A psique não pode ser apreendida numa teoria; tampouco o mundo. As teorias não são artigos de fé; quando muito, são instrumentos a serviço do conhecimento e da terapia; ou então não servem para coisa alguma. Jung.
A depressão tornou-se, indubitavelmente, um tema dos mais
importantes para o debate psicológico e a saúde pública. Muitos elementos podem
ser elencados para demonstrar essa importância, mas talvez um dos mais
dramáticos sejam os números relacionados ao consumo de antidepressivos. A
imprensa estadunidense noticiou, a não muito tempo, um estudo do Centers for Disease Control and Prevention que
indicava um espetacular aumento de 400% no consumo de antidepressivos desde
1988, o que transformava esses medicamentos no mais consumido pela faixa etária
que vai de 18 a 44 anos, e 11% dos americanos a partir de 12 anos começam a
utilizar tais drogas. É preciso, por certo, algum cuidado ao associar esse
aumento de maneira exclusiva à depressão, isso por alguns motivos: existe um
elevado índice de automedicação; tais drogas não são utilizadas exclusivamente
para o tratamento da depressão, podendo ser utilizadas também para combater
transtornos de ansiedades e outros problemas; a definição psiquiátrica hodierna
dessa afecção é ateórica, tendo se tornado meramente descritiva e útil apenas
para fins epidemiológicos e, mesmo assim alguns pacientes que são
diagnosticados não se enquadram nos critérios previstos pelo DSM. Mesmo com
todas essas reservas, são números impressionantes. Não é debalde que a OMS
(Organização Mundial de Saúde) classificou a depressão como “uma das doenças
mais incapacitantes do mundo”.
Ao tratar da perspectiva da Psicologia Complexa no que
concerne à depressão, creio que se faz necessário um cotejamento com o que a
psiquiatria atual considera depressão, por mais que o conceito psiquiátrico
seja de escassa, ou mesmo nula, utilidade psicológica, é por meio dele que o
tratamento medicamentoso dessa afecção é realizado e muitos pacientes encaminhados
a psicoterapia. É importante salientar que apenas médicos e dentistas podem
legalmente prescrever medicamentos, e que, o tratamento medicamentoso, é o mais
difundido e, por certo, o que pode de maneira mais cômoda e rápida ter seus
resultados mensurados pelos métodos estatísticos.
A
depressão está elencada no Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders entre as Psychiatric Disorders (distúrbios
psiquiátricos), mais especificamente no subgrupo das Mood Disorders (distúrbios de humor). Esse subgrupo se caracteriza
por, eu traduzo “os distúrbios dessa categoria incluem aqueles em que o sintoma
primário é a perturbação do humor. Em outras palavras, inapropriado, exagerado
ou limitada variação de humor”. Entre os distúrbios dessa categoria está a Major Depressing Disorder (Grande
distúrbio depressivo), os outros são: Bipolar
Disorder, Cyclothymic Disorder, Dysthymic Disorder.
No
Major Depressive Disorder, a
etiologia pode ser resumida na primeira frase dessa entrada no texto, eu
traduzo, “estudos mostram que a depressão é influenciada por ambos os fatores
biológicos e ambientais”. Uma etiologia bastante vaga, mas essa não é a crítica
que se pode, ou deve fazer, no que diz respeito à perspectiva da Psicologia
Complexa. O diagnóstico se faz por meio da verificação da existência de alguns
dos sintomas elencados, são eles: humor depressivo (como sentimentos de
tristeza e vazio); redução do interesse em atividades que eram consideradas
agradáveis e distúrbios do sono; perda de energia ou significativa redução do
nível de energia; dificuldade de concentração, manter uma conversa, prestar
atenção, ou tomar decisões que deveriam ser muito simples; pensamentos
suicidas. O tratamento indicado pode ser uma combinação de psicoterapia e
medicamentos, a que se segue uma lista de medicamentos indicados e sobre a
psicoterapia se diz “é útil em ajudar o paciente a compreender os fatores
envolvidos em criar ou exacerbar a sintomatologia depressiva”. Não se
especifica o que se entende por psicoterapia, mas fica claro o seu papel
auxiliar no tratamento. Como veremos, esse tipo de perspectiva, impõe uma
imagem de mundo que exclui a psique humana real.
Existem
diversas diferenças entre a perspectiva de Jung e a psiquiatria hodierna, e
qualquer uma delas poderia ser trazida à baila primeiro como a mais importante.
Nesse caso, eu principio pelo papel do diagnóstico em psicoterapia, visto ser
essa uma etapa crucial no tratamento medicamentoso e conditio sine qua non do mesmo. Há, no opus Junguiano, uma diferença entre diagnóstico clínico e
diagnóstico psicológico que é crucial compreender para fazer o contraste entre
as duas perspectivas. Jung é bastante claro quanto a esse ponto.
O médico comum parte do pressuposto de que o exame do paciente deve levar, dentro da medida do possível, ao diagnóstico da sua doença, e, uma vez feito o diagnóstico, à decisão quanto aos pontos essenciais do prognóstico e da terapia. A psicoterapia constitui uma visível exceção a essa regra: para ela o diagnóstico é extremamente irrelevante, na medida em que – exceto um nome mais ou menos adequado para o estado neurótico do paciente – nada se ganha, principalmente no que diz respeito ao prognóstico e à terapia. Contrapondo-se declaradamente ao resto da medicina, em que de um determinado diagnóstico, decorre eventualmente um tratamento específico e um prognóstico relativamente seguro, o diagnóstico de qualquer neurose psíquica significa, no máximo, que um tratamento psíquico é recomendado. Quanto ao prognóstico, ele é extremamente independente do diagnóstico. (1981, pp. 82 e 83).
O
texto que citei vem bem a calhar, pois nele Jung trata das diferenças entre a
medicina e a psicoterapia. Em outro de seus escritos ele afirma que as
perturbações nervosas (com seus variegados nomes, em nosso caso depressão) são
de origem psíquica e exigem um tratamento da alma, esta mesma alma é que padece
e suas funções “mais complexas e profundas” mal podem ser incluídas no campo da
medicina “nesses casos o médico precisa ser psicólogo, isto é, um conhecedor da
alma humana” (1998). Todo o procedimento psicológico difere daquele adotado
pelo médico. A anamnese não pode ser
simplesmente uma tentativa de recompor o material histórico do caso, isso não
pode satisfazer ao psicoterapeuta. A anamnese
em psicoterapia deve indagar sobre coisas que aparentemente nada tem a ver com
o caso, bem como depende, da parte do terapeuta, de ideias e intuições que lhe
vão ocorrendo. A neurose psíquica procede da totalidade humana, e por esse
motivo, não pode ser facilmente delimitada, trata-se de enxergar toda a
personalidade e levar em consideração o ser humano que ali está e não reduzi-lo
a sua doença. Não é a neurose que
precisa de tratamento, mas a pessoa é
que necessita. Para Jung, patológico é sinônimo de insólito ou exagerado, nota bene,
a neurose não é um ens per se.
