quinta-feira, 29 de agosto de 2013

E se?

Tenho andado pensando sobre coisas como “o sentido da vida”, como não sou, e nem pretendo ser, filósofo, eu costumo me restringir a pensar no sentido da minha vida. Isso me vem me tomando um certo tempo, ao ponto de eu acreditar ter chegado a uma boa conclusão de qual seja o sentido da minha vida. Parece pretensioso, mas eu realmente venho pensando nisso há um bom tempo, um bom tempo mesmo, essa preocupação filosófica já não é algo tão central em minhas divagações e pensamentos, mas sim as decorrências dela.

É muito difícil lidar com as pessoas, especialmente com as que jamais pensaram sobre isso e que, ao que me parece, preferem não pensar sobre o sentido de suas próprias vidas. É ainda mais difícil lidar com aquelas que parecem ter aceitado que o sentido de suas existências é simplesmente algo que lhes foi imposto de fora, e que perseguem ideais e objetivos que não são seus, sejam eles quais forem, mas normalmente trata-se de dinheiro. Não me entendam mal, não acho que dinheiro seja algo ruim, nós dois juntos faríamos uma boa dupla, mas não creio que esse seja o sentido da minha vida, e muita gente corre desesperadamente atrás de dinheiro e ao ganhá-lo costuma perder a si mesmas. É realmente difícil convencer as pessoas de que você não é louco, excêntrico, ou simplesmente um rebelde (principalmente quando se sabe que, no fundo, você é mesmo um pouco dessas coisas), simplesmente por que não está o tempo todo correndo atrás daquilo que as pessoas acham que você deveria estar correndo atrás.

Há um problema a mais nisso tudo, um grande problema na verdade. A vida tem meios insidiosos de te fazer precisar de coisas e entre essas coisas está o dinheiro, e sem ele não se pode fazer um monte de coisas legais, ou mesmo, um monte de coisas bem básicas, como comer, por exemplo. Há um momento da sua vida, um momento bem difícil, em que você precisa encarar um monte de gente nos olhos, um monte de gente que alcançou algumas das coisas que lhes foram impostas, mas que já precisam correr atrás de novas coisas que todo mundo acha que eles precisam, e, sem ter conseguido nada disso, sustentar que você não é um maluco fracassado. Isso por que do mesmo modo em que algo em você, algo muito importante, lhe diz que você está certo, que as coisas irrelevantes aos olhos dos demais com o que você está se preocupando, e que não passam de excentricidades para as pessoas normais, são o coração da sua alma, o sentido dessa sua curta vidinha nessa terra estranha e maravilhosa, há uma outra voz. Ah! A outra voz! A maioria escuta sempre essa outra voz, até por que não consegue mais escutar a primeira, e ela vem da boca dos seus pais, do seu chefe, do seu padre, do seu vizinho, do seu médico, do seu porteiro, do jornal, do professor, do seu síndico... A lista é interminável, mas o pior é que eu escuto com clareza essa outra voz vindo do mesmo lugar de onde vem a primeira: da minha alma.

Isso complica muito as coisas, o simples fato de ouvir essa voz que me diz que eu devo fazer o que eu devo fazer para ser eu mesmo e não o que os outros fazem, já me torna alguém antiético, visto a ética ser algo social. E esse é o lado bom, a voz do anjinho. Mas há uma voz demoníaca que sussurra um “e se?”, essa voz é assustadora. Na verdade as duas são, mas chega um momento em que você simplesmente cansa de não ouvir a primeira, que você percebe todos os becos sem saída que ouvir a todos, menos ao seu espírito, lhe leva. E você se resigna em ser você mesmo, esse sujeito antiético, que não compreende ou segue minimamente o que é decente, correto e apropriado, que se veste de um jeito estranho e não faz o que todos estão fazendo. Minha avó tem uma palavra para isso “desusado”, é um arcaísmo, que só a minha avó usa, mas ela está certa, eu sou “desusado dos outros”. Eu acho graça da minha avó falar isso, mas, ultimamente, ao encarar os outros, e encarar seus julgamentos, mesmo que vazios, eu tenho visto espelhado em seus olhos vítreos o meu demônio que diz “e se?”. E se a minha avó estiver certa? E se eu for simplesmente um maluco, rebelde, excêntrico? E se todas essas coisas que eu perco tanto tempo escrevendo não fizerem sentido algum? E se na minha lápide estiver escrito apenas “aqui jaz mais um excêntrico”? E se...

Essa voz tem se tornado mais insistente, não tanto quanto a que me diz que eu devo ser eu mesmo, e me explica como é que esse “eu” deve ser, essa eu escuto o tempo todo, mas mesmo assim, esse diabinho tem começado a falar alto e de maneira incômoda, para não dizer maquiavélica. Nossos demônios sempre são perspicazes, acho que é uma das exigências do cargo, também são atentos e minuciosos e muito dedicados, eles não deixam passar nem uma chance de rir das suas dúvidas e ecoar os seus fracassos. Eu penso que talvez, e o talvez aqui já é fruto da ação insidiosa desse meu diabrete, ele esteja preocupado com o emprego dele. Ultimamente eu tenho me dedicado a tentar fazer o que eu devo fazer. Isso é difícil, por que implica não fazer apenas o que a sua consciência manda você fazer, isso se torna corriqueiro depois de um tempo, implica fazer isso e encarar as demais pessoas, pior ainda, fazer isso tudo para elas, que nem te entendem e nem querem te entender. Bom, eu tenho tentando, tem sido duro, e eu faço tudo errado frequentemente, muito frequentemente, mas acho que a prática e a persistência podem, por fim, me levar aonde eu devo ir, aquele lugar que eu só saberei onde fica quando eu finalmente chegar lá. Nesse dia meu diabrete terá que achar uma nova ocupação, ou talvez, ele simplesmente sorria, me dê um tapinha nas costas e me diga “é isso cara, meu trabalho finalmente foi recompensado, tive momentos em que eu duvidei, mas cá estamos nós, somos um belo trio”.

