O
intuito desse escrito é elucidar o entendimento de Jung acerca da astrologia e
do simbolismo astrológico, bem como a ligação, em termos psicológicos – bem
mais íntima do que pode parecer a princípio – da astrologia com a mitologia. A
relação da astrologia com a mitologia não é tão difícil assim de se perceber,
mas, mesmo assim, merece um olhar mais cuidadoso. A relação da astrologia com a
psicologia complexa, todavia, é menos evidente e merece uma elucidação mais
conscienciosa. Logo, para poder levar a cabo essa empreitada, inicio,
explicando o que significa mito na perspectiva de Campbell e Jung, elucidando
qual o interesse da psicologia na astrologia.
Campbell
possui uma definição divertida de mito que muito me agrada e eu sempre gosto de
iniciar uma explicação mais geral sobre mitologia com essa definição, que tem a
vantagem de ser sucinta, e, apesar de jocosa, ser bastante correta. Diz ele,
que a mitologia é a religião do outro, e religião não é outra coisa senão
mitologia mal compreendida. Essa incompreensão consiste em interpretar os
símbolos míticos como se fossem referências a fatos históricos. Campbell também
entendia a mitologia como uma organização de figuras metafóricas conotativas de
estados de espírito que não pertencem definitivamente a este ou àquele local ou
período histórico, embora as figuras elas mesmas possam sugerir uma localização
concreta. Conquanto as mitologias nos falem de terras prometidas, paraísos
terrestres, dos palácios dos deuses ou montanhas sagradas e proponham uma
geografia metafísica, Campbell nos alerta que: “as metáforas apenas parecem
descrever o mundo exterior do tempo e do espaço. Seu universo real é o domínio
espiritual da vida interior. O reino de deus está no interior de você”. De
maneira similar, Jung ao se referir à mitologia em texto de 1934, intitulado
“Sobre os Arquétipos do Inconsciente Coletivo”, nos diz:
O
fato de que os mitos são antes de mais nada manifestações da essência da alma
foi negado de modo absoluto até nossos dias. O homem primitivo não se interessa
pelas explicações objetivas do óbvio, mas, por outro lado, tem uma necessidade
imperativa, ou melhor, a sua alma inconsciente é impelida irresistivelmente a
assimilar toda experiência externa sensorial a acontecimentos anímicos. Para o
primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação exterior deve
corresponder - para ele - a um acontecimento anímico, isto é, o Sol deve
representar em sua trajetória o destino de um deus ou herói que, no fundo,
habita unicamente a alma do homem. Todos os acontecimentos mítologizados da
natureza, tais como o verão e o inverno, as fases da lua, as estações chuvosas,
etc, não são de modo algum alegorias destas, experiências objetivas, mas sim,
expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência
humana consegue apreender através de projeção - isto é, espelhadas nos
fenômenos da natureza. A projeção é tão radical que foram necessários vários
milênios de civilização para desligá-la de algum modo de seu objeto exterior.
No caso da astrologia, por exemplo, chegou-se a considerar esta antiquíssima
scientia intuitiva como absolutamente herética, por não conseguir separar das
estrelas a caracteriologia psicológica. Mesmo hoje, quem acredita ainda na
astrologia, sucumbe quase invariavelmente
à antiga superstição da influência dos astros. Ε todo aquele que é capaz de
calcular um horóscopo deveria saber que desde os dias de HIPARCO DE ALEXANDRIA
o ponto vernal é fixado em 0º de Áries e assim todo horóscopo se baseia num
zodíaco arbitrário, porque desde essa época o ponto vernal avançou gradativamente
para os graus iniciais de Peixes devido à precessão dos equinócios. (Jung,
2003, p.18, grifo meu).
A
longa citação foi necessária, pois nesse texto, fortuitamente, Jung aponta
juntamente com a explicação psicológica do mito, uma possibilidade similar e
paralela à explicação do mito da forma como a psicologia compreende a
astrologia. Logo, tudo o que eu falar aqui sobre a perspectiva Junguiana do
mito, é igualmente válido para a simbólica dessa scientia intuitiva
antiquíssima que é a astrologia, e que pouco ou nada tem a ver com a antiga
superstição da influência dos astros, mas que representa, na realidade, de
maneira projetiva, uma tipologia psicológica extremamente complexa. Entretanto,
me adiantando um pouco, mas sem fugir totalmente a nossa linha de raciocínio,
segundo Von Franz, em sua obra O Feminino
nos Contos de Fadas, arquétipos são núcleos dinâmicos que fazem parte da
estrutura do psiquismo, e que em virtude de sua força e sua vida parcialmente
autônoma, surgem como figuras numinosas e foram, geralmente, personificados
como deuses. Ainda mais interessante para nós é que:
Isso
aparece com muita clareza no caso dos deuses astrológicos: entre os planetas,
Marte representa tudo o que diz respeito à agressividade e à autodefesa, Venus
ao sexo e assim por diante. Cada deus corresponde, no plano da imagem e do
mito, a um estilo de comportamento
instintivo específico. Dizer que um deus ou uma deusa está esquecido ou
esquecida significa que um comportamento psicológico natural está sendo
negligenciado ou recalcado. Seja por um artifício, seja por estupidez, deixou-se
de levá-lo em consideração. (von Franz, 2010, p.50, grifei).
