordou, ela está presa no mundo dos deuses. Não fosse a integridade da personalidade, que se pode ver pela devolução do cartão com seu nome escrito, isso bem poderia representar a irrupção de uma psicose. Afastada dos pais, ela precisa lutar para se salvar e salvar seu amado Hako, por sinal, ela vai descobrindo que o ama no decorrer da história. No início ela não se recorda dele, nem de que o ama, se se tratasse do conteúdo de uma neurose, dos complexos, a coisa seria exatamente assim. Ao ser questionada a paciente sequer saberia responder por que sofre, e tudo o que dissesse apenas encobriria essas fatos, apenas no decorrer do tratamento isso poderia se manifestar. Chihiro anseia por algo perdido, mas que ela não se recorda do que seja, ela ama e nem sabe que ama! Apenas ao final, depois de todas as peripécias, quando Hako perde as escamas de dragão, os dois se recordam de que se amam. Esse é um dos momentos mais sensíveis e belos da película.
Chihiro descobre em meio a suas peripécias o Eros feminino, aquilo que liga e que une a todos, ela descobre um modo de agir como mulher e recusa o poder e a ganância, representado pelo vazio, que sua atitude também redime. Ela não busca a realização masculina, ela é uma heroína de verdade, uma mulher que caminha na senda do herói. Diferente de personagens populares, como a Viúva Negra, Lady Sif, ou mesmo Lara Croft, elas apenas emulam a realização masculina. Não creio que essas que eu citei sejam heroínas, e Miayzaki concordaria comigo, ele preza a mulher e o feminino, há três mil anos nós homens tomamos o mundo das mulheres e temos feito uma terrível bagunça desde então. Chihiro é uma resposta, a Viúva Negra não, se a liberação feminina significar apenas que elas podem ser tão estúpidas e violentas como os homens é melhor deixar as coisas como estão, estamos fazendo um ótimo trabalho destruindo tudo e sendo violentos. Chihiro é uma representação da realização tipicamente feminina, pelo eros. Ela perde a sua alma, e mesmo na gananciosa e violenta bruxa ela encontra, para além do chumbo, o deus ali aprisionado. Aqui, infelizmente, ainda há uma cisão, e isso é triste, é na irmã gêmea da bruxa que ela encontra o sentido mais profundo de sua neurose (isso tomando a liberdade poética de pensar Chihiro como uma personalidade), a fantasia é libertada do desejo pueril de concretização no aqui e agora, no mundo dos deuses ela encontra Hako, a realização de sua nostalgia do amor, e com isso escapa da prisão que podem representar esses conteúdos. A água ainda estava alta quando ela foi visitar a irmã gêmea da bruxa, mas agora ela possuía um barco, mesmo que rudimentar. Sua experiência lhe permitiu adquirir uma ferramenta preciosa. O barco é um símbolo baseado na ideia de uma construção humana, que possibilita ir onde não se pode ir a pé ou por outro meio, pois ele se desloca sobre a água. Existe uma qualidade uterina no barco que diz respeito ao seu significado básico. O significado mais importante do barco é como instituição, para representar a doutrina de Buda, a Igreja, pois essas também são criações humanas, mas num sentido especial, não são criações no sentido moderno do termo, mas o resultado da fantasia criativa, a mesma com a qual Chihiro se defronta durante todo o filme e é o que lhe dá a firmeza para escapar e redimir não só a si mesmo, mas a Hako e a seus pais.
A mensagem de Franz, assim como a de Miayzaki, é um alento em meio a tanta treva e sofrimento, no fundo da depressão, se encararmos o sofrimento e loucura com coragem e tenacidade, há um sentido de vida mais elevado, existe um deus a ser encontrado. Cura não significa simplesmente a cessação do sintoma (isso se chama ab-reação) cura, em psicoterapia, é tornar-se quem se é, verdadeiramente, quem estamos destinados a ser, encontrando um sentido nesse nosso mundo tão complicado. Infelizmente, nenhum psicoterapeuta que se preze pode prometer tal coisa, pois esse processo é Deo concedente, e, se é que depender de algo, é da firmeza em se enfrentar as águas que transbordam da alma e ameaçam nos afogar e a coragem para não titubear, não olhar para trás, para não virarmos estátuas de sal.


[1] “Os espíritos são complexos do inconsciente coletivo que tomam o lugar de uma adaptação perdida ou tentam substituir uma atitude inadequada de todo um povo por uma nova atitude. Os espíritos sou ou o fruto de fantasias patológicas ou ideias novas mas ainda desconhecidas” (Jung, 1986, p.255).