Bom, eu continuo caminhando, tropeçando, às vezes caindo, mas caminhando. Talvez os outros malucos, excêntricos e rebeldes estejam lá, nesse lugar para onde estou indo, fazendo apostas para ver quando e se eu vou chegar. Se tiver ao menos outro maluco, excêntrico e rebelde lendo isso aqui, isso talvez seja um sinal, talvez...

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Sobre a Psicologia do Boato

Em 1910, Jung publicou um pequeno escrito intitulado “Contribuição à psicologia do Boato”, por essa época ainda era o “príncipe herdeiro” da psicanálise, e o texto traz a marca da influência freudiana sobre a perspectiva de Jung, todavia não deixa de ser um texto de uma psicanálise no mínimo peculiar, visto Jung ter se colocado como um autor desde o princípio de sua relação com Freud, mais de interlocução e menos de discipulado. Apenas 3 anos depois, ele romperia com o pai da psicanálise em virtude de sua concepção de libido exposta no livro que funda a psicologia complexa “Wandlungen und Symbole der Libido” (metamorfoses e símbolos da libido). Jung expunha, apoiado em amplo material empírico, em um texto confuso e um tanto incoerente no qual ele trabalharia pelos próximos trinta ou quarenta anos, que o inconsciente não sabe apenas desejar, mas sabe também cancelar seus desejos.

Até onde li de Jung (só há pouco comecei a lê-lo em alemão e ainda de maneira um tanto lenta), não me recordo de qualquer outro de seus escritos que verse sobre o boato. Meu interesse sobre o tema se deve ao advento dos boatos da internet, a princípio com os emails com histórias e relatos estapafúrdios (que passei a ter o hábito de checar e, enviar a mesma lista que recebera o boato um desmentido), e posteriormente os boatos que se alastram pelo facebook. Meu trabalho de Sísifo, de tentar rebater esses boatos, me despertou a curiosidade de pensar um pouco mais sobre eles, mas a gota aconteceu há poucos dias, numa conversa à toa, duas pessoas me afirmaram, com inatacável certeza, inabalável segurança, inelutável convicção, dignas de fazer corar um Descartes ou um David Hume, que a Forbes publicara que Lula era Bilionário. Eu que deixasse de ser ignorante e, diante de uma prova tão contundente, parasse imediatamente de defender o Lula, ricaço reconhecido pela imprensa. Obviamente, mesmo diante dessa certeza toda, de toda essa autoridade, e serena e inabalável confiança na veracidade da internet e congêneres, desconfiei. Bom, esse boato é tão antigo (2006), que demorei até para achar, para ser mais exato, nem mesmo achei o dito boato, só o desmentido. Ainda estou surpreso, não com o boato, mas com seus efeitos, quisera eu pudesse lhes transmitir a inatacável certeza com que fui confrontado, nem mesmo meus dotes literários me permitem reproduzir o sentimento de verdade absoluta de meus interlocutores, não era simples má fé, não, com isso estou mais do que acostumado, era uma certeza plena e cristalina.

Circulam, ou circularam (e circularão), pela internet diversos boatos. Sobre o filho do Lula, o Lulinha, já houve tantos, que me espanta que as pessoas ainda acreditem nesses boatos, mas elas ainda acreditam. Barak Obama também já foi vítima de vários, até mesmo o boato maldoso, de quem nem mesmo seria americano. Bush teve sua cota de boatos (no caso dele eram mais piadas, dando conta de sua proverbial estultice), como o boato de que ele não passava de um fantoche de seu vice-presidente. Muitos mais poderiam ser elencados, centenas, milhares talvez, desse tipo de boato. O número aumenta consideravelmente se levarmos em conta os boatos que circulam sobre a vida pessoal das celebridades, e, creio que chegaria a cifras astronômicas se pudéssemos de alguma forma contabilizar os boatos que afetam a vida das pessoas comuns. Sua recorrência estatística é assustadora, e trata-se fenômeno arraigado, e antigo, por exemplo, na guerra dos trinta anos, se atribuíam a Wallenstain os mais disparatados boatos, desde traições mil, até o poder de atrair desgraças e catástrofes – como incêndios – com sua mera presença. Na velha Hélade, sobre Alcebíades, circulavam tantos e tais boatos que se imaginava que ele fosse um general imbatível, e que quando era derrotado, só podia significar traição. Sobre o pirata Francis Drake, também corriam de boca em boca, os mais rocambolescos boatos. Seu conservadorismo, em termos psíquicos, nos dá pista de que corresponde em algo de arcaico na estrutura de nossa alma.

