quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A Sombra e o Mal no Hobbit de J. R. R. Tolkien



Este modesto escrito possui um duplo objetivo, tanto o de utilizar o livro de Tolkien, o Hobbit, como uma forma de elucidar o conceito Junguiano de sombra, quanto o de realizar uma interpretação psicológica de algumas passagens significativas da obra. A fim de realizar uma tal empreitada, creio que o melhor caminho a se tomar – o que não significa que se trate do único – seja em princípio realizar uma breve, porém importante, discussão epistêmica sobre o sentido de “teoria” em Jung, seus conceitos e seu método “empírico fenomenológico”. O leitor deverá me perdoar o início árido, pois se dizem que mesmo uma caminhada de mil léguas se inicia com o primeiro passo, escolho como primeiro passo um bem complicado e espinhoso, porém indispensável. Como meu intuito é ser rigoroso e preciso com a interpretação da obra de Tolkien, e não simplesmente agradar aos meus leitores, esse primeiro passo da jornada servirá para evitar tropeços, ou descaminhos. Certa feita, alguém me disse que o caminho mais curto nem sempre é o mais rápido e o caminho mais rápido nem sempre é o mais seguro. O segundo passo será uma sucinta discussão sobre a análise psicológica (que fique claro desde o início, ao utilizar o termo “psicologia”, me refiro sempre, e apenas, a psicologia complexa fundada por Carl Gustav Jung) de obras literárias e obras de arte, seguida de uma introdução igualmente breve do que seja a sombra na concepção de Jung, para então, discutir a obra (o Hobbit), bem como seu autor (Tolkien), para finalmente ir ao fenômeno (as passagens selecionadas da obra) e a interpretação psicológica propriamente dita. Bilbo Baggins, herói da obra que vamos nos enredar para desvelar o pano de fundo arquetípico inexpresso, gostava de mapas, e acabamos de traçar aqui de maneira um tanto grosseira um pequeno mapa de nossa jornada.
Talvez após tantas explicações, o leitor não familiarizado com a obra de Tolkien (a despeito dos filmes que logo chegarão ao expressivo número de seis, muitos jamais se aventuraram a ler a obra na qual eles se baseiam, sendo, portanto, não familiarizados) pode estar se perguntando qual a razão de se empreender uma tal jornada ao âmago da obra do pacato professor de Oxford, especialmente no Hobbit em que o tema do mal é mostrado de maneira tão sutil e próxima do mito ou do conto de fadas. O primeiro e mais poderoso dos motivos, e justamente o menos científico de todos, é que assim o desejo, como disse de maneira similar um gigante da ciência Willian James. Se essa justificativa não bastar ao leitor, que talvez já esteja enfadado com tantos rodeios, apresento algumas outras, um tantinho mais científicas. O tema do mal está presente de maneira mais acentuada na obra posterior de Tolkien, e aquela que lhe garantiu imortalidade: O Senhor dos Anéis (the Lord of the Rings). Uma trilogia com milhares de páginas e de densidade psicológica insuspeita. Uma interpretação dessa monta não caberia jamais no espaço de um ensaio e, as raízes da trilogia se encontram no seu predecessor o Hobbit. Certamente, o interesse suscitado pelos filmes, com recordes de arrecadação e bilheteria em todo o mundo, torna-se igualmente um motivo poderoso, não meramente por um oportunismo barato, mas sim pelo interesse por essa história revelar o quanto ela cala fundo em nossa alma e toca uma corda comum em pessoas de todo o mundo. Existe, certamente, um forte motivo pessoal, desde o final da década de oitenta e início da década de noventa do século passado eu sou leitor de Tolkien, por essa época não lia bem em inglês e tão pouco existia uma tradução para o português brasileiro, mas, não me recordo ao certo como, me caiu em mãos uma tradução para o português de Portugal feita por um único autor. Meu interesse, nessa época já tão longínqua (aí se vão uns bons 20 anos) deu-se em virtude de ser um aficionado por RPG (Role Play Game), o interesse pelo jogo diminui bastante, mas o amor e interesse pela obra de Tolkien jamais cessou de crescer. A despeito de já ter lido quase tudo o que Tolkien escreveu, e de ser eu mesmo um prolífico autor de ensaios de cunho psicológico, jamais havia escrito nada sobre Tolkien. Um amigo dileto, também estudioso da obra de Tolkien, entabulou uma conversa comigo a não muito tempo, justamente para me questionar sobre alguns aspectos psicológicos do Hobbit, como ele estava lendo um livro de psicologia indicado por mim, e sua dúvida versava sobre o conceito de sombra, esse foi o tema de nossa conversa. Percebi com essa conversa informal que podia debater o tema de cabeça, sem recorrer a qualquer referência com muita facilidade, o que me motivou a finalmente deitar a pena ao papel e escrever.
Findas essas divagações iniciais, nosso jantar de negócios a luz de velas na toca de Hobbit, é hora de colocarmos nossa capa de viagem, montarmos nossos pôneis e dar nosso primeiro passo nessa estrada tortuosa e repleta de perigos e surpresas, ao leitor desavisado, ainda há tempo para desistir da jornada, parar de dar ouvidos ao seu “lado Took” e acender a lareira, tomar um chá, e fumar um bom cachimbo (hábito nada saudável, mas que eu mesmo cultivo), mas, se seu lado Took for mais forte, há um dragão nos esperando na montanha solitária, deitado sobre uma pilha enorme de ouro roubado...
Gosto de citar em meus escritos uma passagem do livro os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo de C. G. Jung – livro fundamental, mas que queda ignorado pela maioria dos “estudiosos” de Jung – essa passagem específica ajuda a elucidar a maneira como Jung formulou seus conceitos, e, principalmente, que a sua psicologia não era um racionalismo aplicado, mas um psicologia prática alicerçada em seu método empírico, que incluía o estudo comparado de religião, mitologia e simbolismo. Para Jung o conhecimento psicológico é um conhecimento no psíquico, e a psicologia faz uso do método descritivo (empírico/fenomenológico) das ciências naturais. O método descritivo não pode ser sobrecarregado com pressupostos teóricos, e nesse sentido ao tratar no texto “O Arquétipo Como Referência Especial ao Conceito de Anima”, compara o termo anima ao termo artrópodes, pois ambos tem como único objetivo nomear um grupo de fenômenos análogos e afins, ou seja, trata-se não de uma invenção teórica, mas sim de um conceito empírico que designa um grupo fenomenológico. Os conceitos de Jung, como Anima, ou a Sombra que vai nos interessar mais de perto aqui, são conceitos experimentais, ergo oriundos da experiência. Nesse sentido, não basta simplesmente fazer uso de uma colagem conceitual e apontar que isso ou aquilo na referida obra de Tolkien é a sombra, tal procedimento não é científico e obscurece ao invés de gerar compreensão, pois coloca sobre o fenômeno vivo um “conceito” tornando-o assim opaco. Ao estudarmos as grandiloquentes imagens da obra de Tolkien, estamos contribuindo para ampliar o conhecimento sobre o homem, não se trata, portanto de um jogo de identificar tal fenômeno com tal conceito, mas sim de compreender as funções desempenhadas por essas imagens e seu contexto específico, bem como as mutações que sofrem no decorrer da narrativa e suas relações com as demais imagens, sem descuidar de uma compreensão basilar sobre os fenômenos da alma: eles só podem ser compreendidos por meio de antinomias.
Passando ao segundo passo de nossa jornada a montanha solitária, e visto ser esse um texto que não se dirige exclusivamente ao especialista em psicologia, uma ou duas palavras sobre o método de interpretação podem ser úteis em nosso caminho, pois logo a última casa amiga estará as nossas costas e até lá há trolls no caminho. Mas com esses monstros da montanha, em seu covil mal cheiroso, está um tesouro inestimável que tornará nossa jornada mais segura e nos protegerá de muitos dos perigos vindouros: as lâminas élficas oriundas da lendária Gondolin. Ao leitor que é neófito em termos de psicologia eu peço um tantinho a mais de atenção aqui, esta espada que está prestes a descobrir quando a luz do dia der cabo dos monstros lhe trará discernimento, e a lâmina é aguçada o bastante para lhe ajudar a separar, analisar e compreender de maneira mais acurada as peripécias que estão por vir, como a espada que Hermes deu a Perseu e que lhe permitiu atravessar as densas sombras que se postavam em seu caminho.
Em palestra realizada na Sociedade de Língua e Literatura Alemãs em Zurique, em maio de 1922, intitulada “Relação da Psicologia Analítica com a obra de arte poética”, Jung teceu considerações das mais importantes para a nossa empreitada. Em primeiro lugar, há um dado metodológico fundamental que igualmente poderia ser elencado como justificativa na parte anterior desse escrito. Segundo ele, a arte, em sua manifestação, é uma atividade psicológica e, portanto, pode e deve ser submetida a considerações psicológicas, mas Jung vai mais longe, pois a arte, bem como qualquer atividade humana, é oriunda de causas psicológicas, ergo é objeto da psicologia. Há, todavia um limite para o empreendimento de uma análise psicológica da arte, aquilo que a arte é em sua essência, a pergunta sobre o que é a arte em si, não pode ser respondida pela psicologia ou ser objeto de considerações psicológicas, mas apenas estético-artísticas. Nada justifica, igualmente, que ao se falar de ciência e arte, não se respeitem os limites próprios entre essas duas categorias do espírito humano, não se podendo fazer uma subsunção recíproca, ou seja, uma redução de uma a outra.
Ao realizar considerações de cunho psicológico sobre uma obra de arte é preciso se perguntar pelo sentido da obra, Jung chega mesmo a afirmar que “a causalidade pessoal tem tanto ou tão pouco a ver com a obra de arte, quanto o solo tem a ver com a planta que dele brota”. Conhecer apenas o solo não basta para compreender toda a essência da planta. Ainda mais importante, a obra de arte é algo suprapessoal, é uma coisa e não uma personalidade e não pode ser julgada por um critério pessoal. Essencialmente, na perspectiva de Jung, uma obra de arte não é um mero derivado, mas uma reorganização criativa daquelas condições que permitem o seu surgimento, ela é uma realização criativa aproveitando livremente todas as condições prévias.
Tendo tudo isso em mente, podemos passar ao método propriamente dito, nossa Sting (ferroada), e talvez, dizer uma ou duas palavras sobre o interesse da psicologia em analisar obras de arte, mitos e contos de fadas. Convém recordar que a hipótese fundamental da psicologia complexa é a da existência de um inconsciente psíquico, um dado irracional existencial inalienável. Não é ocioso recordar ainda que, em relação à consciência do eu, o inconsciente é anterior, simultâneo e o posterior, além de se comportar de maneiras compensatória e/ou complementar a atitude consciente. Uma obra de arte genuína não se reduz simplesmente a intenção consciente de seu autor, e é muito mais do que aquilo que aparenta, ela é uma imagem elaborada em sentido extremamente amplo, e é passível de análise enquanto a pudermos conhecer como símbolo. No sentindo Junguiano um símbolo é uma tentativa de expressar alguma coisa para a qual ainda não existe conceito verbal, o indício de um sentido mais amplo e elevado e que se encontra além de nossa compreensão atual, o símbolo é sempre um desafio a nossa reflexão e compreensão. É justamente isso o que nos toca, a característica lacunar e incompleta da obra simbólica, que não permite um deleite estético puro e simples, mas que nos questiona e aponta para algo apenas obscuramente pressentido. A obra de arte simbólica possui uma relação com o inconsciente coletivo, pois se desenvolve a partir da relação que se estabelece entre a consciência e o complexo criativo, a imagem elaborada em sentido mais amplo que é a obra de arte corresponde a uma imagem primordial do inconsciente coletivo.
