No
último dia de meu curso de fundamentos de Psicologia Junguiana, novamente
utilizei uma animação como recurso didático. Nunca é ocioso salientar que, da
mesma maneira como Von Franz afirmava em relação aos contos de fadas, que o
conto de fadas é, em si mesmo, sua melhor explicação, pois o seu significado
está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da narrativa; o mesmo pode
ser dito do desenho animado a ser aqui analisado com uma finalidade didática. A
hipótese de Von Franz sobre os contos de fadas me parece igualmente válida, mutatis mutandis, no que concerne a outros produtos simbólicos. Sendo
assim, parafraseando a maior discípula de Jung – e uma mestra em seus próprios
méritos – o desenho The Reward possui um significado simbólico
essencial, expresso numa série de figuras e eventos simbólicos. Uma das outras
hipóteses de Von Franz acerca dos contos de fadas dificilmente poderia ser tão
facilmente generalizada para os desenhos animados e histórias em quadrinhos de
que tanto gosto, todavia, no que concerne a esse desenho especificamente, creio
que essa hipótese oriunda de um extensivo levantamento empírico se aplica.
Segundo ela os contos de fadas tentam descrever apenas um fato psíquico, mas se
trata de algo tão complexo e multifacetado que mesmo milhares de contos não são
capazes de exaurir completamente seu significado, ou mesmo permitir que esse
fato penetre na consciência. Trata-se daquilo que Jung denominava em alemão de Selbst, ou em inglês Self, geralmente traduzido em português
como Si-mesmo. Trata-se de um fenômeno paradoxal que é a totalidade psíquica de
um indivíduo e o centro regulador do inconsciente coletivo. Os diferentes
contos de fadas fornecem diferentes imagens de diferentes fases dessa
experiência. O desenho que vou analisar, The
Reward, assim como os contos de
fadas, descreve simbolicamente um dos aspectos dessa experiência, nesse caso
temos o tema do tesouro inacessível ou inalcançável.
Certamente
não é desperdício de tempo, antes de começar a analisar o fenômeno, o desenho
animado, dizer uma ou duas palavras de advertência sobre o método de
interpretação de Jung, que consiste de 3 passos. O primeiro passo é a princípio
estabelecer os paralelos, isso por uma razão simples, supomos que esse fenômeno
seja uma expressão que revela algo do pano de fundo psíquico inexpresso, isto
é, do dado irracional existencial inalienável que Jung chamou de inconsciente (das Unbewusste,
em alemão), tratando-se de um conceito limite psicológico que abrange todos os
processos psíquicos que não estão relacionados ao complexo do eu de modo
perceptível. Os paralelos são amplificações, ou seja, uma variante da mesma
concepção. O desenho em questão, cum grano salis, assim como o mito, é antes de mais nada, uma manifestação da
essência da alma, uma expressão dos processos psíquicos do inconsciente
coletivo. Ele representa um arquétipo de maneira extremamente plástica e
fascinante, daí a necessidade da amplificação, pois arquétipos são fatores
psíquicos desconhecidos e não há possibilidade de traduzi-los em termos
meramente intelectuais, só nos restando circunscrevê-los a partir de estudos
comparativos.
O
segundo passo no método de interpretação é compreender o contexto próprio do
fenômeno estudado (seja um mito, sonho, conto de fadas ou desenho animado), segundo
Von Franz, é preciso tentar expressar o verdadeiro caráter específico da
situação psíquica que as figuras e eventos simbólicos contêm. Esse é um passo
crucial, de maneira um tanto jocosa, mas nem por isso menos verdadeira, poderia
afirmar que o desenho animado é a sua própria interpretação! Sendo a psicologia
complexa uma ciência prática, e que faz uso do método das ciências naturais, o
método empírico descritivo (com a diferença de que efetua a
reconstrução/explicação em um meio de natureza igual), a atenção ao fenômeno é
nada menos que essencial. Por fim, o terceiro passo é a tradução em termos
propriamente psicológicos.