Retornando ao texto de Jung a que me referi no início, em uma escola, uma garota havia espalhado uma história maldosa de teor sexual sobre seu professor, em virtude desse fato fora expulsa. O golpe gerado pelo castigo forra demasiado para a menina e sua família e o colégio resolveu aceitá-la de volta com base em um laudo médico. O boato se originara a partir de uma sonho, este inofensivo em si mesmo, que ele relatara imediatamente a 3 amigas. Esse sonho fora corretamente interpretado em sentindo sexual por cada uma das amigas que contou uma versão do sonho original.

Creio que, ao tratar aqui do boato, precisamos deixar claro, assim como no caso do sonho de velado teor sexual que os vários boatos interpretaram, que ele diz menos respeito à vítima do boato (no caso de Jung o referido professor) e mais aqueles que o escutam ou que o propagam. De alguma maneira, o boato formula conscientemente algo de seu inconsciente. Como bem sabemos, por meio de uma enorme quantidade de dados empíricos (sonhos, visões, lapsos de fala, gestos involuntários, e os assim chamados, estados patológicos), há em nosso psiquismo um fator irracional, existencial inalienável, aquilo que Jung chamava de fato psicológico real, o inconsciente psíquico. Em bem menor escala, o boato trata-se, a meu ver, como um tipo de contágio psíquico, mas de escopo limitado e que, para além de reforçar nossa própria inconsciência, na maioria dos casos, não traz maiores prejuízos àqueles que os ouvem ou espalham (o mesmo nem sempre se dá com a vítima do boato). Nesse sentido, para compreender a psicologia do boato, devemos nos perguntar o que, em nosso psiquismo, permite que ele surja, se propague, se alastre parece um termo mais preciso, e possua um tal poder de convencimento que solapa na maioria das pessoas a capacidade de discernimento racional.

Um boato não é simplesmente uma mentira, apesar de existir uma mentira em seu núcleo, é, todavia uma mentira que formula algum dado elementar do psiquismo coletivo, logo, em certo sentido uma verdade coletiva que diz menos respeito ao alvo do boato e, bem mais, a coletividade de onde se originou e onde se alastra. Na realidade, o boato necessita de algo fantástico, ou fabuloso, do contrário não teria a força que advém justamente de sua irracionalidade, que o coloca, para a maioria das pessoas, num patamar imune, ou impermeável, a toda e qualquer crítica racional (consciente). Acontece que o boato, não é contado, ou percebido, pelas outras pessoas (talvez nem mesmo pela pessoa em que ele se originou) como uma mentira deliberada, seu incrível poder de sugestão se dá, paradoxalmente, por seu caráter, geralmente fantástico e inverossímil, ser tomado como verdade. O texto de Jung é precioso, pois remete aquilo que há de mais primitivo na psicologia do boato, naquilo que há de mais arcaico de uma maneira mais evidente do que os boatos mais arraigados sobre pessoas de grande importância coletiva, que me fizeram deitar a pena ao papel. O boato, assim como o sonho, deve ser, ao menos em parte, uma produção espontânea do inconsciente, principalmente no que diz respeito aos boatos mais comezinhos que envolvem pessoas mais ou menos próximas, ou os boatos, geralmente de teor sexual, que envolvem a vida das celebridades. No que diz respeito aos boatos que envolvem em sua complicada teia, políticos como Lula e Obama, ou seus parentes, há certamente uma dose bem maior de logro e má fé. Por certo alguém deliberadamente e movido pelo desejo de causar dano à imagem desses políticos inventou alguma história incrível e a disseminou. Mesmo nesses casos, como as fabulosas histórias que circulam sobre o filho do ex-presidente Lula, há sem sombra de dúvida, uma participação do inconsciente daqueles que leem a tal história, a tomam por verdade (num sentido até mesmo mais elevado do que a verdade corriqueira que tem por base, em nossa sociedade, algum fato material) e o disseminam e, até mesmo se orientam por ele em suas decisões e juízos.

Tenho um exemplo interessante sobre o caráter fantástico e extravagante do boato. Certa feita, meu dileto amigo Filipe Jesuíno ministrou uma palestra sobre o Batman, dias depois uma de suas alunas lhe contou a seguinte história inusitada. Estava essa aluna tirando fotocópias de textos para uma das disciplinas que meu amigo lecionava quando, outro aluno, que jamais fora aluno do Filipe e sequer o conhecia, ao ver o nome dele nas cópias teceu os seguintes comentários "poxa você é aluna do Filipe Jesuíno?! Muito massa, ele é muito bom, teve aquela palestra sobre o Batman, o cara tem muita atitude, muita atitude, o cara foi dar a palestra vestido de Batman!". Creio que eu não preciso acrescentar que ele não ministrou a tal palestra fantasiado...