Da maneira mais sucinta possível, o inconsciente pessoal é formado pelos conteúdos sujeitos a repressão e que poderiam se tornar conscientes, mas são mantidos artificialmente abaixo do limiar da consciência. O inconsciente coletivo não é nem reprimido nem esquecido, a rigor ele nem sequer existe, pois nada mais é do que possibilidade. Existem possibilidades de ideias inatas (e não ideias inatas, isso não existe, trata-se de caminhos virtuais herdados) que colocam categorias as possibilidades da fantasia e cuja existência não se pode afirmar sem a experiência (recordem-se do que afirmei antes acerca dos conceitos como sombra ou anima), estas categorias só aparecem na matéria formada como princípios reguladores de sua formação. Em outros termos, o arquétipo é uma predisposição, funcional, atemporal, acausal para um funcionamento humano típico. Um arquétipo é uma figura que reaparece sempre que a imaginação criativa for livremente expressa. Os símbolos que surgem em sonhos e visões funcionam para a consciência como compensatórios ou complementares à atitude consciente, ou dito de outra forma, operacionalizam a participação do inconsciente na vida consciente. Para Jung, a arte, enquanto simbólica, representa um processo de auto-regulação espiritual na vida das épocas e das nações. Lembre-se, estimado leitor, de que o símbolo é o indício de um sentido mais elevado e que, enquanto for um símbolo não pode ser completamente expresso verbalmente e é a melhor expressão possível para algo apenas obscuramente pressentido, mas ainda inapreensível.
Na perspectiva de Jung as concepções de cada arquétipo são essencialmente um fator psíquico desconhecido, e não há possibilidade de traduzir seu conteúdo em termos intelectuais. O que se pode fazer é tentar circunscrever seu sentido e significado tomando por base nossa própria experiência psicológica – qualquer observação psicológica para ser válida pressupõe a equação pessoal do observador – estudos comparativos de mitos, contos de fadas e, cum grano salis, qualquer atividade humana de caráter simbólico. Jung gostava de citar o ditado árabe segundo o qual “o sonho é a sua própria interpretação”, Marie-Louise Von Franz, ao tratar da interpretação dos contos de fadas usa uma interessante paráfrase desse ditado “O conto de fada é, em si mesmo, a sua melhor explicação, isto é, seu significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da história”. Ainda ao se referir aos contos de fadas ela afirma.
Podemos propor a hipótese de que cada conto de fada é um sistema relativamente fechado, composto por um significado psicológico essencial, expresso numa série de figuras e eventos simbólicos, sendo desvendável através destes. (Von Franz, 1990, p.10).
Um conto de fada possui um material cultural consciente menos específico do que o de um mito e são expressões simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo, representando os arquétipos em sua forma mais concisa. No caso de um mito, ou de uma obra literária, uma obra de arte como é o caso do Hobbit, essas estruturas básicas da alma não estão tão visíveis, e só se tornam mais claras por meio da exposição de material cultural. Um livro do quilate e envergadura do Hobbit, dificilmente poderia conter apenas um significado psicológico essencial. Podemos certamente afirmar que ele possui um significado psicológico principal, ou fundamental, a qual os demais se subordinam, mas a complexidade da trama e seu desenrolar contém mais de um significado psicológico formando um conjunto coerente que ajudam a expressar e enfatizar o significado psicológico principal. Como se se tratasse de uma série de contos de fadas interligados formando um mosaico coerente que só pode ser compreendido ao se observar o todo. Minha hipótese fica mais clara, por exemplo, ao se observar a estrutura de um romance como “O Macaco Peregrino” em que claramente se vê a existência de vários contos unidos por um fio condutor comum, mas que podem até mesmo ser lidos e apreciados em separado, ou o “Auto da Compadecida”, que é efetivamente formado pela costura engenhosa de vários contos populares feita por Ariano Suassuna, ou mais Hodiernamente, a série de livros de George R. R. Martin “The Song of Ice and Fire”. Mas retorno a essa hipótese mais tarde.
Convém lembrar ao leitor que o pensamento junguiano, em consonância com seu objeto de estudos, se dá por meio de antinomias, pois bem, vimos antes que Jung afirmava que não se pode reduzir o sentido de uma obra de arte simplesmente as tendências psicológicas de seu autor, mas que era preciso pensar no sentido da obra, além do que ela não é uma personalidade, mas algo suprapessoal. Todavia, é indispensável para o método de interpretação, simultaneamente a percepção de que a obra simbólica possui um sentido e que não pode ser reduzida a sua origem, compreender sua base humana. Sobre isso Von Franz afirma.
(...) o fator mais importante que Jung introduziu na ciência dos mitos, a saber: a base humana a partir da qual tais temas florescem. Mas não se pode estudar plantas sem estudar o solo onde elas crescem: melões crescem melhor sobre esterco e não areia, e se você for um bom jardineiro, você tem um conhecimento do solo tão bom quanto das plantas; e, em mitologia, nós somos o solo dos temas simbólicos – nós, os seres humanos. (Von Franz, 1990, p.21).
Em termos práticos no que concerne a interpretação, o método a que estamos aludindo aqui, isso nos leva a compreensão de que um arquétipo não é simplesmente um pensamento padrão, mas igualmente uma experiência emocional. Em termos psicológicos, uma interpretação não pode se dar em termos meramente intelectuais, excluindo o sentimento, é indispensável levar em consideração o tom afetivo e o valor emocional. Em termos estritamente intelectuais, a maioria das imagens são intercambiáveis: tanto faz um Nazgul, Sauron, ou Gollum, felizmente para os fãs a obra é indiscutivelmente uma experiência emocional e tal comparação de cunho exclusivamente intelectual soa absurda, pois o valor dessas imagens certamente não é o mesmo! Ou seu contexto específico e o sentimento associado a cada uma delas. Quando se quer compreender o fenômeno de forma correta o sentimento é indispensável. A o analisarmos as imagens a função sentimento nos ajuda a colocá-las numa hierarquia de valores.
O método de interpretação de Jung era por ele chamado de método filológico. Fundamentalmente uma imagem arquetípica não pode ser completamente apreendida, mas podemos tentar circunscrevê-la ao máximo com amplificação por meio de paralelos, como quando os hieróglifos egípcios foram desvendados através da pedra roseta, nela o mesmo texto estava escrito em mais de um idioma, incluindo os hieróglifos e assim seu sentido foi desvendado. Amplificar significa alargar um tema através da junção de numerosas versões análogas. Isso sem descuidar do valor emocional das imagens e do solo de onde surgiram bem como seu contexto específico. Após a amplificação, deve-se construir o contexto, e em seguida traduzir a história amplificada para a linguagem psicológica. Creio que não é ocioso ressaltar que toda interpretação, como salientava Jung, permanece sempre um “como se”, as imagens simbólicas referem-se a um material essencialmente inconsciente, por isso a interpretação é apenas uma descrição aproximada de uma “semente de significado inconsciente”, ou dito de outra maneira, apenas vestimos o mito com outro mito, pode parecer algo supérfluo, mas isso mantém a consciência cultural em contato com a base instintiva do inconsciente.
A casa de mestre Elrond já começa a sumir de vista as nossas costas e o som das canções alegres dos elfos fica cada vez mais distante, mas sabemos o que o nosso mapa revela, sob uma certa luz ele nos permite ver runas escondidas, invisíveis de qualquer outra maneira e com essas runas sabemos a entrada secreta para o covil do dragão que dorme sobre sua pilha de ouro roubado e nós temos a chave para essa porta, que os Vala nos deem a astúcia e a coragem para encarar todos os perigos até chegarmos ao Dragão...
Pois bem, nosso intuito aqui é tratar da “sombra e o mal”, note que esse título alude a uma obra de M. L. Von Franz chamada “A Sombra e o Mal nos Contos de Fada”, tratando-se menos de um plágio, e mais de uma justa homenagem (eu espero). Essa será a última parada antes de realmente iniciarmos nossa empreitada, peço apenas um pouco mais de paciência, logo estaremos atravessando as montanhas... Mas voltando a vaca fria, não é exagero lembrar que os conceitos de Jung são experimentais, oriundos da experiência, e que se trata de conceitos empíricos que designam grupos fenomenológicos. De maneira sucinta vou explicar o que se compreende por sombra na ótica de Jung.
Na perspectiva individual a sombra é a princípio o inconsciente inteiro, tudo aquilo que não sabemos, os processos inconscientes que nos afetam mesmo que não saibamos disso, as lacunas em nossa consciência. Nesse estágio a sombra é tudo aquilo que faz parte da pessoa, mas ela desconhece em si mesma, ou só é capaz de reconhecer nos outros. O funcionamento de nossa consciência tende sempre a unilateralidade, a consciência do eu funciona por meio do circuito de direção/seleção/exclusão, sempre tomamos escolhas e aceitamos algo em detrimento de outra coisa. No desenvolvimento da criança ela começa a fazer essas escolhas que podem ser consolidadas pela educação e hábitos, aquilo que existe em sua alma como possibilidade encontra então uma expressão ou é deixado de lado. Certas qualidades são tornadas conscientes e outras excluídas da vida consciente, essas qualidades não deixam simplesmente de existir. A sombra se constrói a partir dessas qualidades reprimidas e que não são aceitas por serem incompatíveis com as que foram escolhidas e de alguma maneira reforçadas até se converterem em hábito. Uma investigação mais profunda revela, todavia, que a sombra é constituída de elementos pessoais e coletivos, mas nesse primeiro momento não se é capaz de discernir com clareza os aspetos coletivos dos pessoais. O reconhecimento, integração e expressão da sombra é sempre um problema ético de enorme importância para o indivíduo, pois significa abdicar de certas idealizações e padrões. Há uma passagem em particular do livro de Von Franz a que me referi antes que poderia muito bem ser um precisa descrição psicológica de Bilbo Baggins e o dilema entre seu lado Took aventureiro, curioso e corajoso e seu lado Baggins, convencional, tradicionalista, respeitável e conservador:
(...) digamos que uma pessoa tem pais de diferentes temperamentos, dos quais herdou algumas características que, por assim dizer, não se misturam bem quimicamente. Por exemplo, uma vez tive uma analisanda que herdou do pai um temperamento inflamável e brutal, e da mãe uma grande suscetibilidade. Como poderia ela ser as duas pessoas ao mesmo tempo? Se alguém a contrariasse ela se defrontava com as duas reações opostas. Existem possibilidades opostas numa criança que não se harmonizam entre si. Geralmente, no decorrer de seu desenvolvimento, uma escolha é feita, de modo que um lado fica mais ou menos consolidado. Sempre escolhendo uma qualidade e preferindo uma determinada atividade em detrimento de outra, através da educação e dos hábitos, estas acabam se tornando uma “segunda natureza”; as outras qualidades continuam a existir, só que debaixo do pano. (Von Franz, 2002, p.12).
Até parece que Von Franz estava se referindo a Beladona Took e a Bungo Baggins, os pais de Bilbo com suas diferentes naturezas. O que Gandalf conseguiu enxergar em Bilbo foi justamente esse algo que estava “debaixo do pano”, e que nem mesmo Bilbo era capaz de ver em si mesmo (ou os anões, diga-se de passagem), o seu lado Took aventureiro. Toda a aventura pela qual Bilbo passa ao lado do mago e dos anões diz respeito ao reconhecimento, integração e expressão de seu lado Took, sem deixar de lado as qualidades de um Baggins; Bilibo permanece alguém digno de confiança e, em certa medida, ele é alguém bastante estável, mas isso passa a não mais significar paralisação ou estagnação. Por toda a obra Tolkien pontua a briga interna entre a natureza Baggins e a natureza Took, assim como todas as dúvidas e conflitos que surgem nessa tensão de opostos a cada passo perigoso do caminho, em um certo momento Bilbo vive a exata oposição do que ele era: de um rico e respeitável Hobbit vivendo numa toca confortável ele passa a um furtivo ladrão roubando a comida do rei dos elfos.