Já que metemos na cabeça que queremos curar almas, não podemos fechar os olhos para a realidade de que a neurose não tem existência em si, mas é simplesmente a própria psique perturbada pela doença. (Jung, 1981, p.79).
O
diagnóstico, de que tratamos aqui, e que é tão cara ao médico, é de natureza
bem diferente no que concerne a psicoterapia, pois o psicoterapeuta faz algumas
constatações ao escutar a anamnese,
que mutatis mutandis, poderiam ser chamadas de diagnóstico, mas são de caráter
psicológico e não servem para serem comunicadas ao paciente, ao contrário,
devem ser mantidas em sigilo e servem para orientar, e não determinar, a
terapia. Não interessa, ou ao menos não é esse o interesse fundamental, ao
terapeuta um quadro clínico, mas sim o quadro psicológico. Pouco importa o nome
que se dê, seja ele grego ou latino, seja histeria, fobia ou depressão “isso
pouco importa, ao lado de uma constatação tão importante como a de que o
paciente é ‘um filhinho de papai’, por exemplo” (Jung, 1981). Um diagnóstico
clínico se comunicado ao paciente pode – quero deixar algo claro quanto ao
método aqui, por isso cito novamente Jung “toda proposição psicológica só pode
ser considerada válida quando, e somente quando a validade de seu sentido oposto
também puder ser reconhecida” (1981) – transformar-se em um empecilho ao
tratamento e ensejar as maiores resistências, isso em virtude de uma das
principais características da neurose, talvez a mais penosa: o neurótico sabe
que sofre, mas desconhece os motivos de seu padecimento. Há outro motivo ainda,
no que concerne aquilo que Jung denominava de diagnóstico psicológico.
O diagnóstico psicológico visa ao diagnóstico dos complexos e, por conseguinte, à formulação de fatos que seriam antes camuflados do que mostrados pelo quadro clínico da doença. (Jung, 1981, p.83)
Existe
em psicoterapia um fator que é inalienável, e de natureza irracional que
complica o quadro aparentemente simples do diagnóstico médico realizado pela
constatação dos sintomas. A psicologia complexa tem como sua hipótese basilar a
existência de um dado irracional existencial inalienável, que Freud antes de
Jung e o filósofo von Hartman antes de Freud chamou de inconsciente, em alemão Umbewusste. O termo inconsciente é uma
expressão extremamente feliz para designar esse fenômeno, pois, como afirmou
certa feita M. L. von Franz, é um conceito limítrofe e negativo que serve para
evitar um preconceito (de que julgamos saber do que se trata), o termo
inconsciente não diz nada, apenas que não é consciente, não sabemos o que é. A
fenomenologia da depressão traz exemplos dramáticos da ação do inconsciente, da
maneira como existem fenômenos que não são conscientes, mas que se manifestam a
consciência a revelia da vontade.
Ao
leigo pode parecer estranho que o quadro tão claro e simples exposto no início,
e de que faz uso a medicina, seja perturbado em sua concisão e simplicidade
pela adoção de algo que torna o quadro da neurose desesperadoramente complexo e
ambíguo, lançando o pesquisador e o psicoterapeuta em um lodaçal aparentemente
insolúvel de paradoxos. Como afirmou certa feita Jung, todavia, é o homem que é
paradoxal. A aparente simplicidade do quadro oferecido pela medicina é um
artifício intelectual que não faz jus ao objeto de sua reflexão: a alma.
O
complexo é uma grandeza relativamente autônoma, um corpus alienum, que não se ajusta a hierarquia da consciência. Por
complexo Jung compreende a imagem de uma
situação psíquica de forte carga emocional, incompatível com a atitude
consciente, dotada de coerência interior, totalidade própria e relativamente
autônomo. A hipótese basilar da existência de um inconsciente psíquico
igualmente supõe uma forma de relacionamento entre a consciência e o
inconsciente, que normalmente é compensatória ou complementar, mas que no caso
da neurose transforma-se em oposição. O complexo não se ajusta a hierarquia da
consciência, podendo até mesmo subverta-la, opondo uma efetiva resistência à
vontade. Nesse sentido, o conteúdo de uma neurose nunca pode ser constatado por um exame, ele se manifesta apenas no
decorrer do tratamento, e, paradoxalmente, o verdadeiro diagnóstico psicológico
só se revela ao final do tratamento. O princípio fundamental, ou como disse
Jung, o único princípio válido, que se pode haurir da constatação da existência
a autonomia dos complexos, é que, no caso das neuroses, o seu tratamento tem
que ser psíquico. Sendo o principal fator de cura no tratamento das neuroses a
personalidade do médico “Ars totum
requirit hominem”.
Os
manuais psiquiátricos de nossos dias nomeadamente abandonaram qualquer
pretensão teórica em favor de uma perspectiva epidemiológica, ou, em outras
palavras, estatística. É extremamente difícil, se não impossível, fazer-se
epidemiologia com o método da psicoterapia, que dá importância aos dois
aspectos que se apresentam no fenômeno vivo: o coletivo (ou genérico) e
o individual, mantendo-se nessa
situação paradoxal. Na perspectiva da Psicologia Complexa, uma das antinomias
fundamentais para o exercício da psicoterapia, ou simplesmente para fazer jus
ao paradoxo que é a alma é: O individual
não importa perante o genérico, e o genérico não importa perante o individual.