Temos aqui duas categorias interessantes no que diz respeito ao boato: mentira e verdade. Não é ocioso salientar que, essas categorias não são absolutas no que concerne ao entendimento da psicologia desse fenômeno. Em termos puramente racionais (até onde isso é humanamente possível), certamente as informações contidas nos boatos são falsas, pois não correspondem a uma verdade factual, por exemplo, o Lulinha não é dono de fazendas fabulosas com palacetes (que na verdade eram fotografias do prédio histórico de uma reitoria), tão pouco Obama era um estrangeiro, mas, essas ideias, por mais mórbidas que possam parecer a crítica racional, tão pouco, em termos psicológicos, são falsas. Teremos, estimado leitor, que lidar com o fenômeno em sua paradoxalidade se quisermos entendê-lo. Ao invés de utilizar esses termos verdade/mentira, devemos procurar apoio não, nas corriqueira formas tradicionais de pensamento (esse em re, esse in intelectu solo), ambas quedam prisioneiras dessas categorias, que as agrilhoam e não nos permitiriam avançar por nenhuma dessas sendas. Nosso ponto de Arquimedes é a perspectiva psicológica (esse in anima) como formulada por Jung. O boato trata-se ou de uma produção espontânea da fantasia, ou de algo (uma mentira deliberada) que justamente pelo seu exagero e teor fantástico, ativam a fantasia dos que têm contato com ela, não se tratando por isso, em termos psicológicos, nota bene, de uma inverdade simplesmente. Como no exemplo do casal que acreditava piamente na existência de uma revista Forbes que mostrava o Lula como um dos cem homens mais ricos do mundo, o boato é sentido como real, como verdade, e o seu caráter fabuloso, ao invés de ter o efeito de diminuir seu poder de sugestão e persuasão, o aumenta. Mas em termos psicológicos o que é real? Por incrível que pareça, a resposta é simples, tudo aquilo que age, que atua, é real.

Vejam o caso do boato que ouvi com inabalável convicção do casal que o professava com um temor quase religioso (a força de expressão literária que uso, esconde uma verdade psicológica, basta para isso remover o quase, mas me adianto), para ambos, independente de o Lula ser ou não um bilionário, aquilo agia de maneira poderosa sobre seu psiquismo, como um fator numinoso que atraía sua atenção e libido de uma maneira irresistível, enfeitiçando a sua consciência e impedindo qualquer reflexão. Ingenuamente, eu ainda tentei raciocinar e disse “bem, isso é impossível, talvez haja alguma confusão aí. Não seria uma lista dos cem homens mais influentes? Uma lista que diz respeito ao poder político e não financeiro?”. O meu argumento, por mais que lógico e sensato, foi sumariamente dispensado, a senhora elevou o tom de voz e com um gesto autoritário para reforçar sua fala, retrucou de maneira lacônica “não! Rico!”. Seu gesto em seguida foi significativo, ele virou o rosto na direção contrária a minha, em seguida seu marido falou de uma maneira como se ele possuísse um exemplar da revista, revista essa que não existe! Disse até mesmo que o levaria como prova a um amigo incrédulo. Percebem que, aquilo que nossa consciência coletiva desperta tem como mais sacrossanto, nossa tendência irracional da preferência sentimental e universal pelo mundo físico, não significava nada diante do poder da irracionalidade desse boato, que funcionava, exatamente com o mesmo poder nefasto de sugestão de um sintoma histérico. A ideia mórbida, de que Lula é um bilionário que está numa lista da Forbes, atua na consciência de maneira autônoma – quase demoníaca – de maneira compulsiva, carregada de tal carga de afeto que o complexo do eu é mais um objeto dessa ideia do que seu sujeito.

Restou a mim o silêncio resignado e, depois de muito matutar por meses observando esse tipo de boatos no facebook, finalmente me resolver a escrever. Perceba estimado leitor, que mesmo eu e meus complexos, tão autônomos quanto os do casal que possuía uma revista fantasma, fui atingido pelo poder do afeto desse boato e mobilizado a escrever. Ninguém está realmente a salvo desse tipo de influencia demoníaca, não se iludam. Quando o meu interlocutor falou que possuía a tal revista, por um instante eu titubeei, uma semente insidiosa de dúvida foi plantada em meu espírito, a ponto de me levar a pesquisar a veracidade de algo que, de tão estapafúrdio, deveria ter descartado como mera quimera sem pensar duas vezes, mas o segredo do poder sugestivo é justamente a absoluta certeza com que se faz a sugestão, não uma certeza fingida, mas uma certeza real e inamovível. A realidade psíquica (Realität) se baseia na constatação de que vivemos imediatamente num mundo de imagens (representações) psíquicas, toda a nossa realidade é mediada pelo psiquismo, não temos acesso direto a matéria, ou as coisas que nos cercam como elas o são em si, temos acesso exclusivamente às representações psíquicas das coisas, por isso nossa única realidade imediata é a realidade do psíquico, a tal ponto que Jung chega mesmo a afirmar, em Psicologia e Religião, que a psique é a realidade.
Nosso espírito não pode apreender sua própria forma de existência, pois falta-lhe seu ponto de apoio de Arquimedes, externamente, e não obstante, existe. A psique existe, e mais ainda: é a própria existência. (Jung, 1995, p.14).
Tanto o espírito quanto a matéria, estes dois conceitos, são símbolos usados para expressar fatores desconhecidos, quaisquer explicações da realidade, que se baseiem em um ou em outro, são igualmente lógicas, igualmente metafísicas, igualmente arbitrárias e igualmente simbólicas. Todo o nosso processo físico de percepção, altamente complexo está, automaticamente e quase simultaneamente, relacionado a um mais complicado ainda processo de apercepção, que transforma os dados sensoriais em imagens psíquicas altamente complexas. Veja, estimado leitor, existem dois tipos de apercepção: apercepção ativa e apercepção passiva. Estamos tratando aqui de um fenômeno que diz respeito à apercepção passiva. A apercepção é um processo psíquico pelo qual se articula um novo conteúdo com conteúdos semelhantes e já existentes. A apercepção ativa ocorre quando o sujeito apreende conscientemente, por motivação própria, um novo conteúdo e o assimila a outros conteúdos já a disposição. A apercepção passiva, que nos interessa mais de perto em virtude do fenômeno do boato, é o processo pelo qual um novo conteúdo se impõe de fora (pelos sentidos) ou de dentro (a partir do inconsciente) à consciência, forçando a atenção e apreensão. No segundo caso, a despeito do eu, o novo conteúdo força a sua presença.