Vemos
que tanto Jung quanto Von Franz não compreendem o mito, ou a astrologia, como
mera alegoria. Um dos significados mais correntes para o termo, o substantivo
alegoria (ἀλληγορία) é formado por ἄλλος “outro” e ἀγορεύω “falo”, no sentindo de que ao falar de uma coisa na
realidade fala-se de outra. Na escola de Pérgamo já no século I a alegoria era
utilizada como recurso exegético dos mitos inspirado na doutrina estoica, seu
principal representante foi Crates de Malos que alcançou renome ao interpretar
Homero. Crates interpretava em termos físicos as figuras divinas presentes na
poesia Homérica, para ele Homero tinha a intenção de instruir sobre o cosmos
através da alegoria. Nesse sentido, as figuras divinas não passavam de
fenômenos astrológicos ou meteorológicos. A interpretação meramente alegórica
nega a realidade da alma, e a interpretação psicológica é recente em virtude do
estado de identidade que é indicado por Jung na longa passagem citada
anteriormente. A identidade significa uma igualdade psicológica e é
sempre um fenômeno inconsciente, e que é o fundamento da participation mystique, resíduo
da primitiva indiferenciação psíquica entre sujeito e objeto. Na medida em que
se não tiver tornado um conteúdo da consciência permanece preso a um estado de
identidade com o objeto. O estado de identidade inconsciente atua por meio da
projeção. Projeção é uma transferência inconsciente de um fato psíquico
subjetivo para um objeto exterior, o que explica em termos psicológicos o
fenômeno da alegoria, que antes da descoberta de um inconsciente psíquico, um
dado existencial, irracional inalienável, ou, para utilizar outra formulação de
Jung, o “fato psicológico real”, possuía valor heurístico. A
identidade/projeção pode ser retirada, em 5 estágios sucessivos, tanto no plano
individual, quanto na história das religiões. De acordo com von Franz, nesse processo a energia
investida nos objetos exteriores retorna para a personalidade do eu. No mundo
grego arcaico predominava o estado de identidade arcaica. Por volta do início
das tradições históricas surgem imagens do começo da segunda etapa, o início da
diferenciação, os deuses e espíritos podem se manifestar através da natureza,
mas eles possuem uma existência própria. Já se vislumbrava também o início da
terceira etapa, uma distinção moral, o homem julgava as ações dos deuses e se
permitia julgá-las moralmente. Com o início da filosofia natural pré-socrática
alterou-se a imagem do mundo mítico religioso dos helenos cultos, procurava-se
o divino em um princípio do mundo (ἀρχή), e os deuses passaram a coexistir com
essas ideias filosóficas, ou a ter suas existências negadas. Essa postura
iluminística caracteriza a quarta etapa e culminou com a doutrina de Euhemeros,
para quem, os deuses não passavam de personalidades históricas mortas e
divinizadas. Em seguida vemos o esforço de um Teogenes de Region que tenta
salvar a “antiga verdade” concebendo-a “alegoricamente” (simbolicamente na
opinião de von Franz). Ele procurou traduzir os antigos mitos em uma linguagem
filosófica nova, os deuses passaram a ser vistos como símbolos de objetos
materiais, ou representariam características e estados psíquicos do homem
(início da quinta etapa), Athena seria a sabedoria, Ares a paixão insensata,
Afrodite o desejo, Hermes a razão e assim por diante. Esses estados que hoje
veríamos como endopsiquicos eram percebidos ainda como “poderes externos”, como
essas interpretações não estabelecem limites entre a substância psíquica e a
substância material do mundo, elas recriam em parte, junto com a quinta etapa
(da reflexão assimiladora), a primeira etapa da identidade arcaica.
Ou,
trocando em miúdos, como diria Campbell, “o reino de deus está dentro de você”.