Passando a uma perspectiva coletiva, toda a civilização possui sua própria sombra. É preciso salientar de maneira um tanto enfática aqui que caso alguém vivesse sozinho seria impossível perceber a sua própria sombra, é necessário um espectador, alguém para servir de espelho, no sentido de que esse espectador será justamente aquele que dirá qual é a sua imagem. No caso das civilizações, é muito fácil para alguém de “fora” de alguma outra civilização enxergar os aspectos negativos, mas certamente terá importantes pontos cegos no que diz respeito a sua própria sombra coletiva, pois cada um apoia o outro em sua cegueira. Vemos isso com clareza na relação que surge entre as civilizações da terra média. Assim como nas representações medievais, ou nas lendas chinesas em que os outros povos tinham características sobre humanas ou supra-humanas, como cabeças de cães ou imortalidade, pernas muito longas e assim por diante, as civilizações na terra média dizem respeito a diferentes raças. Há uma rivalidade entre elfos e anões, não tanto pelo fato de existir uma relação de projeção de sombra entre eles, mas sim pelo fato de que os anões conseguem enxergar com facilidade a sombra dos elfos e vice-versa. O lado luminoso normalmente não tem qualquer consciência do lado sombrio, mas justamente esse lado é óbvio para uma outra civilização. Aos elfos salta aos olhos a cupidez e ganância dos anões, bem como seu temperamento explosivo. Aos anões salta aos olhos o desinteresse fleumático com tudo o que não é élfico que beira a arrogância (o mais poderoso dos elfos, Feanor pereceu em virtude de sua arrogância) bem como sua atitude juvenil e despreocupada, na história da terra média, em muitos momentos os elfos simplesmente se esconderam ou se esquivaram de tomar parte das grandes batalhas, como na isolada e secreta Gondolim, ou atrás da invencível barreira mística que cercava a floresta governada por Celeborn. Aos disciplinados e materialistas anões, os elfos parecem boêmios irresponsáveis. Aos artísticos e místicos elfos, os anões parecem um povo um tanto sujo e ranzinza sem nenhum interesse em particular, uns chatos interessados em coisas brilhantes ao invés de canções e magia.
 No caso dos elfos existem os orcs e aí há um invencível ódio mútuo. Segundo a mitologia da terra média, os orcs se originaram de elfos que foram corrompidos e distorcidos pela magia negra de Melkor, o inimigo do mundo, eles são o oposto especular dos elfos, uma raça brutal, sanguinolenta, de aspecto horrendo com hábitos absolutamente incivilizados e uma invencível inclinação para o mal, ao ponto de serem irresistivelmente atraídos pelo poder sombrio do um anel e por ele controlados. Tudo o que foi excluído na civilização élfica floresce na cultura dos orcs e as lâminas élficas são feitas para ferir os orcs e até mesmo reagem a sua presença emitindo um brilho azulado. Ao contrário da natureza mágica dos elfos, os orcs possuem uma engenhosidade sinistra para construir maquinários de destruição e armas, e aparentemente não possuem qualquer magia. Do pouco que aparece de sua engenhosa e cruel civilização, se diria tratar-se de algo um tanto quanto parecido com o espírito da suja e cinzenta Londres da revolução industrial. Seu caráter sombrio é ainda mais reforçado pela repulsa que sentem a luz, que os fere e enfraquece, os orcs são seres das trevas e das profundezas subterrâneas das montanhas, e veja que a magia dos elfos imbuída em suas lâminas reage a eles emitindo luz. Como aludi anteriormente de maneira sucinta, o simbolismo da espada, podemos ver um paralelo desse sentido no budismo O Bodhisattva Manjushri é representado com uma espada conhecida como “a espada da discriminação”, que nesse caso tem a ver com a capacidade de distinguir entre o mortal e o eterno (Campbell 2003). Fudo Myo-o (不動明王) uma importante divindade adorada na seita de budismo Shingon é sempre representado segurando em sua mão direita à espada de subjugar demônios chamada de kurikara que representa a sabedoria cortando através da ignorância.
Existe igualmente um fenômeno compensatório típico relacionado a uma das formas de manifestação da sombra coletiva, quando sozinhos ou em grupos bem pequenos certas qualidades individuais se reduzem ou desaparecem, crescendo repentinamente, porém em contato com um grupo maior. Quando não há consciência as coisas vão menos bem, se partes consideráveis de nossa sombra pessoal não estão suficientemente integradas, havendo muitas inconsciências parciais, isso se torna uma porta de entrada por onde a sombra coletiva pode entrar, ocorrendo uma infecção psíquica. Basta lembrarmos do que aconteceu na Alemanha durante a segunda grande guerra para termos um exemplo dramático desse fato. O mal coletivo também é personalizado por meio da crença nos espíritos maléficos e demônios, o próprio diabo é um exemplo dessa personificação da sombra coletiva em uma representação coletiva. A sombra individual, em um momento posterior, pode surgir em sonhos e visões personificada em um indivíduo do mesmo sexo, uma espécie de duplo.
Creio que já podemos seguir adiante e começar a falar de Tolkien e sua obra, em particular o Hobbit que é nosso objeto de estudos aqui. Mesmo ao leitor já familiarizado com a obra de Tolkien, ou que conheça ao menos um pouco de sua biografia, recomendo que tenha um pouco de atenção ao que vem a seguir, não existem atalhos em nossa jornada, basta lembrar de quando os anões desobedeceram Gandalf e se desviaram do reto caminho que seguiam em meio a floresta, muitas foram suas desventuras e dissabores, sendo o menor deles ficarem aprisionados na fortaleza encantada do rei dos elfos...
John Ronald Reuel Tolkien (1892 -1973) foi um grande acadêmico e especialista da língua inglesa e lecionou anglo-saxão em Oxford, foi autor de vários livros, incluindo o Hobbit e “The Lord of The Rings”, este não é uma trilogia, mas uma única novela, composta de seis livros, que por comodidade, por ser demasiado grande para os padrões editoriais (e demasiado pequena para os padrões de Tolkien) foi lançada em 3 volumes. Tolkien era alvo constante de críticas literárias negativas por parte da crítica especializada inglesa (Jung era desprezado pela academia, então vai entender...) que considerava sua obra sem grande valor artístico-literário e bastante excêntrica. A infância de Tolkien foi passada, em sua maior parte, na companhia de sua mãe, Mabel, em Birmigham após a morte de seu pai Arthur. Ambos, Tolkien e sua mãe no ano de 1900 se converteram ao catolicismo, o que os afastou tanto da família de seu pai, quanto dos parentes de sua mãe. Nessa época uma figura masculina importante na vida do jovem Tolkien (Ronald para os familiares e amigos de infância), foi o padre católico Francis Morgan. Em 1904 sua mãe Mabel morreu, ela foi diagnosticada com diabetes o que naquela época era fatal em virtude de não haver ainda insulina produzida como medicamento. O padre Francis Morgan cuidou de Tolkien e sua irmã até que foram acolhidos por uma tia. Ainda muito jovem, no colégio King Edward, Tolkien demonstrou notável talento para idiomas, tendo dominando o grego e o latim, além de várias outras línguas mortas e modernas como o gótico e o finlandês, junto com seus amigos mais próximos dessa época fundou o “T.C B. S.” (Tea Club, Barovian Society), mesmo após terminar a escola eles continuaram se correspondendo e analisando e criticando os trabalhos literários uns dos outros até 1916. Após um desempenho desapontador em Oxford, Tolkien retornou em 1914 a universidade (a guerra já havia começado) e finalmente em 1915 conseguiu resultados acadêmicos mais animadores, por essa época já se ocupava de suas línguas inventadas, particularmente o Qenya que foi profundamente influenciado pelo finlandês. Tolkien se alistou e foi enviado a França em 1916, após pegar “febre das trincheiras” ele foi mandado de volta a Inglaterra. Durante esses meses todos os seus amigos mais próximos menos um deles, que faziam parte do “T.C B. S.” foram mortos em ação nas trincheiras. Em parte como um ato de piedade a memória deles, mas também estimulado pelas suas experiências na guerra e como uma reação a elas ele começou a dar forma as suas histórias. Essa ordenação de suas ideias e imaginação deu origem ao Book of Lost Tales (publicado apenas postumamente) no qual a maioria das histórias do Silmarillion apareceram em sua forma inicial: contos sobre os Elfos e “gnomos” (Deep Elves, posteriormente os Noldor), com seus idiomas Qenya e Goldogrin. Nesse texto são encontradas as primeiras referências escritas das guerras contras Morgoth, o cerco e queda de Gondolin a Nargothrond, e os contos sobre Túrin e de Beren e Lúthien.
Quando o armistício foi assinado em 11 de Novembro de 1918, Tolkien já havia feito contatos e sondagens para conseguir um emprego como acadêmico, e na época em que ele havia sido demolido ele já havia sido indicado como assistente lexicográfico do The New English Dictionary (“Oxford English Dictionary), enquanto fazia sérias pesquisas filológicas envolvidas nesse trabalho, ele deu a um de seus Lost Tales a primeira aparição pública – ele leu The Fall of Gondolin para o Exeter College Essay Club, onde foi bem recebido por uma audiência que incluía Neville Coghill e Hugo Dyson, dois futuros “Inklings”. Entretanto Tolkien não permaneceu muito tempo nesse emprego. No verão de 1920 ele se inscreveu para o cargo de quite senior post of Reader (algo como professor associado) de língua inglesa na University of Leeds, e para sua surpresa foi indicado para o cargo.
 Em Leeds além de lecionar ele colaborou com E.V. Gordon na famosa edição de Sir Gawin and the Green Knight, e continuou escrevendo e refinando The Book of Lost Tales e seus idiomas inventados, as línguas “élficas”. Tolkien e Gordon fundaram um “Viking Club”, para estudantes de graduação, devotado principalmente à leitura das antigas sagas nórdicas e beber cerveja. Foi para esse clube que ele e Gordon originalmente escreveram suas Songs for the Philologists, uma mistura de músicas tradicionais e versões originais traduzidas para Old English, Old Norse e Gótico para se encaixar nas melodias do inglês tradicional. Em 1925 a Rawlinson and Bosworth Professorship of Anglo-Saxon em Oxford ficou vaga; e Tolkien conseguiu ser aprovado para essa vaga.
Em certo sentido, retornar a Oxford como professor foi como voltar pra casa. A despeito do fato de que ele possuía algumas ilusões acerca da carreira acadêmica, ele se encaixou extremamente bem no mundo predominantemente masculino do ensino, pesquisa, troca de ideias, camaradagem e ocasionalmente publicação. De fato, suas publicações acadêmicas são muito esparsas, algo que seria visto com desdém em nossos dias de avaliação pessoal por meio de quantidade de publicação. Suas raras publicações acadêmicas, todavia, foram com frequência incrivelmente influentes, sendo a mais notável sua palestra “Bewolf, the Monster and the Critics”. Seus comentários quase displicentes ajudaram a transformar o entendimento sobre esse tema – por exemplo, em seu ensaio sobre “English and Welsh”, com sua explicação para o surgimento do termo “Welsh” (galês) e suas referências a phonaaesthetics (esses dois textos estão no The Monsters and the Critics and Other Essays) fora esses fatos sua vida acadêmica foi bem pouco notável. Em 1945, ele mudou sua cátedra para o Merton Professorship of English Language and Literature, onde permaneceu até sua aposentadoria. Além de tudo o que já foi mencionado, ele ensinou aos alunos da graduação, e exerceu um papel importante, mas nada excepcional na política e administração acadêmicas.