Veja, estimado leitor, voltemos ao nosso objeto de estudos, o boato, em particular aquele que foi a proverbial gota d’água que me levou finalmente a organizar minhas reflexões. Para meus dois interlocutores, Lula não passa daquilo que Jung Chamou de “mitologia jornalística”, eles jamais tiveram contato com ele pessoalmente, ou o conhecem, ele é uma imagem na televisão, ou fotografias nos jornais e revistas, o que acontece aqui, é um fenômeno de mitopoiesis, porém mórbido e capenga. Em seu Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, ao falar dos mitos dos primitivos, Jung asseverou que o homem primitivo não estava interessado na explicação objetiva do óbvio, seus mitos não procuravam explicar a realidade externa, não, o mito é a essência da alma. As figuras míticas correspondem a vivências interiores que as produziram originariamente. A alma inconsciente possui uma necessidade imperativa de assimilar toda experiência sensorial externa a acontecimentos anímicos, não se trata de mera alegoria, mas sim expressões simbólicas do drama interno da alma, que o homem só conseguia apreender por meio da projeção. O drama inconsciente era encontrado analogicamente em todos os fenômenos da natureza. O que acontece no que diz respeito ao boato é que a imagem de Lula com todas as suas qualidades e defeitos, é assimilada pelo complexo inconsciente para representar, de maneira espelhada, um drama inconsciente. Em virtude desse processo, no nosso caso Lula, ganha características grandemente exageradas, sobre-humanas, ou sub-humanas (o que também significa um tipo de exagero), tão radical é a projeção que quem se enfeitiça pelo boato, sequer desconfia que se trate de um drama que diz respeito a sua própria alma inconsciente. No nosso caso, ele é um bilionário, não um mero ricaço, ou milionário, mas bilionário, o excesso, o exagero, nos indica a intensidade do afeto que sua imagem constela.

A “projeção”, na realidade a identidade arcaica, pois para ser preciso só se pode falar em projeção quando se começa a quebrar a identidade, não é um arbítrio, ela é um fenômeno inconsciente e automático, e como todo fenômeno inconsciente é compulsivo. A consciência não a cria, ela já está lá de antemão. Pois bem, a identidade/projeção é um fenômeno inconsciente e automático por meio do qual um conteúdo inconsciente para o sujeito é transferido para um objeto, que cessa no momento que se torna consciente (um penoso processo composto de 5 etapas sucessivas). Para esse processo, passa a importar muito pouco o Lula de carne e osso, na verdade esse processo tem por consequência o isolamento do sujeito em relação ao mundo exterior, passando a existir uma relação ilusória.
As projeções transformam o mundo externo em concepção própria, mas desconhecida. Por isso, no fundo, as projeções levam a um estado de auto-erotismo ou autismo, em que se sonha com um mundo cuja realidade é inatingível. (Jung, 1988, p.7).
No nosso caso, de nosso boato, vê-se com clareza que o conteúdo inconsciente projetado é algo negativo, aquilo que Jung denominou de sombra, em certa medida, esses boatos que fazem uso dessas pessoas de elevado valor coletivo, Lula, ou Lulinha (psicologicamente seu duplo), se prestam a carregar essas projeções negativas, de nossa ambição, ganância, falta de ética, pouco importando o Lula de carne e osso. O oposto é igualmente verdadeiro, e esse aspecto psicológico foi magistralmente explorado na campanha eleitoral de Dilma, a admiração que há por Lula (que é enorme, muito maior do que o aspecto negativo e sombrio) se deve a projeção da imago parental de seus eleitores, a propaganda foi altamente sugestiva ao colocar Lula como pai da nação, com isso atingiu-se o âmago do espírito de seus admiradores e eleitores.

A identidade/projeção é incrivelmente conservadora, e somente por meio de um trabalho árduo e penoso de autoconhecimento (compreensão) pode ser desfeita, pois a sombra constitui um delicado problema de ordem moral que desafia o homem todo. Uma parte do poder do boato vem do caráter numinoso dos conteúdos inconscientes projetados. O númeno é a energia psíquica própria do arquétipo, numinoso é toda existência ou efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. A consciência é severamente perturbada, ela não criou esses efeitos dinâmicos o efeito de apodera do indivíduo, o numinoso é uma condição do sujeito, que independe de sua vontade (o quantum de energia disponível a consciência). Esse aspecto, que está ligado àquilo que foi projetado e que circula por meio do boato, é irracional, e imune a qualquer tipo de boa vontade ou lógica, o sujeito já não pode mais argumentar, é uma suprema verdade que se impõem com força avassaladora, uma experiência emocional que move o sujeito e que nenhum argumento pode abalar sua realidade imediata e poder sugestivo. Em nosso caso trata-se de uma ideia mórbida, altamente comovedora, que pensa no lugar do sujeito, e que é tão convincente e imediatamente real, e tão carregada de afeto que perturba a hierarquia da consciência. Como já aludi anteriormente, há um estado auto-erótico, de isolamento da realidade em virtude da identidade/projeção, e acontece que à medida que a realidade perde a sua influência as fantasias interiores aumentam sua força. A libido que deveria estar investida na realidade reanima regressivamente as fantasias inconscientes aumentando ainda mais o alheamento da realidade e confere a essas fantasias uma força determinadora insuspeita. Mas por que tais boatos se alastram? A resposta é que eles tocam uma corda comum.