Finda
essa digressão metodológica, nos voltemos ao desenho, sua descrição e as
possíveis amplificações. O desenho não possui falas, ou diálogos de qualquer
tipo, e as imagens e a trilha sonora são responsáveis por guiar o espectador
através de toda a história, ressaltando alguns eventos fundamentais e fazendo
apenas rápidas alusões a alguns outros, mas mesmo esses são importantes para o
desenrolar da trama. Trata-se da história de uma jornada, uma longa jornada que
para ser levada a cabo leva praticamente uma vida inteira, como é sugerido
pelas mudanças que ocorrem gradativamente na aparência dos personagens: a
calvice de um deles e a longa barba do outro. Isso por si só já é extremamente
significativo como veremos. O que vemos de início são os dois levando uma vida
pacata e aparentemente monótona em uma vila pequena e de aspecto provinciano.
Um deles (o mago) é mostrado de início interessado em garotas, com uma atitude
desinibida, mas sem muito sucesso em suas primeiras investidas. Sendo o mais
expansivo, as imagens também sugerem sua personalidade, suas roupas são mais
despojadas e de cores mais vibrantes, seu cabelo é longo, desgrenhado e ruivo.
O segundo personagem (o guerreiro) é mostrado de início distraído lendo o que
parece ser um livro de aventuras do tipo “capa e espada” e desdenhando a
expansividade e desinibição do primeiro. Seu aspecto é bem mais sisudo, suas
roupas tem tons mais sombrios, seu cabelo é curto e cinzento e seus gestos mais
contidos quase tímidos. Ao perceber o interesse despreocupado por garotas do
outro e seus modos expansivos, ele faz uma cara de desprezo.
A
vidinha pacata e sem eventos notáveis muda com um acontecimento importante para
toda a história. Surge um cavaleiro, um herói aventureiro, capaz até mesmo de
tirar o (futuro) guerreiro de sua introspecção, um típico “herói solar”. Salta
aos olhos, na narrativa visual do desenho, que esse aventureiro possui uma
distinção, quando seu rosto aparece pela primeira vez ele parece mais real e
rebuscado que o traço simples e minimalista de quase todo o restante da
animação. Ele agarra e leva embora a garota que rejeitara as investidas do
(futuro) mago e deixa cair um mapa. Esse momento revela a existência de um
destino, um carisma, os dois agarram esse ominia
na forma do mapa e se engalfinham até que o mapa se rasga, ficando cada um com
uma metade do todo. Fica claro desde o início, e vai se tornando ainda mais
claro o caráter compensatório que existe entre os dois personagens, suas
atitudes são opostas e, assim como os dois pedaços do mesmo mapa,
complementares. O que reforça o caráter que cada um tem de sombra para o outro,
a sombra é aquilo que não se quer considerar sobre si mesmo, a sua parte que
você nem mesmo sabe que existe. Cada um deles é a representação de um
comportamento, ou atitude típica, apresentada de maneira caricatural e
esquemática, e o progressivo processo de equilibração e compensação que ocorre
entre ambos.
Os
dois seguem juntos o mapa de seus destinos e deixam seu torrão natal e partem
em direção ao desconhecido. Temos aqui um tema típico (arquétipo), para
Campbell a história básica da jornada do herói “(...) implica abrir mão do
lugar onde você vive, entrar na esfera da aventura, chegar a um certo tipo de
percepção simbolicamente apresentada e depois retornar à esfera da vida normal”
(2008). Temos o chamado a aventura na forma do mapa que aponta para a
localização de um possível tesouro, que é prontamente atendido por nossos
heróis, e a travessia do limiar, o abandono da esfera familiar da comunidade, e
o ingresso na esfera da aventura, o herói, ou os heróis, devem ser submetidos a
uma série de provações cada vez mais ameaçadoras, que segundo Campbell
simbolizam a auto-realização, isto é, o processo de iniciação nos mistérios da
vida, e nosso desenho expressa isso de maneira muito divertida e singela com
rara clareza.
