segunda-feira, 15 de julho de 2013

João e labirinto das bruxas

João era o mais novo de quatro filhos, quando seu pai morreu, toda a herança ficou com os irmãos mais velhos que o deixaram sem nada. Como não pudesse continuar a viver nas terras da família só lhe restou à vida de caixeiro viajante. Ele perambulou como um pobre coitado por várias vilas e cidades até que chegou a proximidade de uma vila de pescadores numa praia distante e longe de tudo. Quando estava na estrada ouviu rumores de que aqueles que iam para essa vila afastada nunca retornavam, ou, se o faziam, voltavam sem partes do corpo e loucos. Devido a esses boatos todos evitavam a estrada que levava até lá, mas João não deu bola para essa conversa e foi até lá vender suas mercadorias, pois era um vendedor muito ruim e pensou que ali não teria muita concorrência.
A vila era muito pequena e pobre, o chão das ruas era de areia branca da praia e os telhados de sapé, mas apesar da pobreza as pessoas pareciam satisfeitas com seu destino. A vila era tão pequena que não tinha nome nem uma pousada, mas ele conseguiu abrigo na casa de um velho pescador que lhe deu de comer em troca de algumas bugigangas. A filha do pescador vivia com ele e com três órfãos, um menino e uma menina gêmeos que deveriam ter dez anos, e um menininho de uns dois anos, louro e bochechudo que ninguém sabia ao certo como havia ido parar ali.
Quando a noite caiu, João resolveu sair para tomar uma bebida, a filha do pescador, que precisava sair, pediu que ele levasse com ele o menino pequeno, e os dois irmãos também resolveram segui-lo. No caminho para o bar, mesmo a vila sendo pequena, João deu voltas e mais voltas por ruas que não havia visto antes, e quando já se dava por completamente perdido, os gêmeos o levaram a entrar em uma porta aberta numa viela em um beco sem saída. Ali, ele encontrou um estranho labirinto, construído com os mesmos materiais das casas e repleto de corredores e salas cheias de coisas estranhas e assustadoras. Depois de um tempo os gêmeos constataram assustados que estavam perdidos no labirinto de bruxas que viviam na vila chamadas blatskas, e que se fossem pegos ali seriam certamente mortos, mas por mais que tentasse encontrar a porta por onde entraram não conseguiam, por fim eles resolveram se esconder dentro do labirinto e João nunca mais os viu. Esse tempo todo ele segurava na mão do garotinho e por fim, utilizando suas pegadas na areia branca para saber por onde tinha passado, encontrou a porta de saída.
Do lado de fora havia um cercado de pau a pique e não se via nem sinal da vila, e nesse cercado um imenso lobo de pelo negro como o piche. João jogou o garoto por cima da cerca e, antes que o lobo pudesse mordê-lo ele também saltou por cima da cerca com uma acrobacia. Do lado de fora, ele viu uma matilha de lobos que vinha da imensidão vazia e selvagem, ao se aproximarem eles todos se transformaram em pessoas, suas peles de lobos viravam apenas uma espécie de manto que lhes cobria a cabeça e as costas. Ele logo soube que se tratavam das tais bruxas. Um homem, segurando uma adaga curta de lâmina sinuosa se aproximou e lhe disse que por ter entrado teria que pagar com uma parte de seu corpo e, como entrara no labirinto com uma criança teria que se responsabilizar por ela também e perder outra parte de seu corpo. Colocando a ponta da adaga perto do olho de João, o homem lobo disse que na próxima lua cheia teria de entregar seu olho e um de seus testículos. Sem muita opção ele concordou e entrou novamente no labirinto e, dessa vez, foi capaz de encontrar a porta por onde entrara.
De volta à vila de pescadores, João sentou-se no chão de areia branca e deixou-se ficar ali abatido, precisava descobrir um meio de escapar das bruxas. Primeiro ele pensou em matá-las, mas como poderia matar bruxas capazes de se transformar em lobos selvagens? Ele estava assim, nesse estado de ânimo miserável e abatido quando o garotinho se dirigiu a ele falando de maneira clara como se fora um adulto. João ficou espantado, mas ouviu o que o garotinho lhe dizia. O menininho tinha um plano para salvar João. Na vila existia um homem que criava porcos e o primeiro passo era ir até lá e conseguir com o tal homem um olho e um testículo de porco. João ficou animado, assim poderia escapar de ter que perder partes de seu corpo, mas o menino o advertiu que isso não bastava, as bruxas mandavam uma delas coletar os pedaços do corpo e experimentar, se a carne fosse saborosa as demais iriam atrás do pobre infeliz para come-lo todo, se a carne fosse ruim elas o deixavam ir, mas usavam sua magia negra para deixar o coitado que caíssem em suas garras insano.