Ainda segundo Campbell os mitos representam para uma determinada sociedade em
uma determinada época um modelo. A mitologia é uma organização de imagens
metafóricas da experiência, da ação e da realização do espírito humano no campo
de uma certa cultura, e época, em certo sentido, a imagem mítica mostra a
maneira como a energia cósmica se manifesta no tempo, mudam os tempos e também
muda a forma de manifestação, mas permanece constante o fato de que essa
energia cósmica, para empregar a expressão de Campbell, se manifesta. No que
concerne aos deuses, na perspectiva de Campbell, eles representam o indivíduo
em seu campo de ação, ao contemplar a divindade o indivíduo consegue uma força
estabilizadora que o coloca no papel dessa divindade. A mitologia ajuda a
identificar os mistérios das energias que exalam de você. Como vimos na
perspectiva de von Franz, podemos traduzir psicologicamente a ótica de
Campbell, psicologicamente muito precisa, que ao contemplar um deus se está
trazendo para o campo da consciência um comportamento psicológico natural que,
de outra maneira, estaria excluído da consciência, causando severos prejuízos a
economia psíquica do indivíduo. Em certo sentido, a linguagem astrológica
metafórica (simbólica), permite essa contemplação que pode trazer essa força
estabilizadora. Cada deus corresponde a um estilo de comportamento instintivo
específico. Em certo sentido, os personagens de mitos e contos de fadas, heróis
e deuses, não representam um “eu”, no sentido psicológico do termo, eles carecem
de vida real, individual e objetiva, os mitos são pistas para a união das
forças em nosso interior. Os deuses são imagens de processos arquetípicos, e
pode-se argumentar ainda, sobre essa força estabilizadora de que nos fala
Campbell, que a maioria das dificuldades humanas, mesmo as neuroses e psicoses,
se devem a um eu que não funciona em harmonia com a totalidade psíquica, ao
desprezar os deuses, eles se tornam demônios.
De
acordo com Campbell, e uma vez mais ele é de uma acuidade psicológica
espantosa, os demônios são, na verdade, obstruções à expansão da consciência. Um
demônio é um poder que existe em seu interior e que ainda não recebeu expressão
plena, como um deus reprimido – da mesma maneira que indica von Franz – quem
não consegue compreender um deus vê nele um demônio. De acordo com von Franz, o
diabo personifica o princípio que entrava o progresso e procura suprimir
qualquer evolução futura. Os termos do mito, deuses, deusas, diabos, demônios,
são de uma precisão e agudeza psicológica muito maior do que os termos neurose
ou histeria, pois, na perspectiva da psicologia complexa de Jung, a psique não
é algo de arbitrário, e o fato psicológico real, é objetivo e autônomo. Certa
feita, em uma conferência proferida na Inglaterra, Jung disse sobre os
complexos que todos sabemos que os temos, o que parecemos não saber é que eles
podem nos ter! O inconsciente pode – e o
faz com frequência – subverter a
hierarquia da consciência e subjugar o eu, que se vê impotente diante da fúria
ou da maquiavelice mefistotélica dos processos inconscientes. Cada deus
arquetípico representa uma carga dinâmica e explosiva, relativamente autônoma,
incontrolada e incontrolável. A linguagem do mito é a língua franca da alma.
Os
deuses são configurações de certas constantes naturais da psique e de seus
componentes da personalidade emocional e imaginativa. Jung, como sabemos,
designou essas constantes de arquétipos. Trata-se de estruturas inatas e
implícitas, que sempre e por toda parte produzem pensamentos, imagens,
sentimentos e emoções semelhantes no homem, paralelamente aos instintos, aos
nossos impulsos específicos a ação. (von Franz, 1997, p.29).