Logo
no início do caminho eles “acham” as ferramentas para a sua jornada, um escudo,
uma espada e um cetro mágico, o mago repara nesses objetos largados sobre as
raízes de uma árvore frondosa e os pega assim eles prosseguem a jornada em
busca do X. Um dos aspectos mais interessantes dessa busca pelo tesouro é que
eles desconhecem o que ele seja, ele é como no x das equações matemáticas, uma
variável desconhecida, o que reforça o seu caráter simbólico. Logo de início
vemos que o mago é uma personalidade epimetéica enquanto o guerreiro é uma
personalidade prometéica. A todo instante o mago desvia sua atenção
inapelavelmente para coisas atraentes do caminho, uma caverna interessante onde
ele acaba envenenado, garotas bonitas, fogo, ou o que quer que lhe pareça uma
novidade brilhante, seu interesse está sendo constante e inapelavelmente
atraído pelos objetos externos, de uma maneira evidente. O guerreiro, atento
sempre ao objetivo da jornada o arrasta para longe de seus interesses mais
imediatos e literalmente o arrasta em direção ao destino que ambos
compartilham. Em um dado momento, o guerreiro, mais tímido e circunspecto, se
interessa pela primeira vez por uma mulher, uma mulher fantasmagórica do tipo
empusa, uma “mãe d’água” e é ludibriado por sua aparência, e teria perecido se
o mago não tivesse estourado a cabeça dela com um raio. É significativo que o
primeiro interesse do guerreiro por um objeto externo seja uma mulher fantasma
e que esse interesse teria tido um resultado funesto não fosse a interferência
do mago. Esse fato muda a relação dos dois, quando chegam a uma grande e
movimentada cidade o guerreiro imita o gesto do mago de “high five" e em um
clima mais harmonioso eles adentram a cidade.
Na
cidade o mago é inapelavelmente atraído pelas luzes e cores e corre até uma
boate, onde logo está cercado de pessoas e bebendo e se gabando de sua metade
do mapa. Uma mercenária vê o mapa e se dirige a ele, em seguida temos um corte
abrupto e vemos a mercenária e seus comparsas com o mapa e tentando conseguir a
outra metade do mapa que está em poder do guerreiro. Após uma peleja feroz, o
guerreiro derrota o trio de bandidos, mas se machuca e perde 2 dedos da mão
esquerda. Preocupado com seu amigo ele corre até a boate, mas o encontra lá
bêbado e despreocupado, arrasado ele lança ao chão as duas metades do mapa e
deixa o lugar, ferido e sangrando até desmaiar em virtude de seus ferimentos.
Quando ele acorda, se vê ao lado do mago, com seus ferimentos tratados e ambos
caem no choro e o mapa volta a ser um só. Em harmonia, os dois partem em sua
jornada, se ajudando mutuamente, e o ritmo da narrativa se torna mais
frenético, mostrando vários feitos heroicos de ambos e o efeito da passagem do
tempo sobre suas aparências e poderes, vemos que ambos caminham para se
tornarem heróis lendários. Por fim, após toda uma vida repleta de aventuras e
realizações, ambos finalmente chegam ao seu objetivo, o X, o desconhecido, e
nada encontram lá, o guerreiro se desespera, mas o mago lhe mostra algo, um
espelho e eles se veem refletidos e se dão conta de sua maior realização, eles
mesmos, a consecução de uma vida repleta de sentindo, e do estabelecimento de
uma amizade que equilibrou suas personalidades e os fez passar ilesos pelas
simplégades de suas atitudes opostas, mas complementares. Por fim, eles
retornam ao começo, e deixam cair o mapa e o ciclo recomeça.
Os
dois heróis, o mago e o guerreiro de nossa história, podem ser psicologicamente
compreendidos como representações de duas atitudes humanas típicas, uma em que
o interesse está voltado para os objetos (o mago), e outra em que o interesse
se volta para o sujeito. Simultaneamente, ambos são representações de imagens
típicas da fantasia, o mago e o guerreiro. Ao discutir o desenho animado do
Patolino, fiz algumas considerações sobre o mago que repito aqui.