Sua vida familiar foi tranquila e sem grandes incidentes, a vida social de Tolkien foi bem mais marcante que a sua pacata vida familiar. Ele logo se tornou um dos membros fundadores de um grupo de amigos de Oxford com interesses similares, conhecidos como “The Inklings”, a origem do nome foi puramente chistosa – tinha a ver com escrita, soava meio Anlgo-saxan. Outros membros proeminentes incluíam o já mencionado Messrs Coghill e Dyson, assim como Owen Barfield, Charles Williams, a principalmente C. S. Lewis que se tornou o amigo mais próximo de Tolkien (Tolkien o incentivou a escrever Narnia, mas detestava o livro por considerá-lo alegórico, isso é importante como veremos adiante). Os Inklings se encontravam regularmente para conversar, beber, e leituras de seus trabalhos em progresso.
Enquanto isso Tolkien continuava desenvolvendo sua mitologia e seus idiomas inventados, ele costumava contar histórias aos seus filhos, algumas das quais foram publicadas postumamente (li para o meu filho Roverandom e Farmer Gil de Han, e Roverandom por diversos motivos é uma de minhas histórias favoritas de todos os tempos!), entretanto, de acordo com o próprio Tolkien, um dia ele estava realizando uma atividade das mais repetitivas e tediosas, corrigindo provas, enquanto fazia esse serviço ingrato para ganhar alguns trocados extras ele percebeu que um candidato havia deixado uma resposta em branco, nessa página, sabe-se lá deus movido por qual elfo brincalhão ele escreveu “In a hole in the ground there lived a hobbit”. Bem ao seu modo, ele decidiu que precisava descobrir o que era um Hobbit, em que tipo de buraco ele vivia, por que ele habitava um buraco etc. dessa investigação surgiu um conto que ele narrou aos seus filhos. Em 1936 uma versão datilografada incompleta veio parar nas mãos de Susan Dagnall, uma funcionária da firma de publicação George Allen and Unwin (que se fundiu em 1990 com Harper-Collins).
Antes de continuarmos com a história do surgimento do livro, a peculiar maneira como apareceu no espírito de Tolkien, altas horas da noite, após um esforço repetitivo e cansativo a inspiração para o surgimento dessa história nos traz um ensejo interessante para voltar a discutir a noção Junguiana de obra de arte simbólica, agora em maiores detalhes.
A verdadeira obra de arte possui, segundo Jung, um sentido especial no fato de poder se libertar das estreitezas e dificuldades insuperáveis de tudo o que seja pessoal, elevando-se para além do efêmero. Mas como o exemplo da inspiração repentina de Tolkien diante de uma página em branco e da frase que surgiu como que por conta própria em seu espírito pode nos auxiliar a compreender um pouco mais esse processo e, simultaneamente, demonstrar psicologicamente o valor simbólico da obra? Pois bem, o exemplo da inspiração de Tolkien, bem como de outros autores; Monteiro Lobato, em carta afirmou certa feita que Emília muitas vezes lhe “roubava a pena” e falava e fazia o que bem entedia e não o que ele havia planejado conscientemente, Elizabeth Gilbert em uma das palestras TED (http://www.ted.com/talks/elizabeth_gilbert_on_genius.html) ao falar sobre criatividade citou alguns exemplos dos mais ilustrativos e interessantes do mesmo fenômeno que estamos tratando aqui. Gilbert falou sobre a poetisa norte americana Ruth Stone e seu processo criativo, essa autora desde a mais tenra idade podia ouvir uma poesia se aproximando dela como um cavalo selvagem cujos cascos faziam a terra tremer e soavam como trovões ribombando, ao sentir isso ela precisava “correr como o diabo” (run like hell) e conseguir lápis e papel do contrário era atravessada pela poesia e não podia retê-la, ela seguia cavalgando em busca de outro poeta, mas as vezes ela conseguia pegá-la pelo rabo no último momento e trazê-la de volta para dentro de si e nessas ocasiões ela escrevia a poesia de trás para frente. Ou do músico Tom Waits, que por boa parte de sua vida foi o protótipo do “artista moderno atormentado”, um dia ele estava dirigindo um carro por uma marginal em Los Angeles e de repente ele ouviu esse pequeno fragmento de melodia que surgiu em seu espírito como inspiração, mas ele estava dirigindo e incapaz de registrá-la, por isso ele olhou para o céu e disse “desculpe, mas você não vê que eu estou dirigindo? Eu estou com cara de quem vai escrever uma canção agora? Se você realmente quer existir volte num momento mais oportuno em que eu possa cuidar de você, ou então vá incomodar outra pessoa, vá incomodar Leonard Cohen”. Todos esses exemplos, literalmente milhares de outros poderiam ser descritos, não apenas na arte, mas até mesmo na criação científica como é o caso do anel de benzeno na química, mostram a universalidade desse processo, o mesmo que aconteceu com Tolkien. Sobre esse tipo de obra de arte, a obra de arte simbólica Jung nos fala:
(...) poderíamos até falar de um ser que utiliza o homem e suas disposições apenas como solo nutritivo, cujas forças ordena conforme suas próprias leis, configurando-se a si mesmo de acordo com o que pretende ser. (Jung, 1985, p.61).
Esse gênero de obra, segundo Jung, nasce como Palas Athena nasceu da cabeça de Zeus, pronta e completa, inteiramente armada. Nesse caso o autor não se identifica com a sua obra, ele está submetido a ela, ou ao lado dela, como se tivesse entrado na esfera de uma vontade estranha a sua. Nesse sentido é importante atinar para a origem da obra de arte.
A análise prática dos artistas mostra sempre de novo quão forte é o impulso criativo que brota do inconsciente, e também quão caprichoso e arbitrário. Quantas biografias de grandes artistas já demonstraram que o seu ímpeto criativo era tão grande que se apoderava de tudo o que era humano, colocando-o a serviço da obra, mesmo à custa da saúde e da simples felicidade humana! A obra inédita na alma do artista é uma força da natureza que se impõe, ou com tirânica violência ou com aquela astúcia sutil da finalidade natural, sem se incomodar com o bem-estar pessoal do ser humano que é o veículo da criatividade. O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do qual extrai seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem. A psicologia analítica denomina isto de complexo autônomo. Este, como parte da alma e retirada da hierarquia do consciente, leva vida psíquica independente e, de acordo com seu valor energético e sua força, aparece ou como simples distúrbio de arbitrários processos do consciente, ou como instância superior que pode tomar ao seu serviço o próprio Eu. (Jung, 1985, p.63).
A longa citação foi necessária para demonstrar a compreensão da psicologia complexa do singelo fenômeno que aconteceu a Tolkien e que desencadeou as forças em seu espírito que levaram ao surgimento da obra maravilhosa que analiso agora estimado leitor, e, feitas mais algumas distinções, retornaremos a biografia de Tolkien e a já tão adiada interpretação psicológica prometida no início desse escrito. O complexo autônomo a que se refere Jung é considerado a obra de arte in status nascendi, o complexo criativo, assim como os demais complexos autônomos é independente do arbítrio da consciência. O complexo autônomo surge pela reanimação ou ativação de uma parte de psique que fora até aquele momento inconsciente, a energia para tanto provém do consciente pelo processo que Pierre Janet denominou de abaissement du niveu mental, a intensidade da consciência diminui até chegar a um estado de apatia ou uma regressão das funções conscientes que fazem com que as parties inférieures des functions se imponham. No caso de Tolkien, o cansaço, o sono, e o esforço repetitivo permitiram o abaissement necessário à manifestação do complexo criativo que se impôs na escrita automática, não como uma manifestação do consciente pessoal de Tolkien, mas como manifestação arquetípica como o caráter mitológico da obra atesta com clareza, desse modo fica claro o caráter e valor simbólico da obra.
O caráter simbólico da obra torna-se ainda mais evidente ao se analisar as próprias palavras de Tolkien sobre sua publicação mais famosa “The lord of The Rings”, justamente no prefácio dessa obra (retirado da minha versão collector’s edition, da Houghton Mifflin Company), no que concerne aos “motivos e significados” de seu livro.
O principal motivo foi o desejo de um contador de histórias de tentar sua mão em uma história realmente longa que prendesse a atenção dos leitores, os divertisse, os deleitasse, e talvez algumas vezes os assustasse ou os comovesse profundamente. Como um guia eu tive apenas meus próprios sentimentos para o que era atraente ou comovedor (...) quanto a qualquer sentido interno ou “mensagem”, não havia nenhuma no intento do autor. Não é nem alegórica nem tópica. À medida que a história crescia ela lançava raízes (no passado) e brotava ramos inesperados; mas o tema principal foi estabelecido do princípio pela inevitável escolha do Anel como elo entre ele e o Hobbit. (...) outros arranjos poderiam ser planejados de acordo com os gostos ou visões daqueles que gostam de alegoria ou referência tópica. Mas eu cordialmente desgosto da alegoria em todas as suas manifestações, e eu sempre assim o fiz desde que eu fiquei mais velho e cuidadoso o bastante para detectar a sua presença. Eu prefiro largamente história, verdadeira ou de faz de conta, com sua variada relevância ao pensamento e experiência do leitor. Eu penso que muitos confundem “relevância” com “alegoria”, mas uma reside na liberdade do leitor, e a outra na intencional dominância do autor. Um autor não pode por certo permanecer completamente indiferente a sua experiência, mas as maneiras em que o a “história em germe” usa o solo da experiência é extremamente complexa, e tentativas de determinar esse processo são, na melhor das hipóteses, suposições a partir de evidências que são inadequadas a ambíguas. (Tolkien, tradução e grifos meus).
Creio que Jung não teria nada a se opor as afirmações de Tolkien, que são de uma impressionante precisão psicológica (inclusive fazendo uso das mesmas metáforas), e revelam sua relação com o complexo criativo a “história em germe” (story-germ) e os aspectos simbólicos de sua obra. Tal capacidade de discernimento do espírito só me mostra, uma vez mais, o quanto a psicologia complexa é profundamente desperdiçada com psicólogos. Vemos nas palavras de Tolkien a abertura de significado das grandiloquentes imagens que surgem em seus livros e seu caráter de símbolo. Os símbolos são pontes lançadas a uma longínqua margem invisível, e todos os que amam essa obra maravilhosa podem discernir a ponte que ele representa a distante margem de Valinor...
Após esse longo (porém instrutivo) parêntese, retornemos caro leitor, a biografia de Tolkien e o modo como o Hobbit veio a ser publicado. Como vimos antes, em 1936 uma versão incompleta do manuscrito do Hobbit caiu em mãos de Susan Dagnall. Ela pediu a Tolkien para terminá-lo, e apresentou a história completa a Stanley Unwin, a época o presidente da firma. Ele pediu ao seu filho de dez anos Rayner (lucky bastard...) que o lesse e emitisse uma opinião, o garoto escreveu um relatório aprovando a obra e The Hobbit foi publicado em 1937. O livro foi um sucesso imediato, em virtude do sucesso de vendas Stanley perguntou a Tolkien se ele tinha mais algum material similar para a publicação, e recebeu de Tolkien uma versão do Quenta Silmarillion, mas o material foi considerado de difícil apelo comercial. Unwin explicou a Tolkien sobre o Silmarillion e a dificuldade que ele encontraria para vender a obra, todavia ele insistiu com Tolkien na possibilidade de uma sequencia para The Hobbit, mesmo desapontado Tolkien aceitou escrever um “novo Hobbit”, que resultou no The Lord of the Rings, o filho de Unwin, Rayner (agora com 16 anos) teve uma importância vital para que a obra pudesse ser finalmente publicada, bem o resto é história...