Essa é uma posição sumamente complicada, e que mostra, no sentido de um
tratamento da alma, ainda maiores dificuldades relacionadas ao diagnóstico. O
médico pode, e se espera dele, emitir um diagnóstico, pois a terapêutica e o
prognóstico dependem disso, mas no caso da psicoterapia, isso é sinal de falta
de espírito crítico. Tendo em mente a antinomia entre o genérico e o individual,
não posso me colocar como autoridade diante do paciente, ou mesmo me arvorar a
saber de sua individualidade e totalidade da personalidade. Qualquer declaração
dessa ordem – como o diagnóstico de depressão – dizem respeito ao ser humano
genérico, se assim não fosse, não seria passível de uma consideração
epidemiológica (estatística). Nesse ponto resta mais evidente o papel da
personalidade do médico como mais importante fator de cura, pois tudo o que
vive, vive individualmente e jamais terei a minha frente uma categoria, ou universal, ou mesmo um ser
humano genérico, mas sempre um indivíduo. “só posso afirmar sobre a
individualidade de outrem, o que encontro em minha própria individualidade”
asseverou Jung, isso significa, para utilizar alegoria expressa por ele no Tipos Psicológicos, que sem o cisco em meu olho não seria possível ver a
trave no olho de meu próximo, mas sem o confronto com o inconsciente e o
desenvolvimento de minha personalidade, corro o risco de supor que todos os
ciscos são traves. Isso é ainda mais grave no que concerne à psicoterapia, pois
se sou inconsciente dos mesmos conteúdos que o paciente, passo a enxergá-los de
maneira projetiva e, ao invés de um auxílio transformo-me em estorvo ao
tratamento. Só posso ajudar a curar aquilo que já foi curado em mim mesmo.
É
preciso ter clareza de que a neurose é uma ficção, em nosso caso, devemos ter
em mente que a depressão é uma ficção, ela não é nem pode ser o objeto da
psicoterapia, mas sim a “integridade perturbada de uma pessoa humana”. A
clareza quanto a esse ponto lança luzes aos inconvenientes de um método
estatístico. Não se enganem, não estou aqui advogando contra o método
estatístico, mas contra seu uso unilateral e hipostasiado. Não é uma crítica ao
“o quê”, mas ao “como”.
Jung
faz uma importante diferenciação epistêmica entre conhecimento e compreensão,
o primeiro mirando nos aspectos genéricos e o segundo no individual. Para a
psicoterapia ambos são importantes, mas isso coloca, novamente, o
psicoterapeuta em uma posição nada confortável no que diz respeito a seus
pressupostos teóricos, e ele precisa estar ciente disso. Quanto maior a
pretensão de universalidade de uma teoria, menor sua possibilidade de aplicação
aos fatos individuais. Perceba, estimado leitor, que os manuais de psiquiatria
aspiram essa universalidade. O problema com o método indutivo, é que ele
estipula uma média ideal, que elimina todas as exceções, substituindo-as por um
valor médio abstrato que figura na teoria como fato incontestável mesmo que não
ocorra uma vez sequer na realidade. Para ilustrar esse fato insólito Jung
utiliza uma alegoria das mais elucidativas: alguém que conheça peso médio de um
seixo de rio, certamente vai se desapontar depois de encontrar um monte de
seixos e perceber que, muito provavelmente, nenhum deles corresponde a esse
valor médio abstrato.
O método estatístico proporciona um termo médio ideal de uma conjuntura de fatos, e não o quadro de sua realidade empírica. Embora possa fornecer um aspecto incontestável da realidade, pode também falsear a verdade factual, a ponto de incorrer em graves erros. Isso acontece, de modo especial, em teorias baseadas em estatística. Os fatos reais, porém, evidenciam-se em sua individualidade; de certo modo, pode-se dizer que o quadro real se baseia nas exceções da regra, e a realidade absoluta, por sua vez, se caracteriza-se predominantemente pela irregularidade. (Jung, 2011, p.14).
A
situação a que está submetido o psicoterapeuta é a de que ele sempre estará
diante de um indivíduo, ou seja, uma exceção e irregularidade relativas, algo
que em última análise não pode ser conhecido nem comparado. Todavia, sem que o
homem seja descrito como unidade estatística nenhuma característica geral lhe
poderia ser atribuída, e sem isso seria impossível uma psicologia geral que se
baseia no quadro abstrato do homem médio, alijado de todos os traços
singulares, justamente os mais importantes para a compreensão do homem. Ao que me parece, o intuito da psiquiatria
pende para o lado do conhecimento
sobre o homem, essa ciência transmite uma cosmovisão irreal, apesar de
racional, em que o indivíduo desempenha um papel marginal. É importante
salientar que o método da Psicologia Complexa não advoga um individualismo, ou
que só se pode conquistar a si mesmo, ou conseguir a cura de sua neurose por
meio de uma atitude individual. Existem atitudes coletivas que possibilitam a
solução de conflitos típicos, entretanto, como asseverou Jung, normalmente a
dificuldade do paciente é um problema pessoal que não pode se enquadrar numa
norma coletiva, e, para que a totalidade da personalidade permaneça viável, ele
precisa encontrar uma solução individual. Raramente, ou quase nunca, uma norma
coletiva pode substituir uma solução individual sem violentar a totalidade da
personalidade do indivíduo. Pois, me adiantando um pouco, há na neurose uma unilateralidade da consciência que leva
a uma separação entre consciência e
inconsciente.
O
intuito do viés epidemiológico é estudar a distribuição do fenômeno, nesse caso
as afecções, nas populações humanas e sua distribuição geográfica, além de
classificar. O aspecto psicológico a que aludi, o diagnóstico dos complexos,
permanece camuflado ao se receber, simplesmente, a classificação de
“depressão”. A perspectiva do psicoterapeuta deve ser a de, paradoxalmente, ter
em mente os dois lados dessa antinomia entre o conhecimento e a compreensão.
Tendo sempre em mente que o que é vantagem para o conhecimento, redunda em desvantagem para a compreensão. Está o psicólogo, fatalmente, exposto a uma colisão de
direitos entre duas perspectivas opostas e excludentes, e tal conflito só se
resolve por uma via dupla de pensamento em que se faz uma coisa sem jamais
perder de vista a outra.
Certamente,
ao falar de neurose, ou afecções, ou perturbações psíquicas, ou mesmo depressão,
o que nos concerne aqui, os termos possuem um conotações diferentes tanto do
senso comum do leigo, quanto da perspectiva psiquiátrica, que se filia de
maneira exclusiva as ciências naturais. O que significa neurose para a
psicologia complexa? E o que significa depressão? O leitor há de ter por certo
que Jung faz uso do método das ciências naturais, o método empírico descritivo
e que, por mais desejável que seja a avaliação quantitativa, não se pode
prescindir do método descritivo qualitativo, pois os fatos mais importantes com
que lida o psicólogo são, como vimos, terrivelmente complexos e só podem ser
apreendidos pela descrição casuística. O método descritivo das ciências
naturais não pode ser sobrecarregado por pressupostos teóricos e filosóficos. E,
novamente, por força do método, temos de aludir à posição nada confortável do
psicoterapeuta que deve também ser um pesquisador, pois, no dizer de Jung, “em
cada caso singular, cientificamente observado, devemos levar em consideração o
fenômeno anímico em sua totalidade” (2003).