O inconsciente é uma psique impessoal comum a todos os seres humanos, que paradoxalmente se expressa por meio de uma consciência pessoal. Jung utiliza uma alegoria interessante para ilustrar isso, todos nós respiramos, mas nem por isso a respiração deve ser interpretada como um fenômeno pessoal, assim como o inconsciente, a respiração é um dado coletivo. As imagens míticas, mesmo as projetadas em Lula ou Obama, ou mesmo Justin Bieber, pertencem à estrutura do inconsciente, que mais possui a maioria das pessoas do que é por elas possuída. Lembremos, ao analisarmos esse fenômeno, estimado leitor, das palavras de Jung em uma de suas obras – uma das mais importantes em minha opinião – Presente e Futuro, de que o dom da razão e da reflexão crítica não constituem uma propriedade incondicional do homem. Quando a temperatura afetiva se eleva, em virtude das emoções provocadas por uma situação terem ultrapassado certo ponto crítico, a razão dá lugar a irracionalidade compulsória, o que surge no lugar da razão são desejos quiméricos, slogans e preconceitos afetivos, e que podem se transformar em uma espécie de possessão coletiva. Convém salientar, que o estado de identidade caracteriza a consciência da criança, do primitivo e o inconsciente do adulto civilizado. O nosso boato, dos bilhões de Lula publicados na Forbes, extrai sua força desse estado psíquico, veja, como afiança Jung, quem quer que se identifique com a psique coletiva tentará impor aos outros as exigências de seu inconsciente, pois esse tipo de identidade acarreta um sentimento de validez geral que provém da universalidade da psique coletiva. Graças a esse sentimento essa pessoa ignorará por completo as diferenças pessoais dos demais.
Uma atitude coletiva pressupõe, obviamente, esta mesma psique coletiva nos outros. Isto significa, porém, um menosprezo implacável frente às diferenças individuais (...). (Jung, 1997, p.26).
Vejam, a despeito de minha boa vontade em debater a tal história extravagante dos bilhões de Lula publicados na Forbes (um “mero boato”) a resposta a minha argumentação foi um enfático “Não! Rico!”, o dom da razão, em virtude da identidade/projeção, do caráter numinoso da ideia mórbida que se achava espelhada na imagem de Lula, do desprezo às diferenças individuais que a sensação de validez geral causa, já tinha ido há tempos pras cucuias. Vejam que mesmo eu (ciente de todas essas coisas psicológicas de nomes estranhos) não estava imune ao efeito sugestivo dessa ideia mórbida extravagante, e titubeei quando vi meu outro interlocutor afirmar que possuía a tal revista que sequer “existe” – ela existe e é real, pois tudo aquilo que age que atua é real e, a tal revista fantasmagórica agiu até mesmo em mim. Há em todos nós um aspecto individual[1] (que é único, imprevisível e não interpretável) e um aspecto coletivo. Existem inúmeras pessoas cujo traço principal é o coletivo, e outros em que o traço preponderante é o individual. O homem com traço coletivo preponderante é o “homem genérico”, o homem genérico possui características primitivas, no sentindo de estar sujeito de maneira mais acentuada à identidade arcaica, nesse caso, tem efeito sobre ele, como no primitivo, tudo aquilo que impressiona. Jung, ao tratar dos métodos terapêuticos, inclusive os métodos que se baseiam na sugestão, afirmou que no que se refere aos últimos “Só importa o método em que o terapeuta tem confiança. Sua fé no método é decisiva.” A sugestão deita suas raízes lá onde à consciência claudica e, essa brecha na muralha, aumenta em decorrência do contágio psíquico, típico da psicologia de massa, e, vejam, a fé de meus interlocutores em seu boato extravagante era tanta que fez com meus demônios despertassem e se rissem de mim e de minhas certezas, abismo convoca abismo. Em virtude dessa certeza, e do caráter numinoso da ideia mórbida que estava no coração da identidade/projeção fui tomado pela dúvida, mesmo que momentânea, e, ao mesmo tempo, instigado a finalmente pensar sobre um fenômeno que há tanto tempo me incomodava. Esse traço coletivo, do “homem genérico”, está presente em todos nós, daí a força sugestiva desses boatos, que apelam à inconsciência, a nossa inferioridade, pois o homem primitivo (primevo, arcaico) vive ainda em nós sob uma pátina muito delicada de consciência e cultura, bastando aquilo que Jung chamou de abaixamento do nível mental (termo cunhado por Janet), seja causado pela fome, cansaço, ou um baralho estranho numa noite escura e sem lua, para que ele se manifeste e junto dele retorna o mundo das origens, repleto de seus fantasmas e demônios, que hoje em dia se disfarçam na forma de “ismos”, preconceitos afetivos, slogans, e histeria de massas. Mas como esses boatos se espalham tanto?