Bem estimado leitor, depois de tantas idas e vindas finalmente estamos prontos para começar a interpretar o Hobbit, a obra de Tolkien que é o mote desse escrito, se você suportou as agruras da jornada até esse ponto significa que talvez tenhamos alguma chance contra o fogo de Smaug o dragão. Quem desejar maiores informações biográficas pode encontrar na webpage da Tolkien Society (http://www.tolkiensociety.org/). Para a interpretação de uma obra como o Hobbit, mesmo esse ensaio sendo excessivamente longo, ele não dispõe de espaço o bastante para algo pormenorizado, por isso duas figuras serão centrais para o nosso intuito: Smaug e Gollum. Espero que não me entenda mal, não pretendo simplesmente dizer que esses dois personagens são personificações ou representações da sombra pura e simplesmente, se fosse esse o caso poderia parar por aqui. Isso seria tratar como alegoria psicológica a obra de Tolkien que me esforcei para demonstrar possuir justamente valor simbólico. Além de tudo eu estaria cometendo o erro corriqueiro da maioria daqueles que julgam realizar interpretações psicológicas se utilizando dos termos da psicologia complexa e descambam simplesmente no mais atroz reducionismo e psicologismo. Justamente o valor simbólico dessas imagens deveria prevenir tal coisa, além do contexto psicológico da obra, caso ele seja levado a sério. Ao leitor que estiver ávido por uma análise mais pormenorizada, infelizmente terei de desapontá-lo, quem sabe no futuro, mas por hora vamos ao que interessa.
Bilbo é escolhido para entrar para o grupo de anões em sua busca por retornar a sua terra natal por motivos supersticiosos da parte dos anões, eles eram em número de 13 e temiam o azar que isso poderia trazer (ao enfrentar um dragão todo cuidado é pouco), além disso, precisavam de um ladrão (burglar). Um dos aspectos mais marcantes de Bilbo na história é justamente a sua sorte, algo que já é pressagiado com esse início, mas Bilbo é uma personagem complexa, e que vai se desenvolvendo no decorrer da trama, e os conflitos pelos quais passa, trazem a tona muitas de suas qualidades adormecidas, deixadas de lado em sua vidinha pacata e um tanto tediosa.
De acordo com Campbell, como demonstra com vasto material comparativo em seu “The Hero with a Thousand Faces”, basicamente a jornada do herói implica abrir mão do lugar onde você vive, entrar na esfera da aventura, chegar a um tipo de percepção simbólica e depois retornar. Mas a primeira etapa é deixar o lugar onde você se encontra, pois esse lugar é repressivo demais e de alguma forma o herói está inquieto e ansioso e no fundo sabe que deve partir, ou pode acontecer um “chamado a aventura”, e então se penetra no que Campbell denomina de “esfera da aventura” que é sempre composta de forças e poderes desconhecidos. Temos uma diferença crucial entre Bilbo e os anões aqui. Bilbo se sente inquieto e secretamente seu lado Took sussurra em seu ouvido coisas que ele não gostaria de ouvir, coisas interessantes sobre elfos, magos e aventuras isso o perturba e quando surge o mago, Gandalf, uma encarnação moderna do velho Wotan, ele titubeia um pouco (quem em sã consciência não vacilaria ao menos um pouco diante da perspectiva de encarar um dragão?), mas no fim aceita a jornada, consciente de seus perigos e de suas recompensas, sabendo que jamais seria o mesmo ao voltar. Os anões são forçados a sua jornada, eles estavam em sua cidadela inexpugnável, com salões imensos repletos de ouro, minas riquíssimas, uma prosperidade tão grande que mesmo para os padrões dos anões eles eram imensamente ricos, eles estavam no auge e então surge o Dragão e os expulsa de seu reino, rouba seu tesouro (incluindo a pedra Arken, o coração da montanha) e mata seu monarca. Os anões não têm muita escolha, diferente de Bilbo, sua escolha já implica muita coragem e discernimento, algo que ele demonstra na aventura à medida que vence seus medos e receios e começa a expressar o seu lado Took, não é á toa, e isso é pressagiado desde o início, Bilbo e Thorin têm destinos tão diferentes. Bilbo mesmo relutante aceita o “chamado à aventura” e faz a “travessia do limiar”, isto é, ele se afasta da esfera conhecida em direção ao grande desconhecido, perceba caro leitor, que o movimento dos anões é exatamente o inverso, eles foram lançados contra a sua vontade no grande desconhecido e agora desejam retornar ao seu lar, pretendem roubá-lo de volta ou expulsar o dragão a força.
O objetivo da jornada é Erebor, a “montanha solitária”, o reino anão dominado por Smaug e, para chegar ao seu destino, precisam passar por uma cordilheira de montanhas, bem como gigantes de rochas e atravessar o coração dessas mesmas montanhas enfrentando hordas de goblins raivosos.
O tema da montanha é algo recorrente nas obras de Tolkien, e é importante no Hobbit. Fundamentalmente é a montanha que precisa ser retomada das garras do Dragão e o título a ser restaurado é o de “rei sob a montanha”. Intimamente relacionados à montanha, ou as montanhas, estão os anões (tanto em Erebor quanto em Moria), a montanha é o reino dos anões a ser resgatado. Segundo Von Franz os anões são geralmente símbolos do poder criador do inconsciente, e nas mitologias grega e germânica ele é um grande artesão. Na Grécia existiam anões que escoltavam a deusa mãe e eram chamados de dáctilos (dedos), os dedos da mãe terra. Ainda segundo Von Franz.
Se observarmos o papel dos anões nos contos, observaremos que eles são, na maioria das vezes, positivos: trabalham nas minas e armazenam tesouros, são excelentes artesões. Joalheiros, fabricam taças de ouro e outros objetos preciosos, sendo ainda hábeis tecelões e conhecedores de inúmeras artes úteis. Em outro conto, crianças abençoadas pelo fato de terem nascido num domingo vão a colina dos anões, de quem recebem capuchos capazes de tornar invisível quem os coloca, ou então fios de seda invisíveis que permitem dominar até mesmo dragões. Um dos célebres anões da mitologia germânica tem por nome Allwis: Sabe-Tudo. Na mitologia grega e cretense, os cabiros, companheiros da Grande Mãe, também são ferreiros e artesãos. Os anões são, pois, em geral, personagens extremamente positivos; fálicos, têm relação com os impulsos criadores originários do inconsciente (...). (Von Franz, 2010, p.108)
Nossos anões costumavam ser grandes ferreiros e artesões, mas estão afastados, exilados de sua terra natal, de sua pátria, da mãe terra. Foram imensamente ricos e prósperos, artesãos sem par, mineradores de ouro e gemas preciosas, contudo foram reduzidos a pobres diabos, mineradores de carvão, lutando de maneira inglória para obter seu sustento. Seu papel positivo lhes é tomado juntamente com seu reino e sua montanha quando o Smaug saqueia seu lar e os expulsa de sua pátria. Todo o seu imenso tesouro, e seu orgulho lhes é roubado pela fúria flamejante do dragão. Ainda mais interessante, seu rei é morto pela fera, junto de sua riqueza e de sua nação perdem também o seu monarca. Com relação à simbólica da montanha, na mitologia grega o monte olimpo é a morada dos deuses, o monte Sinai foi o local onde Moisés se encontrou cara a cara com deus e dele recebeu as tábuas das leis com o decálogo. Após o dilúvio universal a arca encalhou no topo de um monte, que algumas lendas afirmam ser o monte Ararat. No topo do Cáucaso Prometeu foi acorrentado após roubar o fogo dos deuses olímpicos, na mesopotâmia os sacerdotes sumérios ordenavam a construção de zigurates, com vários andares construídos uns sobre os outros formando uma espécie de pirâmides com degraus, com o intuito de aproximar o homem do céu e dos deuses. Um templo como esse é descrito na bíblia a torre de babel cujo intuito era tocar o céu, mas a confusão de idiomas gerada como castigo por deus impediu esse intento. Nas lendas budistas, jainistas e Hindus o monte Meru é retratado como o eixo do mundo, o centro de todo o universo físico e espiritual, bem como a morada de Brahma e diversos deuses, foi com ele que os deuses e titãs bateram o oceano primordial de leite para gerar a ambrosia que concedia imortalidade.
A montanha surge então como o lugar onde se localiza a morada dos deuses, ao mesmo tempo como o lugar onde se está mais próximo da divindade, em nossa história ela é o destino a ser alcançado após perigosa jornada e o prêmio almejado, juntamente com o ouro roubado, mas simultaneamente é na montanha que se esconde o terror de Smaug, a fera alada de escamas mais duras que o ferro e cujo hálito de fogo pode derreter mesmo a mais resistente das couraças. Em certo sentido, escalar a montanha significa tornar-se mais consciente, quando o indivíduo escala a montanha ele se torna a própria montanha, pois ela surge igualmente como símbolo do penoso processo de individuação. Em nosso contexto ela surge como um dos símbolos de totalidade que aparecem na obra, nesse caso o tesouro, a pedra Arken, o Dragão (em sentido negativo) e o rei assassinado pela fera. Na historia do Hobbit a montanha contém ao mesmo tempo o tesouro buscado e o horror a ser enfrentado representado por Smaug. Em nosso contexto Erebor também representa algo vital para os anões: sua comunicação, seu contato com a terra de onde extraem a matéria prima para a sua criatividade, sua função de expressar a força criativa da terra, isso está barrado pelo dragão, Smaug não cria nada, apenas acumula, toda a potencia criativa representada pela montanha e suas minas estão inacessíveis. Como símbolo de totalidade, aquilo que em termos psicológicos Jung denominou de Self (Selbst) precisamos ter um certo cuidado ao analisá-lo, juntamente aos outros símbolos que surgem como representantes da totalidade psíquica na obra de Tolkien, sobre isso Von Franz nos adverte.
Podemos considerar a questão sob um outro aspecto, o da variedade infinita de símbolos. Se chegarmos à conclusão apressada de que certos símbolos representam o Self, poderemos estar certos em relação a um determinado motivo ou sonho, mas não estaremos fazendo uma interpretação mitológica e geralmente válida. Mesmo que, tecnicamente falando, isso não seja errado. Uma afirmação tão generalizante é destituída de sentido. Um símbolo do Self não equivale a outro. É portanto necessário precisar nosso pensamento e nos questionarmos sobre as diferenças existentes entre símbolos como a Mandala, o Ovo, o Diamante, a Esfera de ouro, o Tesouro a ser descoberto, a Criança, o Herói ou Heroína etc., cada um deles representando um aspecto do Self. A primeira situação que pensamos é que o Herói é um ser humano, ao passo que a esfera e outros objetos não o são, o que parece uma afirmação banal, mas que é preciso compreender situando-a em seu justo lugar. Se, em certos materiais, a totalidade aparece sob a forma de símbolos impessoais como uma árvore, ou semi-humanos como o Herói, a correspondência se dá em relação a qual diferença psicológica? (Von Franz, 2010, p.41)
A longa citação foi necessária para nos colocar a pensar de maneira correta sobre os símbolos que surgem na história, sua importância e sua diferença psicológica. Vejam, em certa medida, mesmo Bilbo no papel de herói é um símbolo do Si-mesmo (Self, Selbst), ele representa, simultaneamente, um modelo de comportamento da personalidade masculina consciente, bem como um esboço de correspondência entre o eu e o Si-mesmo que exige, em termos pessoais, a execução e a realização concreta na vida de cada um. Nesse sentido o Self é uma possibilidade virtual e latente. Campbell afirmava que os temas arquetípicos podem surgir não apenas no mito e na literatura, mas para quem tiver sensibilidade, eles podem surgir na elaboração do enredo da sua própria vida.