Os
conceitos, em psicologia complexa, têm por único objetivo nomear um grupo de
fenômenos análogos e afins. Creio que não é ocioso reafirmar esse ponto, pois
existe um insidioso e difundido preconceito entre os que se dizem “Junguianos”
de que os conceitos devem ser comunicados ao paciente, como se fossem um
diagnóstico médico. Mas, ao fazer isso, o suposto psicoterapeuta, abandona a
posição proposta por Jung de espelho
dialético. Essa atitude revela falta de espírito crítico e se transforma
numa violência contra o paciente, pois coloca o psicoterapeuta como uma
autoridade capaz de fazer afirmações válidas ao seu respeito, nesse caso
abrem-se duas sendas: ou violento o outro (o que leva a terapia por sugestão),
ou corro o risco de eu mesmo sucumbir ao seu poder de persuasão. Infelizmente
poucos espíritos são capazes de sustentar uma posição tão irremediavelmente
paradoxal. Essa atitude, a que aludi, revela que o “psicoterapeuta” está preso
ao preconceito segundo o qual o nome explica ao mesmo tempo os fatos psíquicos
que ele denota. Anima, sombra, persona, para aquele que é realmente versado no método representam,
para utilizar uma alegoria proposta por Jung, não mais do que meros algarismo e,
seu sistema conceitual, não mais do que uma rede trigonométrica recobrindo uma
área geográfica. É fundamental na prática clínica não sucumbir à tentação de
substituir a realidade por palavras!
Mas,
voltando à vaca fria, o que caracteriza a neurose é a dissociação da personalidade. A neurose não pode ser facilmente
localizada e circunscrita, pelo contrário representa sintoma de uma atitude
errônea da personalidade global. Por esse motivo não se pode esperar por uma
cura com um tratamento que se limite à doença, o tratamento deve levar em consideração
a personalidade como um todo. Os complexos são subtraídos ao controle da
consciência, são fatos objetivos, e jamais podem ser reduzidos a mero arbítrio.
O inconsciente possui
uma autonomia quase demoníaca, que escapa ao controle de qualquer iniciativa
racional bem intencionada, e a cisão que caracteriza a neurose pode ser
descrita como um isolamento do sujeito consciente em relação a sua natureza
humana básica. A neurose consiste basicamente de uma alienação dos instintos e
uma separação da consciência dos fatos fundamentais da alma. O sofrimento
neurótico é um logro inconsciente e não tem mérito moral como o sofrimento por
coisas verdadeiras. O processo de conscientização que é necessário para o
desaparecimento dos sintomas neuróticos representa uma tortura para aquele que
passa por ele, em compensação, seu sofrimento passa a ter sentido e se refere a um mal verdadeiro. Isso por que só se pode
alterar algo que esteja na consciência.
Muitas
vezes, ao falarmos em complexos e sua atuação na consciência, o leigo pode ter
a impressão de que estamos a falar de alguma demonologia primitiva, de casos de
possessão que melhor figurariam no breviário de algum padre interessado em
exorcismo, e, psicologicamente, essa impressão é extremamente precisa! Muitas
pessoas estranham o interesse junguiano por mitos – outros abusam desse
interesse – é necessário salientar que esse interesse se situa completamente no
plano científico e psicológico, não se trata de metafísica ou teologia, mas de
ciência psicológica. Não é supérfluo sublinhar que a psicologia não se ocupa
das coisas “em si mesmas”, mas exclusivamente
da maneira como são imaginadas. A minha definição preferida de mito, das que
Jung nos legou, e que traduz com clareza essa aparente demonologia é que os
mitos são, antes de mais nada, a manifestação da essência da alma. Toda
mitologia é uma espécie de projeção do inconsciente coletivo. Para a alma do
primitivo a observação exterior deve corresponder a um acontecimento anímico. A
existência dos complexos é um resíduo notável do estado de espírito primitivo,
ou seja, um elevado grau de dissociabilidade. Os complexos, assim como os
deuses, demônios elfos e fantasmas são experiências psíquicas sumamente
impressionantes. Quando um complexo se instala na superfície da consciência ele
progressivamente assimila a consciência do eu, que já não pode mais evitá-lo,
resultando disso a dissociação neurótica.
As histórias de fantasmas, tão universalmente difundidas, dão testemunho
notável desse processo[1].
A
depressão corresponde a um quadro particular no panorama mais geral da neurose.
Finalmente, depois de todos esses prolegômenos, chegamos ao que foi prometido
no título desse escrito. Pois bem, M. L. von Franz, em seu conhecido seminário
sobre alquimia, ao tratar desse tema no mundo grego e árabe (como se sabe, no
início do que se convencionou chamar de idade média, foram os árabes os
herdeiros da cultura grega, e foi por meio deles que a filosofia e ciência
grega retornaram à Europa séculos depois) teceu considerações sobre um dos textos
de Olimpiodoro e, ao traçar paralelos ao chumbo, para interpretar a passagem
que fala de Osíris sufocado pelo chumbo, traduz a passagem em termos
psicológicos fazendo alusão a depressão.
Na
antiguidade o chumbo era o metal do planeta Saturno e possuía, como o planeta,
qualidades ambíguas: no aspecto negativo depressão, e, no positivo, depressão
criativa. Saturno era o deus dos aleijados e criminosos, e, de maneira
ambivalente, também das pessoas criativas e artísticas. As confissões de muitas
pessoas deprimidas, em termos psicológicos, soam como chumbo. Numa depressão a
pessoa se sente pesada, incapaz de sustentar o próprio peso e se levantar da
cama ou de uma cadeira, deixa-se ficar onde está como um bloco pesado.