João se deixou cair novamente abatido, suas esperanças haviam voltado apenas para perceber no momento seguinte que a situação era ainda mais desesperadora do que pensara, mas novamente o pequenino de cabelos loiros lhe disse “você cuidou de mim, e evitou que aquele lobo negro me devorasse, mesmo arriscando a própria vida, por isso vou retribuir o favor, não se desespere eu tenho um plano, mas primeiro vamos conseguir o olho e o testículo de porco”. O menininho levou João até o local onde ficavam os porcos e com as poucas moedas que tinha ele comprou um olho e um testículo. Quando saíram do chiqueiro o menino disse. “agora você precisa de uma planta que cresce na foz do rio, em um manguezal, mas ela é guardada por uma bruxa em forma de serpente”. João se deixou cair novamente abatido, como poderia encarar mais uma bruxa? O menino explicou que a bruxa vivia num lago e que para pegar as planta João teria que entrar no manguezal e ao chegar ao lago, nadar até a outra margem prendendo o fôlego, se ele tomasse ar a cobra o morderia e ele morreria envenenado, mas enquanto segurasse o fôlego ela nada poderia fazer.
Mesmo apavorado João seguiu as instruções e entrou no manguezal e logo encontrou o lago de água salgada. Ele tirou a roupa e prendeu o fôlego antes de mergulhar. Assim que ele começou a nadar, uma imensa cobra coral de mais de três metros começou a segui-lo, mas não o molestou. Na outra margem ele pegou a planta e nadou de volta. Enquanto ele vestia as suas roupas na margem, ele viu no meio do lago uma mulher nua muito bonita e teria pulado para salvá-la da cobra se o menininho não o tivesse impedido “aquela é sua verdadeira forma, se você voltar para a água certamente será morto”. De volta à vila, o menino ordenou a João que espremesse as folhas até conseguir um suco e mergulhou no suco os dois pedaços de carne de porco. Em seguida ele explicou o plano. Ao comer a carne o homem lobo seria acometido de uma terrível dor de barriga, e nesse momento João poderia se apoderar de sua pele de lobo e adaga, assim roubaria os poderes e poderia escapar. No dia marcado o menino enrolou ao redor do olho de João um pano ensanguentado e disse a ele que mancasse de uma perna, para fingir estar ferido. Quando chegaram ao local combinado o homem lobo surgiu na forma de uma lobo branco imenso, mas logo voltou a forma humana. João se aproximou receoso e lhe entregou um pacote com o olho e o testículo. Salivando o homem agarrou o pacote e devorou os pedaços que pensava serem de João. Rapidamente ele começou a se sentir muito mal e muito enjoado e logo sentiu que precisava urgentemente correr para atender o chamado da natureza. Nesse momento, ao ver o aperreio do bruxo, João disse que era melhor deixar sua pele de lobo e adaga com ele ou elas acabariam sujas. Sem pensar duas vezes o homem lobo lhe entregou seus objetos e correu para uma moita.
Nesse momento o menino disse a João que vestisse a pele de lobo e quando ele voltasse o atacasse e matasse a mordidas. Assim que o bruxo retornou, encontrou no lugar de João um lobo branco e antes que pudesse fazer qualquer coisa foi morto a dentadas. João removeu a pele de lobo e voltou à forma humana e estava exultante, finalmente estava salvo! Novamente o menininho lhe advertiu para que não fosse tão afoito, pois ele ainda estava sob o encanto das bruxas, para escapar com vida precisava dar cabo de todas elas e não apenas de um dos lobos da matilha. Mesmo desapontado, João estava mais confiante em seu diminuto amigo e perguntou se ele tinha um plano, e a resposta foi afirmativa. Na pele de lobo João precisava ir até o lago e quando a bruxa estivesse se banhando sem a pele de cobra roubar a pele. Como lobo ela nem ligaria para a sua presença, depois com a pele em seu poder forçá-la a buscar no fundo da lagoa um erva muito venenosa.