 Um dos aspectos mais interessantes relacionados a essa simbólica diz respeito à morte do rei dos anões, pai de Thorin. Na mitologia de Tolkien os sete anéis dos anões que foram criados por Sauron eram os mais similares ao anel dos nibelungos, pois eles eram capazes de multiplicar o ouro. A riqueza em Erebor havia se tornado desmedida, e dos símbolos de totalidade que surgem na história, o rei anão que é morto é importante para nossa compreensão. Em termos psicológicos, o rei incorpora um princípio divino, ele representa o princípio divino na sua forma mais visível. Em termos coletivos o rei geralmente representa uma atitude coletiva, que assim como tudo o que há sob o céu, também envelhece e morre, em inúmeros contos de fadas aparece à figura do velho rei que precisa encontrar seu sucessor, ou mesmo, na lenda do Graal, a imagem pujante do rei pescador ferido que precisa ser redimido. Em nossa história o rei é morto e com ele sua terra é devastada (na história do Graal, a terra estava devastada e infértil devido ao ferimento do rei) e seu povo disperso aos quatro ventos, fadados ao sofrimento e a pobreza. Em um nível primitivo o rei personifica o poder vital místico de uma nação, a saúde e o poder físico e espiritual do rei garantem o poder da nação. O rei é a manifestação simbólica do Self, segundo Von Franz, ele representa o aspecto específico do Self que domina uma civilização, assim “o rei não é o arquétipo mas o símbolo do Self que se tornou a representação central dominante numa civilização”. De maneira significativa, seu filho Thorin deve se encarregar de matar o dragão e retomar o tesouro roubado bem como o reino, é expressivo que Thorin nunca chegou realmente a enfrentar o dragão e termine morto, mas isso é uma discussão para mais tarde. Passemos agora a primeira das montanhas enfrentadas por Bilbo, onde ele caiu nas garras do goblins, mas antes de falarmos dessa montanha, é importante que tenhamos uma compreensão mais acurada de Bilbo, nosso inusitado herói.
Uma das primeiras tentações ao se analisar Bilbo é imediatamente, por exemplo, identificá-lo com o complexo do eu (ego) e Gollum com a sombra, a rigor isso não está tecnicamente errado, mas só se sustenta por pouco tempo e rapidamente enfrenta distorções e contradições, sendo por isso o mais importante não interpretar qualquer figura arquetípica antes de examinar seu conteúdo. Além disso, é preciso ter em mente, como aconselha Von Franz, que só podemos usar o termo sombra cum grano salis, pois num conto de fadas (ou em nosso caso um romance) as figuras são todas comparáveis entre si e possuem uma função compensatória, todo mundo é sombra de todo mundo nos contos de fadas.
Bilbo inicia a jornada de maneira relutante, e em muitos momentos questiona a sua decisão de deixar sua toca confortável e se submeter às agruras da jornada, mas em momentos cruciais ele salva os anões utilizando-se principalmente de sua esperteza, na escuridão do coração da montanha ele vence Gollum no jogo de adivinhas, por um bom tempo consegue ludibriar os anões a cerca de suas novas habilidades conseguidas graças ao anel mágico, durante a travessia da floresta ele pôde salvar os anões das aranhas com seu estratagema de insultá-las e confundi-las com sua musiquinha de “aranhoca boboca”. Todos os membros do grupo são capturados pelos elfos menos ele e graças a isso salvou os anões das masmorras do rei elfo utilizando-se de um estratagema extremamente inteligente, a fuga com os barris. No covil do dragão ele conseguiu resistir à voz hipnótica e ao terror de Smaug graças a sua capacidade de responder de maneira enigmática e por meio de charadas. A lâmina élfica de Bilbo e seu anel de invisibilidade são ferramentas poderosas, mas sem sua esperteza o hobbit dificilmente teria sobrevivido a uma aventura tão perigosa. A princípio Bilbo é visto com desconfiança pelos anões, mas logo a situação se inverte e mesmo Thorin passa a depositar nele e em sua esperteza uma enorme confiança, pois sempre que surge uma encrenca é a esperteza de Bilbo que os salva a todos.
Com base no conteúdo da imagem de Bilbo, bem como seu aspecto funcional na história, mesmo que por hora examinado superficialmente, e o modo pelo qual está constelado em relação aos outros personagens, podemos concluir que Bilbo possui uma relação com o arquétipo do trapaceiro (trickster), que supera seus inimigos por meio da esperteza. Um aspecto interessante que pode ser apreendido pelo contexto da obra e o desenvolvimento de Bilbo, é que Gollum, em certa medida, também possui uma relação com o arquétipo do trapaceiro, de uma maneira ainda mais forte e primeva do que Bilbo. O processo civilizatório se inicia com o ciclo do Trickster, nas mitologias de povos primitivos essa figura que vai do cômico ao bizarro, do ingênuo ao perverso, desempenha um papel dos mais importantes, sendo por vezes idêntico ao espírito criador, como o “velho homem” descrito por Campbell em seu volume sobre mitologia primitiva nas Máscaras de Deus, por vezes o trapaceiro é um animal, ou um ser apenas semi-humano. Segundo Jung, são características do Trickster sua tendência a travessuras astutas, em parte divertidas em parte malignas, a mutabilidade, a dupla natureza animal-divina, a vulnerabilidade a todo o tipo de tortura e a sua proximidade a figura do salvador. Observa-se no antigo testamento um gradual desenvolvimento no caráter de Jeová, que possui muitos traços do Trickster como a imprevisibilidade, a inútil mania de destruição e o sofrimento auto-infligido, até sua posterior e gradual humanização rumo à figura do salvador. O Trickster é tão inconsciente de si mesmo que não representa uma unidade. O Trickster é um “psicologema”, uma estrutura psíquica arquetípica antiquíssima, em sua manifestação mais visível é um reflexo fiel de uma consciência humana indiferenciada, que corresponde a uma psique que ainda não se libertou do nível animal. Para uma consciência primitiva (aos antropólogos de plantão, o sentido de primitivo em Jung é de primevo, originário) tem uma auto-imagem em um nível anterior de desenvolvimento e continua essa atividade psíquica através dos milênios, pois quanto mais arcaica uma qualidade mais obstinada e conservadora ela é. Mas o trapaceiro não é pura e simplesmente reflexo de um estado de consciência anterior e elementar. Em termos empíricos a personificação desse reflexo pode ser percebida nas cisões de personalidade (dupla personalidade), segundo Jung.
Tais dissociações têm a peculiaridade de que a personalidade cindida mantém uma relação complementar ou compensatória para com a do eu. Ela é uma personificação de traços de caráter, às vezes piores e às vezes melhores do que os apresentados pelo eu. Uma personificação coletiva como o “trickster” é produto de uma soma de casos individuais, podendo ser reconhecida pelos indivíduos isoladamente, o que não ocorreria se se tratasse de um produto individual. (Jung, 2003, p.257).
Algumas vezes o trickster pode ser representado por tendências opostas no inconsciente, por um tipo de segunda personalidade de caráter pueril, inferior, Jung denomina esses componentes de caráter por sombra. Em nosso nível cultural ela é considerada como uma falha pessoal, um defeito da personalidade consciente. A figura coletiva numinosa do trapaceiro decompõem-se pouco a pouco sob a influência da civilização, permanecendo viva apenas de modo pouco reconhecível em resíduos folclóricos (o carnaval, por exemplo). Sua parte principal, no entanto se personifica sendo objeto de responsabilidade subjetiva. O trickster como é mostrado nos ciclos míticos conserva a forma mítica originária da sombra, indicando um estágio de consciência muito mais antigo quando o homem se encontrava ainda em uma obscuridade mental quase completa, apenas quando a consciência atingiu um nível superior é que foi possível objetivá-lo. Não podia existir qualquer confronto enquanto a consciência era igual à do trickster. O trapaceiro não é propriamente mau, mas devido a sua inconsciência e falta de relacionamento comete as maiores atrocidades. Com o desenvolvimento da consciência, ao final do ciclo mítico do trapaceiro, os sinais de sua inconsciência vão desaparecendo; sua brutalidade, crueldade, puerilidade e insensatez dão lugar a ações sensatas e úteis, mas os aspectos obscuros não desapareceram simplesmente, segundo Jung.
Na realidade o que ocorre é a libertação da consciência do fascínio do mal, não sendo mais obrigada a vivê-lo compulsivamente. O obscuro e o mal não se desfizeram em fumaça, mas recolheram-se no inconsciente devido a uma perda de energia, onde permanecem inconscientes enquanto tudo vai bem na consciência. (Jung, 2003, p.257).
Vamos agora, estimado leitor, examinar atentamente a figura de Gollum, utilizando também o desenvolvimento desse personagem no “The Lord of the Rings”. Gollum era o Hobbit Smeagol – um sujeitinho já um tanto esquisito e mesquinho – que encontrou por acaso em uma pescaria (imagem interessantíssima que explorarei mais tarde) o anel do poder de Sauron, na verdade seu amigo o pescou e ele o assassinou alegando que se tratava de seu “presente de aniversário”, sob a influência nefasta da magia negra do senhor do escuro, e cada vez mais apegado ao seu “precioso” ele abandona o convívio dos hobbits e vaga pelas vastas regiões selvagens até se afundar nas profundezas da terra, na raiz das montanhas vivendo por mais de quinhentos anos numa minúscula ilha em um lago de uma caverna no reino dos goblins, se alimentando de peixes crus e de algum goblin desafortunado o bastante para cair em suas garras, vivendo como um fantasma graças ao poder de invisibilidade do Um Anel. Se analisarmos Gollum de uma perspectiva pessoal, vemos claramente sua cisão de personalidade, onde uma é compensatória a outra, uma personalidade é fria, cruel, prática e decidida enquanto a outra é pueril, boba, e quase ingênua. No fundo, mutatis mutandis, Gollum é um “orc”, lembre-se caro leitor que os orcs foram elfos corrompidos e distorcidos pela magia negra de Melkor. Gollum é um hobitt corrompido e distorcido pela magia negra de Sauron, o senhor do escuro, ele é um hobbit que regrediu terrivelmente até um estágio de consciência crepuscular e originária, seu comportamento oscila entre ingênuo e o perverso, o cômico e o bizarro. É extremamente difícil dizer qual das duas personalidades é a sombra em virtude desse estado de profunda inconsciência em que ele vive o fascínio do mal de maneira compulsiva. De uma perspectiva coletiva, Gollum é a personificação de um estágio de consciência extremamente primitivo da civilização dos hobbits, ele personifica qualidades obscuras que nos demais Hobbits encontram-se inconscientes.