Como a palavras sugere, numa depressão a pessoa é pressionada para baixo, comprimida, em geral porque uma parte da libido psicológica está embaixo e tem que ser resgatada; a verdadeira energia da vida caiu numa camada mais profunda da personalidade e só pode ser alcançada através de uma depressão. Assim, a menos que haja uma psicose latente, as depressões devem ser encorajadas e as pessoas, aconselhadas a entrar nelas e ser deprimidas (...) e, se as depressões dizem que a vida nada significa e que nada vale a pena, deve-se aceitar isso e perguntar o que fazer. O que há a fazer é ouvir, mergulhar cada vez mais fundo, até se atingir o nível da energia psicológica onde alguma ideia criativa pode surgir; de repente, no fundo, aparecerá um impulso de vida e de criatividade que havia sido ignorado. (Franz, 1993, p.87).
O
que Franz descreve corresponde ao fenômeno, bem conhecido da antropologia, que
Jung denominou de perda da alma. O
livro de Mircea Eliade O Xamanismo
está repleto de exemplos da maneira como a mentalidade primitiva, mais sujeita
a esse fenômeno, o compreendia. Joseph Campbell, para ilustrar o mesmo fato
psicológico, gostava de utilizar como paralelo algo bem mais singelo, o conto
de fadas A Princesa e o Sapo. Vou
tentar resumir o melhor possível à interpretação de Campbell. O conto de fadas
em questão trata do nosso problema de uma perspectiva feminina – ao final
desses escritos retomarei esse ponto – para o mitólogo estadunidense masculino é igual à ordem social e o feminino
a ordem natural. A função do homem é
agir a da mulher é existir, pois ela é a vida e a totalidade da vida, o homem é
apenas o agente do seu poder. Ele gostava de citar Spengler que afirmou “O
Homem faz história. A mulher é a história”, a mulher é “Isso”, a tarefa do
homem é relacionar-se com a vida a da mulher tornar-se vida, em termos
mitológicos, a mulher representa a totalidade do que pode ser conhecido. O
herói é aquele que passa a conhecer. Existe, no entanto, um sério problema para
as mulheres de nosso tempo, muitas delas passaram a crer que a realização masculina
é adequada para todos.
A garotinha tem uma bola de ouro. O ouro é o metal incorruptível, a esfera é a forma perfeita e o círculo é a sua alma. Ela gosta de ir até o limiar da floresta, o abismo, e de se sentar ao lado de uma lagoa, uma pequena fonte, que é a entrada para o mundo inferior. Aí começa a jogar sua alma para lá e para cá: joga a bolinha e pega, joga a bola e pega, joga a bola e – ping! – perde-a, e ela cai na lagoa.
Ela começa a chorar. Ela perdeu sua alma. Isso é a depressão. Isso é a perda de energia e da alegria de viver. Alguma coisa escapou. Ela é a contrapartida de Helena de Tróia raptada na história clássica da Ilíada: Helena de Tróia foi raptada, e eles a querem de volta.
Assim, a pequena bola caiu, sua alma foi engolida pelo lobo do mundo interior. Bem, quando a energia cai dessa maneira, o poder que está no fundo da lagoa, o habitante do mundo inferior, emerge – um dragão ou, neste caso, um sapinho. Ele diz: “Qual o problema Menininha?” E ela diz: “Perdi minha bola de ouro.” E ele: “Vou pegá-la para você.” Ela diz: “isso seria muito bom”. E ele diz: “O que você me dará?”. Ela precisa abrir mão de alguma coisa, é preciso fazer uma troca, e ela diz: “Eu lhe darei minha coroa de ouro.” Ele diz: “Eu não quero a sua coroa de ouro.” “eu lhe dou o meu belo vestido de seda.” “Não quero o seu belo vestido de seda.” Bem, exige ela, “e o que você quer?” “quero comer a sua mesa, estar com você como seu amigo, dormir com você em sua cama.” Assim, subestimando o sapo, ela diz: “Está bem, farei isso.”
O sapo mergulha e traz a bola. Agora ele é o herói que participa da aventura. Ela, sem sequer agradecer, pega a bola e vai para casa, e ele vai saltando atrás dela, dizendo: “espere por mim.” Ele é lento.
Ela chega em casa e, naquela noite, enquanto está jantando com Rei Papai e Rainha Mamãe, tendo uma bela refeição, essa criatura verde pula nos degraus da frente: plop, plop, plop. A menina empalidece e seu pai lhe pergunta: “Qual o problema? O que é isso?” Ela diz: “Ah, é um sapinho que eu conheci.” E ele diz: “Você lhe fez alguma promessa?”
Agora o princípio moral faz a sua aparição: é preciso correlacionar todas essas coisas. E quando ela responde: “Sim”, o rei diz: “Bem, então abra a porta e deixe-o entrar”. O sapo entra, aparece na sala e diz: “Quero sentar-me à mesa. Quero comer no seu prato de ouro.” Claro que isso estraga o jantar. Eles terminam a refeição e ela vai para a cama. Ele sobe as escadas atrás dela, todo molenga, e bate na porta, dizendo: “Quero entrar.” Ela abre a porta e deixa-o entrar. “Quero dormir em sua cama com você.” Agora isso é mais do que ela pode tolerar.
Há várias maneiras de finalizar essa parte da história, mas a de que mais gosto é aquela em que a menina pega o sapo e o atira contra a parede. O sapo se abre, e dele sai um belo príncipe, com cílios como os de um camelo. Ele também tinha seus problemas: foi amaldiçoado por uma bruxa e transformado em sapo. Esse é o garotinho que não teve coragem de se tornar adulto. Ela é a garotinha que está prestes a se tornar adulta. Ambos recusam sua própria condição, mas cada um ajuda o outro a solucionar o dilema, e é uma bela experiência.
Na manhã seguinte, segundo a história, depois de se casarem, aparece uma carruagem na porta da frente. Era a carruagem dela. Afinal ele era um príncipe cujo reino ficou desolado desde que ele foi transformado em sapo. Ele e sua mulher entram na carruagem e, após a partida, ouvem o um som forte: Bang! Ele pergunta ao cocheiro: “O que houve, Henry?” E Henry responde: “Bem, desde que você se foi, meu Príncipe, surgiram quatro anéis de ferro em torno do meu coração. Um deles acaba de se romper.” Enquanto seguiam viagem, ouviram mais três “bangs”, e então o coração do cocheiro voltou a bater adequadamente.