(...) o mago (que remete a Wotan, ou mais hodiernamente, Gandalf e Dumbledore), o mago carrega um cetro, um objeto fálico que ressalta seu poder e potência bem como a sua autoridade, não é ocioso recordar de que uma das insígnias do poder real era o cetro, no antigo testamento o cajado de Moisés transforma-se em uma serpente que devora as serpentes (também cajados metamorfoseados) dos magos do faraó, Dumbledore não possui um cajado, mas um equivalente, uma varinha e não qualquer varinha, mas a mais poderosa de todas, uma relíquia da morte. Gandalf, bem como os demais Istari possuem cajados e, quando ele se torna o Branco ele priva Saruman de seus poderes ao quebrar o seu cajado. (Heráclito, 2013).
O
guerreiro está presente em diversas histórias, lendas e mitos, Beowolf, Arthur,
Lancelot, Orlando, D’artagnan, Thor, Aragorn, Cyrano, Rolando, Carlos Magno,
Galahad, Percival, e inumeráveis outros. Heróis que utilizam do destemor e da
habilidade com a espada para enfrentar os desafios de suas jornadas, não raro
há um mago que os auxilia como Merlin no caso dos cavaleiros da távola redonda,
Wotan no caso de Sigurd ou o Tengu Sojobo no caso de Yoshitsune.
Como
podemos ver com clareza pelo comportamento dos personagens no desenho, um age
como extrovertido e outro como introvertido. É sempre importante ressaltar –
ainda mais em um escrito com finalidade didática – que para Jung seus conceitos
são experimentais e não pura invenção teórica. Isso pelo fato de que uma
ciência experimental torna-se inviável quando delimita seu campo segundo
conceitos teóricos. Os conceitos têm como único objetivo “nomear um grupo de
fenômenos análogos e afins” (Jung, 2003). Para Jung, atitude é uma disposição
da psique de agir ou reagir em certa direção, e sem atitude é impossível a apercepção ativa, pois atitude significa
expectativa e esta sempre age selecionando e direcionando. Vemos com clareza no
mago uma atitude extrovertida, isto é, uma relação manifesta do sujeito para
com o objeto, um movimento positivo de interesse subjetivo pelo objeto. A
atitude positiva com relação ao objeto na extroversão é sempre evidente e
indubitável, nesse estado existe uma forte determinação do sujeito pelo objeto.
Quando este estado se torna habitual, temos o que Jung chamou de tipo
extrovertido.
O
guerreiro, mais sisudo e circunspecto, que pouco interesse demonstra pelo
objeto, ao menos de início (vemos uma equilibração da atitude de ambos com o
decorrer de sua prolongada convivência), mostra com clareza uma atitude
introvertida, ou seja, uma relação negativa para com ao objeto. O interesse não
se dirige ao objeto, mas sim para o sujeito, o objeto recebe valor apenas secundário.
Quando a atitude introvertida se torna habitual temos um tipo introvertido.
O
interessante da relação entre eles, de início conflituosa, como não poderia
deixar de ser, é que esse é um conflito humano típico, tanto entre pessoas de
atitudes diferentes, quanto no movimento subjetivo de um mesmo ser humano. Em
termos das relações humanas, tudo aquilo que é valor para um extrovertido é
desvalor para um introvertido e vice-versa, o que é fruto de inumeráveis
conflitos, desentendimentos e engodos. Como vemos no início do desenho, o
interesse desinibido do mago por garotas é visto com desdém pelo guerreiro, que
está mais interessado na leitura de seu livro. O primeiro a se interessar pela
majestosa figura do “herói solar” e consequentemente pelo mapa é o guerreiro
introvertido. O introvertido está mais ligado ao poder, traço característico da
psicologia de Alfred Adler, o introvertido tenta impor sua imagem subjetiva de
como as coisas devem ser. Quem está mais ligado ao princípio do Eros volta-se
para fora, como vemos no caso do mago, sempre em busca de companhia, pois estar
apaixonado significa perder-se no objeto. Esse conflito humano, entre essas
duas atitudes, acontece em virtude do mútuo rebaixamento de valores entre
introvertidos e extrovertidos, pois a posição de um idiotiza o outro.