João assim o fez, ele se aproximou em forma de lobo enquanto ela se banhava e assim que ela se distraiu despiu-se da pele e agarrou a pele de cobra. A bruxa ficou desesperada e implorou que João lhe devolvesse seu couro de cobra. Com a pele em seu poder ele ordenou que ela lhe desse a erva venenosa do fundo da lagoa. Imediatamente ela mergulhou e retornou com uma bola de musgo verde. João pegou o veneno e estava prestes a devolver a pele quando o menininho o reteve “se você devolver a pele de cobra ela vai lhe matar aqui mesmo, sem a pele ela está indefesa”, ao ouvir isso ele guardou a pele e a deixou em prantos no lago. “agora você vai colocar esse musgo na boca e não vai engolir”, João ficou ressabiado, pois poderia ficar ele mesmo envenenado. O menino percebeu a dúvida em seu rosto e disse “não se preocupe, isso só vira veneno ao ser misturado na água, enrole em folhas, vista a pele de lobo e vá até o covil das Blatskas, lá finja que vai beber água do poço onde elas bebem e deixe o musgo cair na água e espere até que todas tenham bebido, mas dessa vez não posso ir com você”. João engoliu em seco, e começou a procurar folhas para enrolar o musgo.
Ele vestiu a pele de lobo e farejou os outros lobos até uma caverna a beira mar, escavada pelo movimento das ondas, o chão da caverna estava repleto de ossos humanos e todo o lugar exalava um cheiro desagradável, em suas peles de lobo as demais bruxas e bruxos estavam lá apenas esperando. João fez exatamente como o menininho lhe instruíra, ao fundo da caverna existia um poço de água doce, ele foi até lá, fingiu beber e deixou o veneno cair na água e se afastou. Os demais lobos o encararam, esperando por uma resposta, ele pensou e lembrou-se do que o garotinho havia falado sobre o que as bruxas faziam com as pessoas que entravam no labirinto e resolveu simplesmente balançar a cabeça negativamente. Os lobos se dispersaram e um deles tirou a pele revelando o corpo de uma mulher de cabelos compridos e negros, ela começou a traçar alguns desenhos no chão com sua adaga enquanto recitava palavras estranhas, João engoliu em seco novamente, os lobos iam um a um beber no poço, mas a mulher parecia estar cada vez mais próxima de terminar o feitiço que iria enlouquecê-lo. Alguns lobos ainda não haviam bebido a água envenenada quando ela terminou seu feitiço e deu uma gargalhada maligna, seguida pelo uivo da matilha. João deveria ter enlouquecido, mas o encanto não surtiu qualquer efeito. Quando ele percebeu que o último dos lobos bebeu da água envenenada, removeu a pele de lobo e esfaqueou a bruxa com a adaga de lâmina sinuosa.
Os lobos o encararam com os olhos brilhando de ódio, mas quando tentaram atacar caíram tomados de convulsões e babando até que estavam todos mortos. João vestiu a pele de lobo e retornou a cidade, mas não havia mais nada lá, apenas dunas e areia e, sentado sobre uma pedra, o garotinho loiro e bochechudo. “o que houve aqui?” perguntou João. O garoto explicou que eram todos fantasmas, presos a esse mundo pela maldição das bruxas para atrair viajantes incautos, agora que estavam mortas, a maldição estava quase totalmente desfeita “você só precisa me entregar a pele de lobo e a adaga”. João relutou por um momento, pois aqueles objetos tinham sido muito úteis, mas o garotinho tinha lhe dado bons conselhos e resolveu acreditar nele uma vez mais e lhe entregou a pele e a adaga. O menino sorriu e disse “graças a você tudo pode ficar bem novamente. Debaixo dessa pedra há uma arca repleta de ouro, o bastante para que viva longe da pobreza pelo resto de seus dias. Faça uma fogueira e queime a pele de cobra, assim você poderá desposar a mulher na lagoa e vocês terão muita sorte e filhos juntos e ela também se livrará de sua maldição. Quanto a mim, preciso que corte a minha cabeça com essa adaga”.

João olhou para ele espantado e retrucou “não posso fazer isso, você foi muito bom para mim, sem sua ajuda jamais teria escapado”. O menininho não se impressionou com essas palavras e insistiu, mas como ele se recusasse o garotinho explicou. “sou o príncipe de um reino distante, já estou preso aqui há cem anos, quando você cortar a minha cabeça eu imediatamente retornarei ao meu reino que precisa de mim. Depois de pegar o tesouro e a sua esposa, venha me visitar, meu castelo fica a sudoeste daqui há sete dias de viagem”. Mesmo receoso João fez como lhe fora ordenado e cortou a cabeça do menino, depois jogou a adaga no mar, foi até a lagoa e trouxe de volta com ele sua esposa que já não podia mais se transformar em cobra ou respirar debaixo d’água e removeu a pedra e guardou o seu ouro. Sem demora ele se dirigiu ao castelo de seu amigo príncipe, pois estava ansioso para revê-lo e lá viveu até o fim de seus dias como um dos conselheiros do rei.

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