O cocheiro simboliza a terra que tem no príncipe o poder gerador e governador. Ele fracassou em seu dever e foi para o mundo inferior, mas encontrou nele sua noivinha. (Campbell, 2002, pp.225 a 227)
Gostaria
que o leitor prestasse especial atenção a passagem relativa ao cocheiro e seu
simbolismo, pois retornarei a esse aspecto mais a frente. Vemos o fenômeno
aludido por Franz, Campbell até mesmo utiliza uma terminologia semelhante. A
garotinha perde a sua bola e, quando surge o sapinho das profundezas ela
precisa passar por um confronto moral.
Jung afirmou, que a existência de complexos gesta três tipos de
problemas, três questões capitais: o problema terapêutico, o problema filosófico
e o problema moral. A neurose é um
problema moral, ou melhor, ela nos
força a encarar um problema moral ao atravessá-la, pois seu sofrimento é um
logro, somente quando nos dispomos a encarar esse sofrimento e vivê-lo até o
seu amargo fim, no processo que passa por aquilo que Zimmer chamou de autodissolução do herói. O sapo, o ser
de aparência repugnante, ou insignificante, é justamente aquele que recupera a
alma da garotinha e com quem ela precisa lidar (ele também deve lidar com ela,
que é um tanto mimada e não muito boa em manter a palavra empenhada) ao lidar
conscientemente com o sapo, que sai das profundezas onde levava uma vida
autônoma sem que a princesa sequer suspeitasse de sua existência, ele pode
passar por uma transformação. Só se pode mudar algo que está na consciência,
tudo o que cai nas mandíbulas do inconsciente adquire uma qualidade de
automatismo e compulsividade. Nosso grau de liberdade empírica é proporcional à
extensão de nossa consciência. Perceba, estimado leitor, que na depressão a
liberdade do indivíduo se acha extremamente cerceada, e isso acarreta uma
grande quantidade de sofrimentos e dores a quem padece desse mal e também as
pessoas que o cercam, não raro, contra sua vontade sua vida se vê completamente
arruinada.
É
importante anotar que a psicologia dos neuróticos diferencia-se daquela de
indivíduos considerados normais por traços muito insignificantes, até mesmo
pelo fato de que em nossos dias poucos podem ter a absoluta certeza de não
serem neuróticos. Mas dito em outras palavras, o que salta aos olhos na
restrição de liberdade da personalidade empírica no neurótico é a
característica que é normal e corriqueira do dado psíquico ser algo de
objetivo, que escapa ao controle da consciência. Da mesma maneira, a depressão
é um processo normal, e, seu estado patológico, como afirmei antes, é uma
condição insólita, exagerada. Antes de toda e qualquer atividade criativa, seja
um novo livro a ser escrito ou quadro a ser pintado, as pessoas criativas são
susceptíveis de passar por uma depressão, alguns em escala menor. A libido da
consciência escoa para o inconsciente e vai ativar as imagens da fantasia. Jung
compreende fantasia como fantasma e atividade imaginativa, nos interessa a
segunda. A energia psíquica pode estar sujeita a direção voluntária também à
fantasia pode ser produzida conscientemente em sua totalidade ou em parte,
nesse caso não passa de uma combinação de elementos conscientes. A fantasia
espontânea é acionada por uma atitude intuitiva de expectativa ou pela irrupção
de conteúdos inconscientes na consciência. Jung distinguia entre fantasia ativa
e passiva, a primeira causada por uma atitude orientada para a percepção dos
conteúdos inconscientes. A segunda aparece de forma evidente e o sujeito
permanece passivo, é um tipo de automatismo psíquico. Essa segunda
possibilidade, a da fantasia passiva, é do que fala Franz ao falar da depressão
de que sofrem as pessoas criativas, isto é, mais permeáveis ao inconsciente, de
acordo com Jung essas fantasias.
Elas só podem ocorrer numa dissociação relativa da psique, pois seu aparecimento pressupõe que quantidade considerável de energia se tenha subtraído ao controle consciente e se apossado de materiais inconscientes. (...) É provável que a fantasia passiva tenha sua origem num processo inconsciente e oposto à consciência mas que reúne em si quase tanta energia quanto a atitude consciente e, por isso, é capaz de quebrar a resistência desta. (Jung, 1991, p.407).
Trata-se
de um processo normal, de ritmos de introversão
e extroversão, sístole e diástole
como lhes chamou Goethe. Acontece que esses ritmos menores aparecem em grande
escala na depressão, ou seja, surge de maneira patológica, isto é, insólita e
exagerada. Isso nos diz que, de maneira geral, a pessoa deprimida desprezou
certos fatores que se constelaram embaixo e atraíram a libido, daí resultando a
apatia. Pode se tratar, igualmente, de um sintoma pré-psicótico, quando irrompe
a psicose o que surge a consciência também é um conteúdo criativo, mas que é
tão poderoso que pode destruir a personalidade. Franz, ao interpretar
psicologicamente o Chumbo alquímico no que diz respeito à depressão, assevera
que ele é essa sensação de peso e apatia que sufoca o conteúdo do inconsciente.
Na simbólica do Chumbo, tido como venenoso pelos velhos alquimistas, existe
também o elemento da loucura. Segundo Franz, isso alude ao fato que se um
estado depressivo for explorado encontramos normalmente, um desejo violento e
não sacrificado ou um conteúdo criativo – que como vimos é um processo oposto à
consciência e que reúne tanta energia quanto ela – a depressão pode significar
que no primeiro caso essas pessoas estão deprimidas por terem frustrados certos
desejos desvairados, normalmente pueris e a depressão possui a qualidade do
desejo frustrado. Algumas pessoas possuem em seu íntimo uma criança frustrada.
Paradoxalmente, é no Chumbo que está encerrado Osíris. A fantasia frustrada normalmente
alude a um estado paradisíaco, elas desejam tudo, e são inteligentes o bastante
para saber que a vida não é assim, daí a frustração. Mas a fantasia em si mesma
nada tem de doentio, ela é inteiramente legítima, trata-se de uma ideia
religiosa que naturalmente é projetada na vida exterior e desejada
concretamente no aqui e no agora, perde-se, para utilizar a expressão que era
tão cara a Campbell, o valor de metáfora
dessa ideia religiosa. O que é infantil é o modo como à pessoa quer realizar
fantasia, mas ela, por si mesma é algo de extremamente precioso e que nada tem
de mórbido. Para Franz, o significado alquímico de extrair o Osíris do chumbo
era,
(...) salvar a fantasia que é propiciadora de vida e eliminar a puerilidade do desejo para concretizá-la. Isso é terrivelmente delicado. A grande tarefa a enfrentar é salvar o núcleo, a fantasia do Si-mesmo e eliminar toda a infantilidade, o desejo primitivo, etc que o cerca. O que significaria retirar o Osíris do esquife de chumbo. (Franz, 1993, pp. 91 e 92).