Em
termos subjetivos, é fundamental lembrar que estamos sempre lidando com o fato
psicológico real, o inconsciente, que se comporta de maneira compensatória e
complementar a consciência. Jung se utilizou do termo de Goethe
sístole/diástole para também denominar o par introversão/extroversão, o que
mostra o caráter cíclico dessas atitudes. A extroversão é um voltar-se para
fora da libido, enquanto a introversão é um voltar-se para dentro da libido. Em
termos de atitude, uma constelação específica de conteúdos na consciência (isto
é uma atitude) suscita a percepção e apercepção de tudo o que for homogêneo e
inibe tudo o que for heterogêneo. Essa atitude consciente unilateral é
compensada pela função autorreguladora existente no psiquismo, existindo assim
uma duplicidade de atitudes, uma consciente e outra inconsciente. Uma atitude
habitual extrovertida, que corresponde a um tipo, é compensada por uma atitude
correspondente inconsciente introvertida. Nesse sentido, a dupla do desenho o
mago e o guerreiro, além de representarem uma metáfora para uma situação típica
do drama humano no que concerne a lidar e aceitar o outro, igualmente pode ser
compreendida como metáfora para a duplicidade de atitudes existente em um único
indivíduo. Essa duplicidade de atitudes só tem efeitos nefandos quando a
unilateralidade da atitude consciente é excessiva, que é o que vemos na parte
inicial do desenho, em que o aspecto unilateral e caricatural das respectivas
atitudes e o mútuo rebaixamento de valores aparece com clareza nas ações dos
dois heróis da história.
Ocorre
durante todo o sucinto drama que se desenrola no desenho, um contínuo processo
de equilibração e de uma cada vez maior ajuda mútua entre ambos. Ao invés de um
enxergar e apontar de maneira maldosa a fraqueza do outro, ocorre que o aspecto
complementar das atitudes leva a uma ação harmoniosa de ajuda mútua e fraterna
onde um está lá quando o outro falha ou tropeça. O tema mítico do “tesouro
inacessível ou dificilmente alcançável” também pode ser traduzido
psicologicamente como uma metáfora para o processo que Jung denominou de
individuação, no sentido do processo que gera um “individuum” psicológico, ou seja, um todo. Como já aludi anteriormente, Von Franz afiança que todos os
contos de fadas fundamentalmente tentam descrever o inefável e paradoxal Selbst, a totalidade do psiquismo e
centro regulador da alma. A possibilidade de uma expressão consciente e
cultural de uma das possíveis facetas da multifacetada totalidade, bem como um
eu que colabora ativamente com o processo de equilibração psíquica é uma das
metas humanas mais arriscadas, difíceis, penosas e, mesmo assim, não há nenhum
outro objetivo ou meta mais digno ou nobre. Jung gostava de citar Goethe sobre
esse tema. “que a maior dita dos filhos da terra/ seja somente a
personalidade”. Ainda sobre as duas atitudes fundamentais, há uma extroversão
ativa quando ela é intencional, e outra passiva quando o objeto atrai o
interesse do sujeito, mesmo contra a sua vontade. Vemos algo dessa extroversão
passiva quando o guerreiro se interessa pela fascinante mulher do lago, uma
vampira cheia de tentáculos, sua primeira incursão na atitude oposta foi
tacanha e canhestra, sem as qualidades conscientes de discriminação e seleção,
agindo de maneira compulsória e primitiva, e só não teve um fim trágico em
virtude da possibilidade equilibrativa e compensatória que existia em seu
parceiro o mago. Do mesmo modo, há uma introversão ativa, quando o sujeito
conscientemente se isola do objeto, e uma introversão passiva quando o
indivíduo é incapaz de reintegrar no objeto a libido que refluiu dele.