Quando Bilbo encontra Gollum e ocorrem as “adivinhas no escuro”, ele está no mais profundo recesso da terra, após ter sido tragado para as profundezas pelos goblis, esta é a sua κατάβασις, sua descida aos infernos, a umbra. Sozinho, separado do mago e dos anões ele precisa encontrar o caminho para a saída, escapar dos goblins e sobreviver ao jogo de charadas. Além de viver na escuridão de uma caverna, em uma minúscula ilhota no meio de um lago, Gollum é um ser de aspecto vil e grotesco. A água é um dos símbolos preferidos do inconsciente e Gollum deixa a segurança de seu lago para atacar Bilbo e só se mantém a distância devido à espada élfica que ele empunha. Gollum possui qualidades compensatórias a Bilbo e para ele desempenha o papel de sombra (sendo o contrário igualmente verdadeiro), mas para o desenvolvimento posterior de Bilbo, vamos tomar o pobre Smeagol como sua sombra. É no confronto com Gollum que Bilbo encontra a sua coragem e começa a ganhar a admiração dos anões, por um “acaso” ele encontra o anel mágico, mas é sua esperteza que o salva de ser devorado, bem como sua coragem. Após o confronto na caverna e do jogo de adivinhas o lado Took se torna progressivamente mais forte e Bilbo assume cada vez mais as características positivas do trickster relacionadas à esperteza, bem como é capaz de expressar seu lado Took, efetivamente se tornando um ladrão e aventureiro. Mas o mais importante é que Bilbo encontra também em seu coração grande compaixão, em dois momentos ele poderia ter matado Gollum, mas se ele o fizesse teria continuado preso ali, talvez para sempre, o asqueroso Gollum possuía o conhecimento que o levou a saída e, fundamentalmente, a compaixão de Bilbo derrotou Sauron. Se Smeagol tivesse terminado seus dias ali, a guerra contra o senhor do escuro teria terminado de maneira bem diferente. Smeagol, cum grano salis, pode ser comparado a certos desafios que não podem ser derrotados simplesmente pela força, pois os “nós górdios” tendem a se reatar. Em termos psicológicos ele se assemelha as Greias do mito de Perseu, ele não as mata, apenas iludibria e delas extrai conhecimento, ele amplia a sua consciência. Matar Gollum, em termos psicológicos poderia ser traduzido como o estabelecimento de uma atitude absolutamente unilateral e incapaz de se adaptar as situações cambiantes, apartadas da matriz inconsciente e da possibilidade de renovação, Bilbo faz uma avaliação não intelectual, mas sentimental das mais corretas, e esse traço de sua personalidade faz com que a história se mova, Bilbo sabe bem o que é realmente importante. Nesse sentido, podemos dizer que Bilbo é à sombra de Thráin, e após a morte de Smaug, a sombra de Thorin, pois quem realmente representa a renovação é Bilbo e não Thorin.
Retornando a Gollum e a maneira como ele adquiriu o Um Anel. Vemos no Senhor dos Anéis que Smeagol estava pescando com seu amigo em um pequeno bote quando este “pescou” o anel dourado, o mais poderoso dos anéis e o de aspecto mais ordinário de todos os anéis do poder. O simbolismo do barco é fundamental para compreendermos o pobre Smeagol. Por um momento, vamos compreender Smeagol, caro leitor, como uma personalidade, de uma perspectiva pessoal. A história de Smeagol corresponde a uma vivência interior e se torna mais fácil perceber isso se tomarmos a licença poética de encará-lo, momentaneamente, como o complexo do eu (ego). No número 50 da famosa série da Vertigo, Sandman, escrita pelo mestre Neil Gaiman, na história chamada Ramadan, o rei da lendária e mágica Bagdá invoca Morpheus o senhor do sonho, um dos perpétuos e em certo momento ele lhe diz: “há um conto sobre um pescador que pescou uma garrafa de jade e em sua rede e ele abriu a garrafa e libertou um gênio...”, esse é apenas um exemplo contemporâneo do mitologema que se apresenta a nós na história de Smeagol. Isildur conseguiu derrotar Sauron e conquistou para si mesmo o anel do poder, mas pouco tempo depois foi emboscado por orcs e utilizou o poder de invisibilidade do anel para escapar pelas águas de um rio, dotado de vontade própria o anel deixou o dedo de Isildur e ele morreu nas águas do rio enquanto o anel afundou e foi levado pelas águas, nesse ponto, uma vez mais, um “insignificante” Hobbit entra inesperadamente na história, como vimos, Smeagol encontrou o anel e rapidamente foi corrompido de corpo e alma por seu poder sombrio. Peter Jackson, em uma escolha extremamente feliz, mostrou Smeagol e seu amigo pescando em um pequeno bote quando por acidente “pescaram” o anel. Observando com maior cuidado o simbolismo do barco, o barco é um recipiente feminino, algumas vezes é associado a lua ou as deusas da lua, algumas vezes ao sol, como no Egito, onde há na mitologia a barca que conduz o sol. O barco facilita o comércio e a difusão cultural. O barco é um símbolo baseado na ideia de uma construção humana, que possibilita ir onde não se pode ir a pé ou por outro meio, pois ele se desloca sobre a água. Existe uma qualidade uterina no barco que diz respeito ao seu significado básico. O significado mais importante do barco é como instituição, para representar a doutrina de Buda, a Igreja, pois essas também são criações humanas, mas num sentido especial, não são criações no sentido moderno do termo. As primeiras invenções humanas sempre tiveram um significado milagroso, seus criadores sempre acreditaram que elas se baseavam na revelação, possuíam um significado sagrado, eram presentes dos deuses. Jung comparou o complexo do eu, com um homem pescando em seu barco (seus pressupostos conscientes e visão de mundo), no mar do inconsciente, ele não pode sobrecarregar o seu barco com peixes das profundezas mais do que ele pode aguentar sob o risco de afundar (Von Franz, 1997). Ainda segundo Von Franz.
Assim o barco tem essa qualidade de ser uma invenção humana milagrosa, mas uma invenção que nasce dos deuses, e é realmente a revelação de uma forma de uma deusa, que o homem imitou com a sua mente. Por isso ele ainda leva em si essa qualidade numinosa. O barco navega pelas águas do inconsciente. Sabemos que a água é geralmente um símbolo do inconsciente coletivo; por isso o barco sempre teve o significado de ser algo que nos mantém flutuando, não permitindo que nos afoguemos no inconsciente. Toda filosofia, toda doutrina religiosa ou tradição cultural é isso, como um barco que nos protege. Se penetrássemos no inconsciente despreparado, nós nos afogaríamos. (Von Franz, 2003, p.42).
Entrar em contato com o inconsciente tem o efeito de nos desorientarmos completamente, ficar desorientado é o significado psicológico de “afogar-se”. Esqueçam as leituras mais corriqueiras e tolas que se fazem da obra de Jung que veem o inconsciente como uma fonte cristalina de criatividade guardada pelos ursinhos carinhosos, o contato com o material arquetípico, que não pode ser integrado à consciência, mas apenas reconhecido como algo de objetivo e autônomo, é um tremendum algo avassalador que pode destruir consciências mais fracas, essa era, por exemplo, para Jung o valor do dogma, ele permitia algum contato com o espírito, mas protegendo do contato direto que poderia ter um efeito devastador e possivelmente fatal. Encarar o mal coletivo, o mal absoluto e não humano que existe na alma é um fardo moral terrível e poucos são aqueles fortes o bastante para encarar tal coisa. O mais interessante é que nos mitos e contos de fadas abundam imagens de perigos terríveis e que só podem ser superados com a ajuda de ajudantes mágicos benfazejos, imagens terríveis de petrificação, despedaçamento, de canibalismo e aprisionamento eterno, e mesmo assim, mesmo com o fenômeno vivo dando provas cabais dos perigos que tais vivências interiores representam, esse tipo de interpretação a que aludi anteriormente ainda é muito popular. Mas retornando ao pobre Smeagol, ele tomou posse do Anel através do roubo e do assassinato, o Um Anel é uma parte do poder avassalador de Sauron, um representante desse mal coletivo absoluto, com o qual podemos entrar em contato por meio de nossa sombra pessoal. O um anel é feito de ouro, mas fora isso, parece um anel ordinário, apenas sob altas temperaturas sua verdadeira natureza se revela, e as inscrições na língua de Mordor surgem e revelam sua natureza mágica e sua origem nefasta. Jung certa feita afirmou que o dom da razão e da reflexão crítica não são uma propriedade incondicional do homem, a argumentação racional é apenas possível quando as emoções não ultrapassam um determinado ponto crítico, pois quando a temperatura afetiva se eleva para além desse nível a razão perde a sua possibilidade efetiva. Em termos simbólicos a imagem de Smeagol retirando o Anel das águas lembra a história nórdica de Thor em um barco tentando pescar a serpente do mundo Jormungand, tal era o peso do monstro que seus pés furaram o barco e tocaram o leito do oceano, e mesmo assim ele falha em pescar a serpente. Traduzindo em termos psicológicos, se encararmos Smeagol como uma personalidade, tem a ver com a vivência interior do contato da personalidade com conteúdos arquetípicos, representados aqui pelo Anel. Desse contato pode resultar tanto uma obra de arte ou uma filosofia, até mesmo uma revelação mística, quanto à loucura e o “afogamento” do sujeito. O fiel da balança aqui é a força e solidez do complexo do eu.
Todo o inconsciente é projetado, e muitas vezes o encontramos mais “fora”, nos outros, nos objetos ou lugares do que na “interioridade” psíquica, pessoas com um eu fraco resistem obstinadamente de toda elucidação de suas projeções negativas, em virtude do fato de não conseguirem suportar o fardo e a opressão moral provocadas por esse tipo de esclarecimento. No que se refere às projeções de características positivas, a elucidação nesse caso, em alguém com o eu fraco, acarreta facilmente um processo de inflação psíquica (semelhança a deus), que o torna do mesmo modo inconsciente, esses dois tipos são, ao mesmo tempo, grandes e pequenos em demasia. Smeagol pescou um peixe das profundezas que sua fraca psique não foi capaz de suportar, e o lançou no estado de consciência divida e crepuscular característico do trickster. No que concerne ao contato com os conteúdos do inconsciente coletivo, de acordo com a força e solidez do complexo do eu, bem como a maneira como ele se relaciona com o inconsciente existem algumas possibilidades. Segundo Jung, os conteúdos psíquicos transpessoais não são inertes, são entidades vivas que exercem uma poderosa força de atração sobre a consciência, ergo não podem ser manipulados a vontade. O Anel é extremamente enganoso, seu aspecto passa a impressão de que ele é algo banal, que pode ser manipulado a vontade, uma mera ferramenta que lhe confere o poder de invisibilidade (um poder ligado ao mundo dos espíritos), vida longa e sentidos aguçados, mas em seu interior se esconde uma vontade maligna e poderosa demais para ser contida por qualquer mortal desavisado. Smeagol é destruído por essa vontade maligna e lentamente sua personalidade sucumbe sob o peso do poder do Anel. O mais interessante ao se pensar sobre isso, é que, em termos práticos a mesma imagem com poder salvífico é a mesma que pode destruir a consciência do eu, pois, segundo Von Franz, a única coisa que possui poder de cura na clínica é a manifestação arquetípica. Nesse sentido, Jung nos diz.
Só um gênio ou um louco pode desligar-se suficientemente dos vínculos da realidade, a ponto de ver o mundo como seu livro de imagens. Será que o doente elaborou ou construiu tal concepção ou esta lhe ocorreu por acaso? Terá sucumbido a essa visão? Esta última alternativa pode ser corroborada por seu estado de desintegração patológica e por sua inflação. Não é mais ele quem pensa e fala, mas algo pensa e fala dentro dele: por isso ouve vozes. Assim, a diferença que o separa de um Schopenhauer reside no fato de que, nele, a visão permaneceu no estádio de um mero produto espontâneo, ao passo que Schopenhauer soube abstraí-lo, exprimindo-o numa linguagem de validade universal. Deste modo, elevou-a do estado inicial subterrâneo à clara luz da consciência coletiva. Seria um erro total afirmar que a visão do paciente possui apenas um caráter ou valor meramente pessoal, como algo que lhe pertencesse. Se assim fosse, seria um filósofo. Entretanto filósofo ou gênio é precisamente aquele que consegue transmutar uma visão primitiva e natural numa ideia abstrata, que pertence ao patrimônio geral da consciência. Esta realização e somente ela constitui o seu valor pessoal, cujo reconhecimento não o fará sucumbir inevitavelmente à inflação psíquica. A visão do paciente é um valor impessoal surgido naturalmente, contra a qual ele não pôde defender-se e que o engoliu, e “transportou” para fora do mundo. A inegável grandeza da visão inflou-o até proporções patológicas, sem que ele pudesse apropriar-se da ideia transformando-a numa concepção filosófica de mundo. O valor pessoal reside na realização filosófica e não na visão primária. O filósofo citado também teve essa visão, como incremento, procedente do patrimônio geral da humanidade do qual, em princípio, todos nós partilhamos. As maçãs de ouro caem da mesma árvore, quer sejam colhidas pelo insano aprendiz de serralheiro ou por Schopenhauer. (Jung, 1997, p.19).