É
possível ver no conto de fadas narrado por Campbell, de maneira singela,
justamente a superação da infantilidade do desejo para se chegar ao núcleo, o
esquife em que estava encerrado o núcleo sadio da fantasia era a pele de sapo,
que foi quebrada quando a menina, a garotinha que está prestes a se tornar
adulta e o garotinho que não teve coragem de se tornar adulto encaram sua
condição. Paradoxalmente, dentro do esquife, da pele do sapo repugnante está o
príncipe. Além disso, o conto de fadas nos fornece outro paralelo dos mais
importantes, os anéis de ferro envolvendo o coração do cocheiro, o metal do
planeta marte, ligado a ação. O cocheiro, a terra estava imobilizada, incapaz
de agir, há em toda neurose um aspecto coletivo, expresso na fábula pelo
cocheiro, como asseverou Jung,
A neurose está intimamente entrelaçada com o problema do próprio tempo e representa uma tentativa frustrada do indivíduo de resolver dentro de si um problema universal. (Jung, 1998, p.12)
Com
o intuito de explorar a maneira como esse tema, da perda da alma, tem sido
tratado em nossa cultura, vou analisar em detalhe um paralelo que me é caro, a
animação japonesa A Viagem de Chihiro.
O título original já mostra a relação da película com o tema, em japonês o
título seria algo como sen to chihiro no
kamikakushi (千と千尋の神隠し) o nome da protagonista é formando por dois caracteres
chineses chamados kanjis, o primeiro é千 que pode ser pronunciado (os kanjis possuem dois tipos de
pronuncia kunyomi e onyomi e diversas maneiras de se falar uma mesma letra
chinesa, o que pode parecer um pouco confuso e o título original faz uso dessa
característica) sen (セン) ou chi (ち) e sozinho significa mil. O segundo caractere pode se
pronunciado como jin (ジン) ou, na forma de verbo, tasuneru (たず・ねる) que significa perguntar,
inquirir, questionar, procurar. Se traduzido literalmente e de uma maneira
livre Chihiro significa mil perguntas.
No início do filme ela perde o próprio nome, a bruxa rouba um dos caracteres
deixando apenas o primeiro sen, fazendo com que ela passe a não se recordar de
seu nome original o que a enfeitiça. O modo como ela é enfeitiçada já evidencia
o fenômeno da perda da alma, mas o segundo termo do título kamikakushi (神隠し) é de tradução mais difícil, ele designa um estado de
espírito especial, que pode ser observado de maneira quase universal nos mitos,
ele significa ser “sequestrado pelos deuses”, algo da esfera humana desaparece
e é levada para a esfera divina, exatamente como no caso da bola de ouro do
conto de fadas narrado por Campbell, ou os inúmeros casos narrados por Eliade
em sua obra sobre xamanismo. O que há em comum com relação aos diversos relatos
de adoecimento e tratamento pelos xamãs é que o papel do xamã é resgatar a alma
do doente que se perdeu na esfera divina. Em certo sentido, kamikakushi é um
nome japonês para perda de alma. Em
uma tradução ainda mais livre do título teríamos: de mil a mil perguntas no sequestro dos espíritos.
O
filme principia com a menina Chihiro em um estado de apatia e tristeza dentro
do carro dos seus pais, eles estão de mudança e ela não deseja se mudar, pelo
contrário, a ideia da mudança à lança num estado de tristeza e letargia. Ela se
deixa ficar deitada, abatida, no banco de trás do carro, agarrada a um buquê de
rosas de despedida com seu nome. A metáfora é pujante, no conto do príncipe
sapo, ambos os protagonistas estavam presos em sua própria atitude pueril,
incapazes de dar o passo adiante, incapazes de mudar. Chihiro está de mudança e
se agarra à última lembrança de seu passado, as rosas, nada mais efêmero do que
rosas! Chihiro se vê lançada contra a sua vontade na mudança, o filme deixa
claro desde o início um dos fatores cruciais para o desenvolvimento da
personalidade, para o confronto com o inconsciente: a necessidade. Há aqui igualmente, uma representação extremamente
poética de um dos aspectos mais tristes da neurose, por mais que a vida de
alguém que padece de uma depressão esteja estagnada, o resto do mundo continua
a se mover, o relógio continua a bater, mas agora ele é algo monstruoso e
assustador, como o crocodilo com um relógio no estômago que perseguia o Gancho.
Não se deseja crescer, a criança frustrada que habita no íntimo dessas pessoas
não se importa com o tempo, mas ele é implacável e passa a ser visto como
reptil monstruoso que a tudo devora.
Assim
como Chihiro, Hako também está em apuros, ele também foi enfeitiçado e perdeu o
seu nome, ele é o dragão das profundezas, que ao invés de devolver a bola, a
alma de Chihiro, retirou ela por inteiro das águas do submundo quando ela caiu
em um riacho na mais tenra infância. Hako é o nosso príncipe sapo. Seu nome
original, antes de ser roubado (ou encurtado) era Nigihayami Kohaku Nushi (饒速水琥珀主) que significa o kami (espírito,
deus) do ligeiro rio das brasas. Após
ser enfeitiçado ficou apenas 珀 (ハク), esse caractere sozinho não tem um significado próprio,
mas, mesmo sozinho também pode significar brasa. Esse kanji é formado por dois
radicais o primeiro significa rei – o que é bastante significativo – e o
segundo branco. É interessante como a imagem do complexio opositorum que é o si mesmo está presente em seu nome
completo “rio das brasas”, do fogo na água. Essa imagem, do fogo das
profundezas, é discutida por Jung em sei Aion,
e é um dos símbolos tradicionais do espírito santo. O nome Haku, brasa, da
conta de algo que ainda queima, ainda possui calor e intensidade, mas está
fraco e prestes a se apagar. Ele e Chihiro se salvam juntos, ele foi
amaldiçoado por uma bruxa, mas sem isso não poderia ter encontrado Chihiro.