Mutatis Mutandis, eles são um tipo sutil e discreto de histeria de massas, representam um tipo de contágio psíquico que podem significar o sintoma de um mal coletivo mais grave. Há ainda algo a que apenas aludi, e que antes de começar estas considerações, é importante salientar, o boato não apenas formula algo de nosso inconsciente de maneira projetiva, é muito comum que nosso inconsciente acrescente algo a ele, como no caso estudado por Jung em 1910, o que o torna ainda mais crível, o que a maioria das pessoas não se apercebe, por ser inconsciente, é que a maioria de suas ações, gestos ou mesmo opiniões e pensamento são atuações do inconsciente na consciência por meio de lacunas desta. Certa feita, eu estava em um grupo de estudos de meu dileto amigo e parceiro de estudos e pesquisas Filipe Jesuíno, quando um dos participantes disse algo desdenhoso e francamente maldoso ao meu respeito. A despeito de ser um tanto atrevido, em um raro rasgo de grandeza, eu preferi ser elegante e ignorar o comentário maldoso. Meu amigo, numa flagrante inversão de nossos papéis habituais, ficou imediatamente vermelho como um pimentão, vociferou com o fulano ao mesmo tempo em que batia com força na mesa enquanto o outro fazia uma careta apavorada e se encolhia covardemente. No dia seguinte a esse episódio inusitado ao falar com meu amigo, ele sequer se recordava de ter levantando a voz, ou mesmo ter batido na mesa, sua memória era a de ter dado uma resposta direta e elegante e, simplesmente “respondido a altura” a grosseria, pois eu era seu convidado no tal grupo, somente quando eu lhe contei a história, ele, por ter confiança em mim e não por ter podido se recordar de outra maneira, pôde se dar conta do afeto que o tinha tomado. Até então as batidas na mesa, a voz alta, tudo isso fora inconsciente. Mesmo pessoas as mais sãs e normais, não estão a salvo da autonomia de seus próprios complexos, para piorar a situação, Jung supunha (de maneira otimista) que para caso manifesto de doença mental existem ao menos dez casos latentes, que não manifestam sintomas claros de seu estado, porém suas condutas e concepções se encontram sob a influência de fatores inconscientes doentios e perversos. O estado mental dessas pessoas se acha coletivamente exaltado por preconceitos afetivos e fantasias de desejos impulsivas, tais pessoas são o combustível ideal para que se alastre uma epidemia psíquica, ou um boato. Mas como mostra o meu exemplo (tanto o do efeito de sugestão que a ideia extravagante de que Lula era um bilionário, quanto o de meu dileto amigo Filipe) mostra que mesmo pessoas normais (peço ao leitor parcimônia com a minha suposição de nossa normalidade) estão sujeitos, em um momento ou outro a fantasias de desejos impulsivas e preconceitos afetivos. Mas, por quê?

Infelizmente, muito poucos de nós despendem as energias morais necessárias para ser capaz de encarar sua própria sombra, isto é, suas inferioridades, traços obscuros de caráter que, entregues a si mesmos possuem uma natureza emocional, certa autonomia e uma tendência a se tornarem obsessivos, e até mesmo, possessivos. Considerem o meu momento de dúvida diante de uma ideia estapafúrdia, ou a ira do Filipe, em nenhum dos dois casos tratou-se de um arbítrio. Esses e uma miríade de outros exemplos nos mostra, que a emoção não é uma atividade, mas um evento que sucede ao indivíduo.  Mesmo pessoas normais possuem quimeras que fazem apelo a ressentimentos fanáticos, e não é difícil encontrar em uma vasta gama de pessoas motivos os mais variados para esse tipo de ressentimento. Nos boatos que vemos se espalhar pelo facebook, essa chega quase a ser a regra, em um espetáculo terrível de se observar a partir de uma perspectiva psicológica. Isso acontece, pois a vasta maioria das pessoas confunde autoconhecimento com o conhecimento da personalidade consciente do eu, mas, afiança Jung, o eu só conhece seus próprios conteúdos desconhecendo o inconsciente e seus respectivos conteúdos.
O que comumente chamamos de “autoconhecimento” é, portanto, um conhecimento muito restrito na maior parte das vezes, dependente de fatores sociais – daquilo que acontece na psique humana. Por isso, ele muitas vezes tropeça no preconceito de que tal fato não acontece “conosco”, “com nossa família”, ou em nosso meio mais ou menos imediato. Por outro lado, a pessoa se defronta com pretensões ilusórias sobre a suposta presença de qualidades que apenas servem para encobrir os verdadeiros fatos.
O campo amplo e vasto do inconsciente, não alcançado pela crítica e pelo controle da consciência, acha-se aberto e desprotegido para receber todas as influências e infecções psíquicas possíveis. Como sempre acontece quando nos vemos numa situação de perigo, nós só podemos nos proteger das contaminações psíquicas quando ficamos sabendo o que nos está atacando, como, onde e quando isso se dá. (Jung, 2011, pp. 13, 14)
A longa citação foi necessária para mostrar de maneira clara o quanto estamos todos sujeitos a em algum momento, acreditar, ampliar, ou divulgar um boato (ou coisas bem piores). É preciso ter claro, e isto nossa época parece ignorar, e até mesmo deseja ignorar, que a identificação entre consciência e psique é no fundo, uma presunção do intelecto, uma cara ilusão iluminista. Mas o fenômeno desses boatos, com seu conteúdo algumas vezes francamente fantásticos, alimentados por quimeras que fazem apelos a ressentimentos fanáticos (a infindável série de histórias absurdas sobra a prodigiosa fortuna do filho do Lula dão testemunho eloquente disso), mostra que a sombra de nosso racionalismo iluminista, as forças psíquicas inconscientes ainda se movem esquivas. Os velhos deuses e demônios ainda se riem de nós quando, ao sucumbirmos à irracionalidade e a seu poder de possessão, perdemos a dom da reflexão crítica e movidos por nossos ressentimentos fanáticos (contra os políticos, contra os pobres, contra a polícia, contra os bandidos, contra o PT, contra os ricos, a lista é longa e contraditória) damos fé a ideias estapafúrdias sem nem ao menos nos preocuparmos em saber se são fidedignas, ou se é correto espalhar calúnias, nesse caso, quando agimos com essa certeza, agimos como deuses eis um dos problemas éticos relacionados a essa boataria.nesses casos agimos segundo a ideia disparatada de que nosso julgamento é válido, esquecemo-nos de que as concepções morais são incrivelmente divergentes. Há um secreto orgulho luciferiano quando compartilhamos boatos incríveis, pois isso nos exalta e nos eleva, mais até do que diminui ou achincalha a vítima do boato, é uma imensa presunção acreditar que se pode sempre saber o que é bom ou mal, nesse ponto, pecamos todos por farisaísmo.