E
qual é a recompensa? O título do desenho, o que se esconde no misterioso X?
existem aqui duas simbólicas das mais interessantes, uma delas é a do espelho,
que é justamente o que permite a realização do significado exato do tesouro
dificilmente alcançável, e a outra é o próprio prêmio, fruto de toda uma vida
de aventuras e façanhas, lutas e perigos, que é a personalidade. A personalidade se contrapõe ao ideal do homem
coletivizado, ou normal, promovido pela massificação. O desenvolvimento da
personalidade se dá pelo processo de assimilação do inconsciente, processo
eivado de perigos, como o erro de incluir a psique coletiva no rol das funções
psíquicas pessoais, o que acarreta o que Jung chamou de “dissolução da
personalidade em seus pares antagônicos”, como a mania de grandeza e o
sentimento de inferioridade, bem como a assimilação pessoal do par de opostos
Bem e Mal, pois alguns se apropriam da virtude coletiva como algo de sumamente
pessoal e outros assumem para si como culpa pessoal o vício coletivo. Esses
pares de oposto são conteúdos da psique coletiva e, em seu estado inconsciente,
não apresentam contradição, só surge à contradição quando se inicia o desenvolvimento
pessoal, quando se descobre a natureza irreconciliável dos opostos. O perigo de
se confrontar o inconsciente, a ousadia do desenvolvimento da personalidade,
também encerra o perigo de que a psique coletiva e a pessoal se confundam. Creio
que todos aqueles que estudam psicologia complexa já se depararam com aquelas
personalidade mórbidas e infladas cujo contato com o inconsciente levou a essa
confusão nefasta e, a despeito de se acharem novos profetas ou novos autores
revolucionários, não passam de medíocres cuja alma foi aniquilada pelo contato,
mesmo que mínimo, com a psique coletiva. É um espetáculo verdadeiramente
lamentável ver os efeitos da identidade com o inconsciente, o que leva
invariavelmente ao sentimentalismo e ao mau gosto, e aos maiores equívocos
sintomáticos no que diz respeito das concepções acerca do inconsciente,
infelizmente esses indivíduos representam a regra e não a exceção. A identidade
com a psique coletiva pressupõe a mesma psique coletiva nos outros e isso leva
a um implacável desprezo por tudo aquilo que for diferente, esse desprezo
significa, segundo Jung, a asfixia do ser individual que é o elemento de
diferenciação da comunidade. A asfixia do ser individual é perniciosa, pois
conduz inexoravelmente a massificação, pois pedem-se os pontos de orientação e
surge o desejo de ser conduzido por alguém.
A
personalidade depende da existência de determinação, inteireza e maturidade.
Vemos no desenho a determinação no que concerne a fidelidade ao caminho, ao
desejo de se conseguir chegar ao X, mas as duas outras condições não estão
presentes desde o início. Vemos isso com clareza no caso do comportamento do
mago extrovertido, a inteireza e a maturidade são aquisições duramente
alcançadas graças às provações do caminho, elas não estavam presentes nos
jovens e, ainda apenas potenciais, mago e guerreiro. Raramente essas 3
características não estão presentes na infância ou juventude, mas são
características que podem ser encontradas no indivíduo adulto, e isso o desenho
expressa com admirável clareza.
E não é a criança, mas sim o adulto quem pode atingir a personalidade como fruto amadurecido pelo esforço da vida orientada para esse fim. Atingir a personalidade não é tarefa insignificante, mas o melhor desenvolvimento possível da totalidade de um indivíduo determinado (...) Personalidade é a realização máxima de um ser vivo em particular. Personalidade é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita possível, a tudo que existe de universal, e tudo aliado a máxima liberdade de decisão própria. (Jung, 2011, p.182).