Para
Campbell o mito desempenha tanto para a sociedade quanto para os indivíduos
quatro funções: mística, cosmológica, sociológica e psicológica. O mito cria
uma ligação entre a consciência e o mistério do universo, fornece um quadro do
universo, apoia e valida uma determinada ordem social e moral e, last but not least, ajuda a atravessar
os diversos estágios da vida, do nascimento à morte. O mito não é simplesmente
uma história falsa ou fantástica, ou uma explicação canhestra e pré-científica
do mundo, ou história convertida em lenda. Mito não é o mesmo que história e
isso precisa ficar claro. O mito é o transcendente na relação com o presente,
além disso, o mito proporciona um campo onde você pode se situar. O que o mito
faz para o indivíduo é apontar o transcendente além do terreno do fenômeno. A
imagem de uma divindade pode assumir o aspecto de um animal ou homem, mas sua
referência transcende a isso. Assim como Jung, e mesmo Tolkien, como apontei em
outros de meus escritos, Campbell não considerava a imagem mítica como
alegórica, o problema surge quando alguém tenta traduzir as imagens metafóricas
(simbólicas) do mito para uma referência concreta, neste caso estamos na ordem
da alegoria e não do mito. O mito torna-se opaco, e não mais aponta para o
transcendente em relação ao presente. Reiteradas vezes, Campbell criticou
crentes e ateus por um erro fundamental: não perceber o caráter metafórico do
mito, sendo essa justamente a sua força. Alguém se torna um crente por
acreditar que a imagem de um mito é um fato histórico, por não acreditar nisso,
outra pessoa se torna um ateu, ambos estão fundamentalmente equivocados, e
ambos se tornaram opacos, perdem a oportunidade que o mito genuíno traz de nos
tornar transparentes ao transcendente. Conforme Campbell, quando você possui
uma divindade como modelo, sua vida torna-se transparente ao transcendente.
Abre-se a possibilidade de se viver uma vida genuína, em contato com sua
natureza profunda e fundamental.
A astrologia está repleta dos deuses e deusas
do panteão grego, é importante salientar, todavia, que não existe apenas um
tipo de astrologia. Na China, por exemplo, também se praticava a astrologia e
esta era vista como uma ciência de vital importância. Certamente, no Reino do
Meio, o sistema simbólico utilizado na astrologia era diverso, mas o que há de
comum entre os dois simbolismos é que ambos são referências conotadas para as
realidades da alma, para utilizar a fecunda expressão de Campbell. Mas
psicologicamente, a alma contém todas as imagens das quais surgiram tanto à
astrologia quanto os mitos, nosso inconsciente é um sujeito atuante e seu drama
interior era encontrado pelo primitivo analogicamente em todos os fenômenos da
natureza. Ainda sobre a astrologia Jung nos diz.
“As
estrelas de teu próprio destino jazem em teu peito”, diz Seni a Wallenstein,
dito que resgataria a astrologia, por pouco que soubéssemos deste segredo do
coração. Mas até então o homem pouco se interessara por isso. (Jung, 2003,
p.18).
Em
termos psicológicos a astrologia é uma tipologia psicológica extremamente
complexa e dinâmica, que se sustenta em um simbolismo mítico que associa
estados endopsiquicos a fenômenos naturais cíclicos, e numa noção qualitativa
do tempo – que difere de nossa noção científica do tempo como algo estritamente
quantitativo. Convém salientar, como aludi em outro dos meus escritos, que um
tipo é um modelo que reproduz de forma característica o caráter de uma espécie
ou de uma generalidade. Em termos psicológicos, Um tipo é um modelo característico de uma atitude. Além disso, há o
aspecto mais importante e mais complicado no interesse da psicologia complexa
pela astrologia, segundo von Franz.
Como
observa Jung, a astrologia é uma tentativa medieval de descrever o sincronismo
de maneira científica, por meio da observação de acontecimentos celestes
sincrônicos. As estrelas apresentam uma maravilhosa combinação de ordem e
desordem na coexistência de acontecimentos regulares e irregulares, como os
meteoros. (von Franz, 2010, p.214).
Sobre
a sincronicidade, tratarei adiante. Recapitulando, para Jung, toda Mitologia, e
o mesmo vale para a astrologia, é uma espécie de projeção do inconsciente
coletivo. O mito, bem como a astrologia, são, antes de mais nada, manifestações
da essência da alma. Ao afirmar tais coisas, é preciso que se deixe claro que
não pretendo, assim como Jung não o pretendia, fazer psicologismo, ou afirmar
que a astrologia se trata de mera superstição, e que pode ser reduzida a Psicologia
in status nascendi. Não é
disso que se trata e, procurarei esclarecer isso da melhor maneira possível.
Recorro, uma vez mais, a uma citação de Jung sobre a astrologia para deixar
claro qual seja o seu entendimento sobre esse tema. Peço licença ao leitor para
aborrecê-lo, uma vez mais, com uma citação, que versa sobre aquilo que já
repeti até aqui ad nausea. Entretanto, para deixar claro à
perspectiva de Jung, faz-se necessária essa repetição.
Toda
Mitologia seria uma espécie de projeção do inconsciente coletivo. É no céu
estrelado cujas formas caóticas foram organizadas mediante a projeção de
imagens, que vemos isto o mais claramente possível. Isto explica as influências
dos astros, afirmadas pela Astrologia: estas influências mais não seriam do que
percepções introspectivas inconscientes da atividade do inconsciente coletivo.