A
interessante simbólica presente no nome de Hako (rio das brasas) possui uma
história venerável, desvendada por Jung no já referido tratado, e está
relacionado ao simbolismo do peixe na alquimia, em que se fala de um peixe
redondo e sem ossos, tratando-se não de um peixe no sentido moderno, mas de um
molusco (também um habitante das profundezas). O texto alquímico afirma que o
peixe redondo ao ser aquecido reluz, o que significa que já existe nele um
calor que se manifesta como luz. Há nesse texto a influência de Plínio, pois
este descreve um peixe que causava admiração aos filósofos, a stella marina, pois era muito quente e queimava tudo o que tocasse no mar,
queimava como se fosse fogo. A atitude do medievo, ávida por símbolos,
rapidamente se apoderou da lenda da stella
marina, em virtude das
características desse peixe, de possuir um calor tão forte que não apenas
queima tudo o que toca, como o transforma imediatamente em seu alimento,
Nicolau Causino afirmou que significava “veri
amoris vis inextinguibilis” (a força inextinguível do verdadeiro amor),
que, como vemos na película, é a força que salva os dois protagonistas. Para o
medievo, tudo aquilo de passageiro e acidental, era apenas uma imagem do drama
divino, rapidamente associou esse fogo que arde nas águas com o espírito santo,
capaz de “inflamar os corações mergulhados no mar do pecado”, em virtude disso
o peixe significa também o caritas, o
amor divinus.
Chihiro
não perde apenas o nome (na verdade Hako logo restitui seu nome), mas também os
seus pais, que ao ingerirem a comida do submundo ficam prisioneiros, e se
transformam em porcos. Há uma imagem muito bela no início, é dia quando eles
chegam e há um regato e uma vau que é facilmente atravessado. Normalmente
interpretamos a água como o inconsciente, mas há que se levar em consideração
sempre o contexto psicológico. No início Chihiro dá sinais de estar deprimida,
triste e abatida, a água da vida se afastou dela. Mas a noite, quando ela tenta
fugir, a água a impede, o inconsciente transbordou, ela está presa no mundo dos
deuses. Não fosse a integridade da personalidade, que se pode ver pela
devolução do cartão com seu nome escrito, isso bem poderia representar a
irrupção de uma psicose. Afastada dos pais, ela precisa lutar para se salvar e
salvar seu amado Hako, por sinal, ela vai descobrindo que o ama no decorrer da
história. No início ela não se recorda dele, nem de que o ama, se se tratasse
do conteúdo de uma neurose, dos complexos, a coisa seria exatamente assim. Ao
ser questionada a paciente sequer saberia responder por que sofre, e tudo o que
dissesse apenas encobriria essas fatos, apenas no decorrer do tratamento isso
poderia se manifestar. Chihiro anseia por algo perdido, mas que ela não se recorda
do que seja, ela ama e nem sabe que ama! Apenas ao final, depois de todas as
peripécias, quando Hako perde as escamas de dragão, os dois se recordam de que
se amam. Esse é um dos momentos mais sensíveis e belos da película.
Chihiro
descobre em meio a suas peripécias o Eros feminino, aquilo que liga e que une a
todos, ela descobre um modo de agir como mulher e recusa o poder e a ganância,
representado pelo vazio, que sua atitude também redime. Ela não busca a
realização masculina, ela é uma heroína de verdade, uma mulher que caminha na
senda do herói. Diferente de personagens populares, como a Viúva Negra, Lady
Sif, ou mesmo Lara Croft, elas apenas emulam a realização masculina. Não creio
que essas que eu citei sejam heroínas, e Miayzaki concordaria comigo, ele preza
a mulher e o feminino, há três mil anos nós homens tomamos o mundo das mulheres
e temos feito uma terrível bagunça desde então. Chihiro é uma resposta, a Viúva
Negra não, se a liberação feminina significar apenas que elas podem ser tão
estúpidas e violentas como os homens é melhor deixar as coisas como estão,
estamos fazendo um ótimo trabalho destruindo tudo e sendo violentos. Chihiro é
uma representação da realização tipicamente feminina, pelo eros. Ela perde a sua alma, e mesmo na gananciosa e violenta bruxa
ela encontra, para além do chumbo, o deus ali aprisionado. Aqui, infelizmente,
ainda há uma cisão, e isso é triste, é na irmã gêmea da bruxa que ela encontra
o sentido mais profundo de sua neurose (isso tomando a liberdade poética de pensar
Chihiro como uma personalidade), a fantasia é libertada do desejo pueril de
concretização no aqui e agora, no mundo dos deuses ela encontra Hako, a
realização de sua nostalgia do amor, e com isso escapa da prisão que podem
representar esses conteúdos. A água ainda estava alta quando ela foi visitar a
irmã gêmea da bruxa, mas agora ela possuía um barco, mesmo que rudimentar. Sua
experiência lhe permitiu adquirir uma ferramenta preciosa. O barco é um símbolo
baseado na ideia de uma construção humana, que possibilita ir onde não se pode
ir a pé ou por outro meio, pois ele se desloca sobre a água. Existe uma
qualidade uterina no barco que diz respeito ao seu significado básico. O
significado mais importante do barco é como instituição, para representar a doutrina
de Buda, a Igreja, pois essas também são criações humanas, mas num sentido
especial, não são criações no sentido moderno do termo, mas o resultado da
fantasia criativa, a mesma com a qual Chihiro se defronta durante todo o filme
e é o que lhe dá a firmeza para escapar e redimir não só a si mesmo, mas a Hako
e a seus pais.
A
mensagem de Franz, assim como a de Miayzaki, é um alento em meio a tanta treva
e sofrimento, no fundo da depressão, se encararmos o sofrimento e loucura com
coragem e tenacidade, há um sentido de vida mais elevado, existe um deus a ser
encontrado. Cura não significa simplesmente a cessação do sintoma (isso se
chama ab-reação) cura, em psicoterapia, é tornar-se quem se é, verdadeiramente,
quem estamos destinados a ser, encontrando um sentido nesse nosso mundo tão
complicado. Infelizmente, nenhum psicoterapeuta que se preze pode prometer tal
coisa, pois esse processo é Deo concedente, e, se é que depender de
algo, é da firmeza em se enfrentar as águas que transbordam da alma e ameaçam
nos afogar e a coragem para não titubear, não olhar para trás, para não
virarmos estátuas de sal.
[1]
“Os espíritos são complexos
do inconsciente coletivo que tomam o lugar de uma adaptação perdida ou tentam
substituir uma atitude inadequada de todo um povo por uma nova atitude. Os
espíritos sou ou o fruto de fantasias patológicas ou ideias novas mas ainda
desconhecidas” (Jung, 1986, p.255).