O
que vemos no desenho é justamente o que assevera Jung, que pela nossa ação é
que se manifesta o que somos verdadeiramente. É preciso, todavia, evitar a
inflação a que aludi anteriormente, pois a consecução da personalidade, em
certo sentido, é um ideal inalcançável, pois a totalidade de nosso ser, o fato
paradoxal e inefável que é chamado em psicologia de Selbst, não pode ser totalmente expresso por uma vida individual,
mas a personalidade em sua totalidade existe como um ideal que indica o caminho
a seguir. Mas essa meta tão difícil, esse “tesouro dificilmente alcançável”, a
pérola da sabedoria, o que é preciso para escapar aos muitos e assustadores perigos
do caminho? Jung responde a isso dizendo que primeiramente é preciso haver
necessidade, sem necessidade nada muda. O desenvolvimento da personalidade não
é um mero arbítrio, não obedece a desejos, ordens, ou considerações, mas apenas
a necessidade. Ao se colocarem a caminho os dois, mago e guerreiro,
extrovertido e introvertido, se deparam com a necessidade de lidar um com o
outro, bem como os perigos do caminho, um passo em falso e seu destino seria
funesto. Sem a necessidade, a dira necessitas, o que surge é apenas o
individualismo, isto é uma atitude inadequada e impertinente que colapsa diante do
primeiro problema. Outro fator de suma importância é que o desenvolvimento da
personalidade é paradoxalmente um carisma e, ao mesmo tempo, uma maldição. Como
consequência do caminho que leva ao desenvolvimento da personalidade o
indivíduo se separa da massa, ou seja, sofre com o isolamento. Há um preço
muito alto a se pagar para conseguir o tesouro que se esconde no misterioso X.
Como
se enfrenta tantos e tais perigos? Como se suporta estar separado de tudo o que pode
trazer proteção e consolo, como a pátria, família, igreja? Surge nesse ponto
aquilo que Jung chamou, utilizando um termo grego, de pístis, que é a fidelidade a sua própria lei, uma lealdade
confiante naquilo que é o seu caminho. A personalidade não pode desenvolver-se
se não existir uma escolha consciente pelo próprio caminho, uma decisão moral. Todavia
tudo isso apenas não basta, os perigos são tantos e tais que é preciso ainda
mais para enfrentar essa senda tão íngreme e perigosa, aquilo que Jung chamou
de designação “um fator irracional, traçado pelo destino, que impele a
emancipar-se da massa gregária e de seus caminhos desgastados pelo uso”.
Personalidade verdadeira sempre supõe designação e nela acredita, nela deposita pístis (confiança) como em Deus, mesmo que na opinião do homem comum seja apenas um sentimento pessoal de designação. Esta designação age como se fosse uma lei de Deus, da qual não é possível esquivar-se. O fato de muitíssimos perecerem, ao seguir seu caminho próprio, não significa nada para aquele que tem designação. (Jung, 2011, p.187).
A
penúltima parte da aventura é a chegada ao X e a tomada de consciência do que é
o tesouro dificilmente alcançado, antes do retorno. Surge nesse ponto uma
imagem poderosa e que encerra uma simbólica das mais interessantes, a imagem do
espelho. A princípio o guerreiro se desaponta ao encontrar apenas um enorme X
desenhado no chão de uma imensa sala vazia, todo aquele esforço, tantos anos de
peleja e nenhuma moeda de ouro, nenhuma arma mágica ou uma joia sequer. Nesse
momento, quando o guerreiro introvertido se joga no chão desesperado e
frustrado o mago extrovertido vê o espelho e juntos chegam aquilo que Campbell
chamou de “percepção simbolicamente apresentada”, ao invés do ouro vulgar, eles
se deparam com o ouro mercurialis. Ao se verem refletidos no
espelho eles percebem que o X sempre estivera em seus próprios corações. Na tradição
japonesa, Amaterasu, zangada com seu irmão o intempestivo Sunao-o se escondeu
numa caverna, sendo a kami do sol, o mundo foi lançado em trevas, um dos artifícios
para atraí-la para fora da caverna foi postar defronte a entrada um espelho,
quando ela foi atraída para fora, ao se ver refletida ficou fascinada com a própria
imagem e disse “omoshiroi!” (面白い) que literalmente significa “faces brancas”, mas é usado
como “fascinante”, “interessante” ou “engraçado”. Para enfrentar a Medusa, Atená presenteia Perseu com um escudo de bronze polido como um espelho, com isso podia
ver o reflexo da górgona sem ser petrificado. Em Coríntios 13:12 lemos “Agora,
pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos
face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma
forma com que sou plenamente conhecido.”. No conto de fadas dos irmãos Grimm “Branca
de Neve”, a bruxa possui um espelho mágico, e é esse espelho que lhe revela que
a mais bela é na verdade a jovem Branca de Neve e não ela. No conto de fadas de
Hans Cristian Andersen, “A rainha da neve”, o diabo produziu um espelho
enfeitiçado que não refletia as qualidades das pessoas, mas apenas os defeitos
e os aumentava consideravelmente. Em Harry Potter, Harry se depara com um
espelho mágico que reflete o maior desejo de quem o mira, o jovem bruxo se vê
refletido ao lado de seus pais falecidos.