Do mesmo modo como as constelações foram projetadas no céu, assim também outras
figuras semelhantes foram projetadas nas lendas e nos contos de fadas ou em
personagens históricas. Por isso podemos estudar o inconsciente coletivo de
duas maneiras: na mitologia ou na análise do indivíduo. (Jung, 1986, p.90).
Como
se vê, a Psicologia Complexa se interessa pelo mito, pois a linguagem do mito é
a mesma língua do sonho e do inconsciente. O mesmo pode ser dito no que diz
respeito à Astrologia, sua linguagem é a mesma do mito, e, assim como este, é a
língua franca do inconsciente e do sonho. Essa maneira de se expressar
metaforicamente também corresponde à mentalidade do primitivo, cuja linguagem
não possui termos abstratos, mas apenas analogias naturais e não naturais.
Nesse ponto, faz-se necessário sublinhar, que a psicologia do primitivo é
caracterizada pela identidade arcaica (o que acontece fora, acontece também
dentro dele, e o que acontece dentro dele, acontece também fora), e, que tal
condição, não caracteriza apenas a consciência do primitivo, mas também, a
consciência da criança e o inconsciente do homem civilizado. É preciso cautela,
entretanto, para evitar controvérsias desnecessárias, pois, ao interpretar a
Astrologia por um viés psicológico, não se está diminuindo essa antiquíssima scientia intuitiva. Ao dizer que a Astrologia é simbólica, eu afirmo de
maneira radical a sua realidade, assim como os astros e a Astrologia, afirmam,
na perspectiva de Jung, a realidade do psíquico.
Para
Jung, a alma é o único fenômeno imediato deste mundo percebido por nós e, por
esse motivo, a condição indispensável de toda e qualquer experiência, conditio sine qua non do mundo como
objeto. Toda ciência é função da psique e qualquer conhecimento nela se radica.
As únicas coisas que podemos experimentar diretamente são os conteúdos da
consciência e, em certo sentido, a alma é a própria existência. Jung era um
empirista, e não metafísico, como erroneamente teimam em lhe rotular, “[...]
não sou um metafísico cuja tarefa é dizer o que as coisas são em si e por si, e
se elas são absolutas ou algo semelhante.” (Jung), todos os objetos de que se
ocupa a psicologia encontram-se dentro dos limites do experimentável. Se esses
mesmos objetos, correspondem a uma entidade metafísica realmente existente isso
não se pode responder, isto pelo fato de não podermos subir em nossas próprias
costas para ver mais longe, ou seja, não podemos nos colocar em uma posição
supra-psíquica para poder observar a psique de fora, não temos um ponto
arquimediano. Ergo, em certo sentido,
a pergunta pela influencia dos astros, como não se pode comprovar pela física,
é uma questão metafísica, pré-kantiana, a despeito de Jung se inclinar a uma
resposta negativa a esse questionamento. Mas, continuando Nós não vemos cores,
ou formas, ou objetos, mas apenas luz. É necessário complicado sistema, mais
fisiológico do que psíquico, para que tenhamos a percepção dos fenômenos, a
percepção sensorial. A percepção nos diz que algo existe, não dos diz, no
entanto, o que essa coisa é. Para isso existe um complexo sistema psíquico, que
a psicologia alemã chamou de apercepção, que transforma os fenômenos da
percepção em imagens psíquicas.
Jung
procura fugir da concepção materialista de realidade, para ele, se algo age,
atua é real. Certa feita, ao ser entrevistado por uma rádio inglesa, Jung
causou comoção ao responder, ao ser questionado se acreditava em deus que, não acreditava
em deus, pois ele sabia que deus existe. Como podemos compreender uma afirmação
que parece tão ousada para um homem do século XX? Para a Psicologia não há
resposta possível para a pergunta metafísica sobre a existência de deus, ambas
as respostas, positiva ou negativa, são metafísicas e isto foge a seara de uma
Psicologia científica, mas, independente do que afirmam à metafísica ou a
teologia, em termos psicológicos, deus é um fenômeno real. A Psicologia não se
ocupa com as coisas “em si mesmas”, como afirmação metafísica, mas
exclusivamente com a maneira como os indivíduos as imaginam. Temos de ter
sempre em mente, isso mais ainda ao afirmarmos que a realidade da Astrologia é
fundamentalmente psíquica, que “A Psique é a entidade real em supremo grau,
porque é a única realidade imediata” (Jung). Ao afirmar aqui que a Astrologia
trata-se de um fenômeno fundamentalmente psíquico e simbólico, estou afirmando
radicalmente a sua realidade, de uma maneira muito mais radical do que se me
apoiasse na superstição da influência dos astros. Querer derivar, ou reduzir a
Astrologia a essa influência, seria querer reduzi-la a um epifenômeno da
gravidade e do magnetismo, o que é uma forma de manifestação insidiosa, a meu
ver, do que Jung chamou de metafísica da matéria.