[1] Segundo Jung, “(...) a individualidade é apenas relativa, isto é, apenas complemente a conformidade ou a semelhança entre os homens (...)”

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Sobre Viadutos


Antes de mais nada, preciso confessar que, a despeito do título, este não é um escrito sobre viadutos. Não se trata de uma arenga técnica sobre modelos de viadutos, ou que tipo de concreto se usa ou quais equações são mais adequadas para calcular o que quer que se calcula ao se construir os tais monstrengos. Tão pouco uma reflexão urbanística sobre seus efeitos no entorno, sua ação paradoxal, pois deveria evitar engarrafamentos, mas os cria. Não, estimado leitor, não se trata de nada disso. Se seu interesse for sobre algum desses tópicos sugiro que os vá procurar alhures, todavia isso não significa que não falarei coisa alguma sobre viadutos, mas, para além do concreto de sua realidade concreta me interessa a ideia de viaduto.

Há certamente nas pessoas não um, mas muitos viadutos, todos eles muito diferentes entre si. Certamente há na cabeça do político o viaduto que conduz votos e não carros, que existe mais nas propagandas e cartazes do que nas ruas, que é feito menos de asfalto do que satisfação de seus eleitores. Há, por certo, no coração dos donos de construtoras um viaduto que é feito de dinheiro, cujas cifras e cálculos dizem respeito não ao seu peso, distância e ângulos, mas a cifrões e valores que, certamente, já calculavam ao doar, generosamente, seu dinheiro as campanhas dos dois candidatos com possibilidade de vitória nas urnas. Creio existir também, na mente dos que dirigem carros, ou dos que desejam possuir um, ou mais de um carro, um viaduto que, como que por mágica, os transportará a uma cidade sem carros, ou sem transito, onde podem usufruir do prazer que sempre sonharam ao ver as propagandas de automóveis e que pensam que a cidade com seus engarrafamentos lhes roubou. Há, e estou bem certo disso, o viaduto dos arquitetos e urbanistas, quem sabe esse um pouco mais real, ou, quiçá, o menos real de todos, que é feito de pensamentos sobre mobilidade urbana, efeitos causados ao entorno, e exclusão de ciclistas e pedestres. Devem existir muitos outros viadutos, tanto quanto existem corações, ou tantos quanto existam motores.

Existe igualmente uma cidade onde se vai construir esses viadutos, todos eles de uma só vez, há apenas uma cidade? Disso já não estou bem certo, é a mesma cidade a Fortaleza de nosso milionário vice-prefeito e a do ambientalista que vem conhecendo a truculência da polícia? É a mesma cidade a cidade onde vive o policial que mora na periferia, ganha mal e se desloca de ônibus? Vivem sob o mesmo céu e as mesmas estrelas o menino que pede esmolas no sinal e o governador que degusta caviar e escargot? Eu me pergunto qual cidade eles sonham, todos eles, ou antes, será que sonham essa nossa cidade? Não seria mais correto dizer que nosso vice-prefeito sonha Miami, e nossos ambientalistas sonham Estocolmo com suas intermináveis e paradisíacas ciclovias? E quem sonha Fortaleza? Isto eu não sei, mas assim como o viaduto, devem existir muitas cidades nos muitos corações que batem em suas vias de asfalto repletas de carros e de pessoas indesejadas que atrapalham o trânsito.


De todos esses viadutos e cidades que medram no coração das pessoas, será possível que uns possam compreender os outros? Disso é que estou menos certo. Nosso pomo da discórdia, feito de votos, dinheiro, cálculos, ideias e, pasmem, até mesmo asfalto e concreto, nos revela e nos desnuda. Desnuda nossa incompreensão, desnuda nossa ignorância, não sobre política, cidade ou urbanismo, mas sobre aquilo que deveria importar mais, sobre nossos vizinhos, nosso próximo, nosso outro e, fundamentalmente, sobre nós mesmos.