Segundo
Von Franz, algumas vezes, experimentamos o inconsciente como se estivéssemos
sendo observados, mas não de uma maneira pessoal, como se uma consciência
superior nos observasse e julgasse, de uma maneira não intencional e que
simplesmente reflete a nossa natureza, exatamente como um espelho. O
inconsciente, em sonhos, visões e imaginação criativa, pode nos aparecer como
se fosse um ser consciente e cheio de intenções, e outras vezes de maneira
impessoal como um espelho. Centenas de evidências empíricas poderiam ser elencadas
aqui para demonstrar tais fatos, especialmente a maneira como o inconsciente se
manifesta nos sonhos, mas fiquemos apenas com a simbólica do desenho, onde o
espelho reflete de maneira impessoal sua natureza e lhes revela o que se
tornaram após uma vida de grandes aventuras e realizações seguindo o mapa de
seu destino.
A simbólica do espelho toca em um ponto de extrema
importância: a projeção. Além das impressões sensoriais, nossa imagem do mundo
é formulada a partir de influencias internas. Todo inconsciente é projetado,
asseverou certa vez Jung, e, como está nos evangelhos, em Lucas 6:42 “Como você
pode dizer ao seu irmão: 'Irmão, deixe-me tirar o cisco do seu olho', se você
mesmo não consegue ver a viga que está em seu próprio olho? Hipócrita, tire
primeiro a viga do seu olho e então você verá claramente para tirar o cisco do
olho do seu irmão.”. Apenas através do processo de projeção podemos nos tornar
conscientes de certos processos psíquicos inconscientes. O momento de se verem
refletidos no espelho foi um momento de conscientização, como vimos antes, esse
desenho, como a totalidade dos contos de fada, nos fala da paradoxal realidade
da totalidade e centro regulado do psiquismo, segundo Von Franz.
É desse centro que partem os impulsos de um recolhimento meditativo da personalidade. Os conteúdos percebidos como projeções são reconhecidos, então, como partes integrantes da própria personalidade anímica. Desse modo, a energia psíquica neles contida aflui em direção ao próprio centro interior, fortalecendo sua intensidade de Ser. (Von Franz, 1997, p.184).
Ao
se darem conta do que se tornaram, do verdadeiro sentido simbólico do tesouro,
essa energia que é recolhida e aflui em direção ao próprio centro é simbolizada
por uma espetacular explosão de luz, e como sabemos, é em toda parte um símbolo
da consciência. Por fim, realizados, eles retornam ao início, agora eles são os
heróis lendários, as grandes personalidades, e dão ensejo a uma nova jornada ao
repetir o gesto do herói do início de suas jornadas, deixando cair o mapa com o
misterioso X marcando o lugar onde aguarda o maior de todos os tesouros e a jornada
que é a mais nobre e grandiosa aventura humana. Agora em idade madura, eles
passam o bastão (ou o mapa) a novos aventureiros e se dirigem com tranquilidade
ao por do sol, ao outono da vida, tendo adquirido o mais difícil de todos os
tesouros: a personalidade.