O
que Jung chama de metafísica da matéria é uma “onda irracional da preferência
sentimental e universal pelo mundo físico”, trata-se de uma prestidigitação
intelectual, e um processo de enantiodromia de nossa visão de mundo, onde todo
o valor se fundamenta na pretensa realidade dos fatos, tudo o que é
extramundano se converte em realidade imediata. Trata-se de uma propensão, uma
tendência sentimental que, inconscientemente, age com força incoercível. E
transforma em realidade inquestionável o fato de que tudo provém de causas
materiais, e não passava de presunção intelectual de nossos antepassados supor
a existência de uma alma substancial, imortal, capaz de levar uma vida
independente do corpo, ao invés de ter se dado conta de que se trata, na verdade,
de algo de saboroso no cérebro, hormônios ou qualquer coisa fisiológica, que
engendra, como epifenômeno, o psiquismo. Ambas as perspectivas são, entretanto,
igualmente lógicas, arbitrárias, metafísicas e simbólicas. Temos uma tendência
irresistível a considerar corretas e decentes todas as explicações que apelam
para a matéria e as causas materiais (como a gravidade e o magnetismo), e a
reconhecer como falso tudo o que aponta para uma interioridade invisível.
Temos, principalmente no Ocidente, a tendência, unilateral, de crer que é
“real” tudo aquilo que parece provir dos sentidos, em que o psíquico não
expressa senão um efeito mequetrefe de terceira categoria, originalmente
produzido por causas físicas, tendo a alma, sob essa ótica míope, apenas uma realidade
indireta. Já no Oriente, a essência de todas as coisas se funda na psique e na
realidade da psique. A matéria, que julgamos como critério supremo de
realidade, é uma realidade indireta, não temos relação direta com qualquer
objeto material, mas apenas com imagens que nos são transmitidas indiretamente,
por meio de nosso sistema nervoso, a consciência é incapaz de perceber qualquer
coisa material, aquilo que nos aparece como realidade imediata consiste em
imagens psíquicas, vivemos diretamente em um mundo de imagens. O que quer que
seja a matéria em si e por si nos é totalmente desconhecido, inconsciente.
A
psique só não está onde uma inteligência míope a procura. Ela existe, embora
não sob uma forma física. É um preconceito quase ridículo a suposição de que a
existência só pode ser de natureza corpórea. Na realidade, a única forma de que
existência que temos conhecimento imediato é a psíquica. Poderíamos igualmente
dizer que a existência física é pura dedução uma vez que só temos alguma noção
da matéria através de imagens psíquicas transmitidas pelos sentidos. (Jung,
1995, p.14).
O
que eu creio ser um aspecto dessa tendência sentimental e irracional pelo mundo
físico, é justamente a permanência da superstição da influência dos astros.
Caso se trate de algo psíquico, não passa de uma fantasmagoria, é preciso que
exista uma causa material externa “realmente existente”, nesse caso os planetas
“reais”, o que reduz a Astrologia a um epifenômeno, muito esquisito, por sinal,
da gravitação e do eletromagnetismo. É comum que se utilize o exemplo da Lua,
que produz um efeito material, visível e palpável sobre as marés, e “logo” deve
produzir sobre nós algum efeito que seja responsável por sua função no mapa
astral. Mesmo que isso fosse verdade, esse efeito “físico”, só seria percebido
indiretamente, como efeito psíquico, pois só vivemos diretamente num mundo de
imagens, representações psíquicas, e a Lua real, que parece tão mais real do
que se pensar em “um comportamento instintivo típico”, no fundo é algo que, por
si mesmo, nos é absolutamente desconhecida, só temos dela uma complicadíssima
representação psíquica. Por outro lado, creio ser absolutamente impossível
asseverar que a gravidade ou eletromagnetismo de Pultão, possa ser
responsabilizado por qualquer efeito na minha vida, e, mesmo a Lua ou o Sol,
corpos celestes mais próximos de nós, dificilmente podem ser responsabilizados,
como causa eficiente, pelos aspectos apontados pelo mapa. Apenas para citar
alguns exemplos, a casa 6 está relacionada ao cotidiano, trabalho e saúde; a
casa 4, família; a casa 7 relacionamentos; a casa 5 relacionamentos amorosos,
paixão, diversão, criatividade e filhos. Não é à toa que o leigo julga difícil
engolir a Astrologia, já que é altamente improvável que o eletromagnetismo de
Urano possa ser responsabilizado pelo que ocorre no meu trabalho, ou pela minha
relação com meus colegas. Estamos aqui, diante do mesmo dilema apontado por
Campbell em relação às metáforas míticas. Parafraseando o mestre, alguns creem
na astrologia, pois a enxergam de maneira denotativa, não metafórica, seus
símbolos não se tratam de uma metáfora para algo que está em nosso interior,
mas falam de uma exterioridade palpável, os que não creem na Astrologia o fazem
por não acreditarem nesse mesmo sentido denotativo, ou seja que existe uma
influência material dos astros sobre nossa vida. O irônico, na perspectiva de
Campbell é que ambos estão equivocados, e ambos, ao perderem o sentido
conotativo, o sentido vivo de metáfora, tornam a Astrologia opaca, e perdem,
eles mesmos, a possibilidade de se tornarem “transparentes ao transcendente”.
Ao
afirmar que a Astrologia é simbólica, não estou diminuindo sua força, ao
contrário, afirmo essa força em sua mais elevada potência. O símbolo, para Jung
é algo da mais elevada e sublime importância, a ponte para as maiores
realizações do ser humano. Símbolos são tentativas de expressar alguma coisa
para qual ainda não existe um conceito verbal e, nesse sentido, são capazes de
expressar o indizível de maneira insuperável, significando a possibilidade e
indício de um sentido mais amplo e elevado, além de nossa capacidade de
compreensão atual. Quando digo que algo é um símbolo, ou simbólico, estou
dizendo que esse algo é um desafio a nossa compreensão, o símbolo é sempre um
desafio a nossa compreensão. Quando a consciência já galgou seus degraus mais
elevados, somente por meio dos símbolos podemos entrar em contato com o novo, a
linguagem do símbolo, repleta de pressentimento nos diz de forma eloquente; estou
em condições de dizer mais do que realmente digo e compreendo para além de mim,
e este é um dos mais belos legados de Jung.
Ele
enxergou justamente isso na Astrologia, uma possibilidade viva de mostrar que
mesmo em nossa tacanha e materialista sociedade ocidental, para quem a alma não
passa de uma secreção do cérebro, como o é a bile para o fígado, que há espaço
para essa “realidade da alma”. Por isso, já em 1928, ao discutir o tema do “homem
moderno”, e pensar nas novas formas religiosas que se baseavam exclusivamente
em fenômenos inconscientes, que brota da energia psíquica que reflui das formas
obsoletas de religião, observa que em virtude desse fato, esses movimentos possuíam
caráter genuinamente religioso, a despeito de sua pretensão científica, como
parece ser o nosso caso aqui, pois a religião, assim como a política, estão
altamente desacreditadas, e, a consciência moderna, nessas tentativas, se volta
para a psique inconsciente, não como nas confissões religiosas tradicionais,
mas no sentido gnóstico. Mais de uma vez, ouvi de astrólogos, que a Astrologia é
uma ciência, sobre isso Jung nos assevera,
O fato
de todos esses movimentos se revestirem de uma aparência científica não é
simplesmente uma caricatura ou intenção de ocultar sua verdadeira natureza, mas
sinal positivo de que estão realmente buscando ciência, isto é, conhecimento em estrita oposição à essência
das formas ocidentais de religião, ou seja, à fé. A consciência moderna abomina
a fé e consequentemente as religiões que nela se baseiam. (Jung, 2007, p.83).
Assim,
mutatis mutandis, subjaz na Astrologia uma paixão religiosa, por dois
motivos. O apaixonado interesse por essa scientia
intuitiva brota dessa energia psíquica
que reflui das formas desusadas de religião e, por outro lado, ela aponta com
clareza o aspecto religioso da alma. Isto no sentido da existência de um
aspecto numinoso no psiquismo, no sentido anotado por Jung, de uma existência
ou efeito dinâmico, não causados por um ato arbitrário, mas, ao contrário, tal
efeito se apodera do sujeito humano, que é sua vítima e não seu criador. Vemos,
no interesse por esse psiquismo objetivo, que nos ultrapassa e que não pode ser
reduzido em simples arbítrio, a forma mais patente de paixão religiosa na
Astrologia, que o examina de maneira extremamente minuciosa e metódica, pois,
para Jung, religião, em termos psicológicos, significa uma conscienciosa e
acurada observação do numinoso. Por isso mesmo, adiante no mesmo escrito, Jung afiança,
E a
questão de todo teosofista é: Que experiência poderei ter em graus mais
elevados da consciência, isto é, além da minha consciência atual? Cada astrólogo
se pergunta: Quais são as forças operantes que determinam meu destino, além de
minha intenção consciente? E todo psicanalista quer saber quais são as molas
inconscientes que atuam por trás de minha neurose. (Jung, 2007, p.84).
De
acordo com Jung, o fato de, em 1928, se fazerem mil vezes mais horóscopos do
que há trezentos anos é um sinal de que nossa época deseja fazer a experiência
da psique por si mesma, anseia por uma experiência original e não pressupostos,
a para isso se utiliza de todos os meios possíveis, seja a autêntica ciência e
as religiões conhecidas, paradoxalmente, a despeito da “metafísica da matéria”,
de uma maneira compensatória, a psique foi aos poucos exercendo uma atração e
fascínio cada vez maior, o que explica o interesse pela Astrologia, trata-se do
interesse por uma experiência, o mais direta possível, e na forma de um saber
que não necessita de fé, dessas forças inconscientes que determinam o meu
destino para além da minha vontade. A Astrologia mostra, de maneira dramática,
em seus termos simbólicos, não a influência dos astros, mas a influência desse
pano de fundo psíquico inexpresso, pois, nosso sofrimento, quando representado
pelo inconsciente coletivo, surge sub specie
aeternitatis. Foram palavras proféticas as proferidas por Jung em 1928,
Alguns
educadores de estreita visão acreditavam até há pouco tempo que a astrologia
era coisa ridícula do passado. Ei-la que surge agora, das camadas sociais mais
baixas, e está às portas de nossas Universidades, das quais foi banida há cerca
de trezentos anos. (Jung, 2007, p.85).
Passando
agora aquele que é um dos aspectos mais importantes da Astrologia na
perspectiva de Jung, a sincronicidade, devo frustrar o leitor ao lhe apresentar
apenas algumas indicações a respeito desse tema, com o intuito apenas de
afastar certos equívocos muito disseminados. A Astrologia, como já expus
longamente, não se baseia no princípio da causalidade, mas em outro princípio,
pois para certos fenômenos da psicologia profunda a causalidade se mostra
insuficiente. A sincronicidade é uma manifestação psicológica paralela que não
se relacionam de modo causal (a não ser que se acredite numa causalidade mágica),
entretanto expressa uma foram de correlação diferente. Essa conexão baseia-se,
essencialmente, na relativa simultaneidade dos eventos, donde o vocábulo
sincronicidade. O tempo se apresenta como continuidade concreta, possuindo
qualidades e condições basilares que podem se manifestar em locais diferentes
simultaneamente, num paralelismo inexplicável pelo princípio da causalidade. Sobre
isso Jung assevera,
A astrologia
seria considerada um exemplo mais abrangente de sincronicidade, se ela apresentasse
resultados universalmente seguros. Existem, entretanto, alguns fatos
comprovados por ampla estatística, que tornam a astrologia digna de questionamento
filosófico. (Sem dúvida, seu valor psicológico é inexorável, pois representa a
soma de todo o conhecimento psicológico da antiguidade).
A possibilidade
de se reconstruir o caráter de uma pessoa a partir do mapa astral na hora de
seu nascimento, comprova a relativa validade da astrologia. Lembremo-nos de que
o mapa astral não depende absolutamente da constelação astronômica real, mas é
baseado num sistema de tempo arbitrário, puramente conceitual. Em decorrência
da precessão dos equinócios, o ponto da primavera há muito se deslocou
astronomicamente de zero grau de Áries, de forma que o zodíaco astrológico, a
partir do qual são calculados os horóscopos, não corresponde de maneira alguma
ao zodíaco celeste. Se consideramos a
existência de diagnósticos astrológicos corretos, estes sem dúvida não se
baseiam na influência dos astros, mas em nossas hipotéticas qualidades do
tempo. Em outras palavras, o que nasce ou é criado num dado momento adquire as
qualidades deste momento. (Jung, 1985, p.47).
Termino
esse texto com essa longa citação, afinal, o intuito deste escrito foi,
simplesmente, reiterar aquilo que Jung dissera já inúmeras vezes e, talvez,
tornar isso um pouco mais claro. Espero, sinceramente, ter, ao menos, me
aproximado de meu objetivo.