Não é exagero reforçar que as adivinhas no escuro, é o momento crucial para a posterior derrota de Sauron, que se converte em um espírito sem poderes e incapaz de prejudicar a Terra Média, nesse sentido, foi à compaixão de Bilbo que derrotou o senhor do escuro, Frodo sucumbiu à vontade do Anel bem diante do poço de lava de Orodruin, se Gollun não o tivesse atacado e mergulhado na lava caindo para a morte levando consigo o seu “precioso”, tudo estaria perdido. Ao contrário de Smeagol, Bilbo poderia tê-lo matado na saída do labirinto subterrâneo dos goblins, como este o fez ao percar o Anel, mas se apiedou dele, o Anel não chegou as suas mãos manchado de sangue, e com o poder dele Bilbo foi capaz de realizar um grande bem, a destruição do último dos grandes dragões criados por Morgoth, e a restauração do reino sob a montanha, nas trevas do coração da montanha, as margens do lago de águas escuras e sinistras, Bilbo encarou simultaneamente sua sombra pessoal encarnada na figura de Gollum e o mal coletivo representado pelo Anel, e com isso reconhecer, integrar e manifestar seu lado Took.
A montanha solitária se avizinha de nós, ao longe ela já domina a paisagem, cercada pela desolação provocada pelas chamas de Smaug, finalmente é chegada a hora de encarar o último dos grandes dragões e recuperar o ouro roubado e Erebor, o reino dos anões. Tolkien em outras de suas obras, publicadas apenas postumamente, como Farmer Gil de Han, e Roverandon, já havia se utilizado da figura do dragão, e essas obras também nos servirão de paralelo ao examinarmos a simbólica do dragão. Campbell nos fala da temática, na jornada do herói do que ele denomina de “travessia do limiar”. A princípio há o chamado a aventura, se esse chamado é atendido o indivíduo se engaja em uma aventura perigosa, há perigo, pois o herói sai da esfera familiar da comunidade, isto é, ele se afasta de tudo aquilo que lhe é familiar e corriqueiro e vai em direção ao grande desconhecido, é exatamente isso a travessia do limiar, a travessia do mundo da consciência para o inconsciente, representada de inúmeras maneiras diferentes conforme o contexto cultural do mito. Mergulhar no oceano, entrar num deserto, penetrar numa floresta escura, descobrir uma cidade estranha, pode ser uma ascensão ou uma descida, mas o elo comum a todas essas imagens é que sempre o caminho leva ao desconhecido. Existem em psicologia complexa várias definições possíveis de inconsciente, logo no início desse texto eu expus de maneira sucinta ao menos duas definições possíveis, mas há uma que eu gosto em particular, tanto pela sua simplicidade quanto pelo seu valor heurístico. Para Jung, e isso é importante, o único critério de validez de uma hipótese é o seu valor heurístico, isto é, explicativo. Por isso gosto dessa definição que exporei agora, se há algo do método que eu espero que você, estimado leitor, retenha após a leitura desse ensaio, é isto, que no opus de Jung o único critério de validade de uma hipótese é o seu valor explicativo, pois importa compreender o fenômeno.
O inconsciente é tudo aquilo que sabemos ser psiquicamente real, mas que não é consciente. Trata-se de um conceito limítrofe, e negativo. Usamos esse conceito negativo para evitar um preconceito. Alguns o chamam de supraconsciente, outros de subconsciente, outros ainda falam de esfera divina ou base existencial. Nomes há aos milhares. Preferimos o termo inconsciente justamente porque não diz nada. Diz apenas que não é consciente, o que permanece um mistério. Não sabemos o que é. Sabemos apenas que há fenômenos psíquicos que se manifestam através de sonhos, gestos involuntários, lapsos da fala, alucinações ou fantasias que não são conscientes. (FRANZ & BOA, 1997, p.37).
Pois bem, em certo sentido, o inconsciente é justamente aquilo que eu não sei, que desconheço, o desconhecido. Campbell descreve com simplicidade apoiado na fenomenologia dos mitos um conceito crucial para a psicologia complexa e faz um uso admirável dele para elucidar os mitos aos quais ele dedicou sua vida. Voltando a Campbell, a ideia da aventura do herói é atravessar, ainda nesse corpo, rumo ao mundo onde as regras dualistas não se aplicam. A jornada do herói através do limiar é uma jornada que supera os pares de opostos, no qual se vai além do bem e do mal. Veja, Bilbo começa como um Baggins, extremamente convencional, avesso às aventuras ou a qualquer coisa inesperada e fora do normal, nesse sentido, tudo aquilo que seu lado Took representa é mau, ou ao menos estranho e fora do normal. Em nossa história, em certo sentido, para superar os inúmeros desafios é preciso superar a dualidade Baggins/Took, essas são as Simplégadas de Bilbo, suas rochas em colisão. Segundo Campbell:
Outro desafio no limiar pode ser o encontro com a contraparte escura, a sombra, em que o herói resplandecente encontra o sombrio. Este pode tomar a forma de um dragão ou de um inimigo maligno. Em todo caso o herói tem de matá-lo e entrar vivo no outro mundo. (Campbell, 2008, p.139).
Para Campbell a ideia geral no mito do herói é que se foi em busca daquele potencial irrealizado, não utilizado em você. O sentido da jornada é a reintrodução desse potencial no mundo, deve-se devolver esse tesouro do saber e integrá-lo ao mundo, mas isso é terrivelmente difícil. Me adianto um pouco, mas o passo crucial que é esse descrito por Campbell é justamente onde Thorin claudica, ele deseja o tesouro apenas para si, ao invés de devolvê-lo a comunidade, de conseguir integrar isso à vida racional ele passa a agir como o dragão, exatamente como Smaug, isso é o que Campbell denomina de “recusa do retorno”. As figuras na história que verdadeiramente dão cabo do dragão são Bard que o mata com uma flecha mágica e Bilbo que descobre seu ponto fraco, são eles que dão esse passo crucial, que permitem que o poder criativo da terra e seus tesouros possam novamente trazer vida e vida em abundância a montanha e aos povos do lago. Em Farmer Gil de Han, Gil enfrenta primeiro um gigante com seu bacamarte e depois ele derrota o dragão que vem ao pequeno reino, esse dragão possuía um fabuloso tesouro, Gil se apieda do dragão e este lhe dá muito, muito ouro e ele funda seu próprio reino, melhor e mais justo que o reino anterior, que estava preso a uma ritualística sem sentido e a um mundo de aparências. Algo similar é feito por Bard com o ouro recuperado do dragão.
No Elder Edda, na parte dos poemas heroicos do Codex Regius, lemos sobre a morte do dragão Fáfnir (Fáfnismál). Fáfnir era um anão, filho do rei Hreidmar e irmão de Ótr. Acontece que seu irmão, Ótr podia mudar de forma e assumir a aparência de uma lontra, um dia Odin, Loki e Hoenir estavam viajando quando viram Ótr em forma animal e Loki o matou com uma pedra e ele e os demais Aesires retiraram a sua pele. Em seguida eles foram até morada do rei anão Hreidmar e mostraram seu troféu ao verem aquilo o rei e seus dois filhos remanescentes prenderam os deuses e fizeram Loki lhes compensar com ouro pela morte de seu parente. O resgate seria ouro o bastante para encher a pele de lontra e depois cobri-la de ouro, o malicioso Loki cumpriu a tarefa, mas o fez usando o ouro amaldiçoado do anão Andvari e com seu anel mágico Andvaranaut (um anel mágico amaldiçoado capaz de produzir ouro), a maldição do anel e do ouro trariam a morte de qualquer um que os possuísse. Fáfnir matou seu pai para se apossar de todo o ouro e depois se embrenhou nas florestas e com o tempo se transformou em um dragão capaz de expelir um hálito venenoso capaz de matar qualquer um que dele se aproximasse. Regin, irmão de Fáfnir induz seu filho adotivo Sigurd a matar o dragão. O plano do anão foi cavar um fosso no local onde o monstro passaria para beber água e cravar a espada no coração do dragão. Quando Sigurd estava cavando o poço Odin apareceu na forma de um velho de longas barbas e o aconselhou a cavar fossos laterais para que não se afogasse no sangue de Fáfnir, e ele assim o fez. Quando o monstro estava agonizando perguntou o nome de seu assassino e quem o tinha enviado para cumprir a missão, ao saber que fora obra de seu irmão ele se regozijou e disse que Regin mataria Sigurd e que seu tesouro era amaldiçoado. Sigurd retira o coração do dragão e o leva para o anão Regin que o ordena que cozinhe o coração para que pudesse comê-lo. Quando Sigurd estava cozinhando ele experimentou um pouco do sangue e ganhou o dom de compreender a língua das aves e ao ouvi-las falando sobre o plano de Regin para matá-lo, ao ter certeza da traição ele mesmo mata Regin.
Thorin, mutatis mutandis, tem um destino similar ao de Fáfnir, sua ganância o torna um “dragão”, assim como Smaug, ele impede a característica fálica, criativa dos anões de expressar a criatividade da terra ao valorizar de maneira desmedida o ouro e a pedra Arken. O dragão Fáfnir, assim como as serpentes, que muitas vezes são funcionalmente idênticas aos dragões nos mitos, está associado ao veneno, nosso dragão Smaug cospe fogo, mas sua voz é hipnótica. Bilbo consegue suplantar esse poder ao falar com ele por meio de “charadas”, mas em certo sentido a voz e as palavras de Smaug causam confusão, desorientação, e podem “envenenar” o espírito. É isso o que ele tenta fazer com Bilbo, ele semeia dúvidas no coração do Hobbit sobre as reais intenções dos anões e sua disposição em manter as suas promessas, apontando, por exemplo, a inviabilidade de Bilbo transportar seu 1/14 do tesouro de volta a sua terra natal. Mas é Bilbo quem o engana (apesar de acabar por revelar mais do que deveria por meio de suas rimas e adivinhas) e consegue ver o ponto fraco em sua couraça. O ponto fraco de Fáfnir era seu ventre macio, como o de um lagarto rastejante, e assim como Fáfnir o ventre de Smaug não possui uma couraça natural, mas com as joias que se colam ao seu corpo ele adquire uma armadura. Bilbo enxerga a brecha nessa armadura e as aves contam a Bard o segredo do dragão descoberto pelo Hobbit. Mas, em termos psicológicos, vemos em Smaug tanto uma representação do inconsciente como um todo, quanto, assim como as serpentes, uma representação da vida instintiva que se revolta contra a atitude dos anões, e que sua ira flamejante torna a situação insuportável. Certa feita Jung falou sobre a neurose que algumas vezes se poderia dizer: “ainda bem que fulano se tornou neurótico, agora será obrigado a lidar com o problema”, em certo sentido Smaug obriga os anões a saírem de sua estase, mas os lança em uma situação ainda pior.
Ao final de tudo, Thorin morre na batalha dos cinco exércitos, ele é mortalmente ferido e agoniza até que Bilbo vai até os eu leito de morte, o que ele diz a Bilbo sintetiza, a meu ver, o sentido mais importante da obra, ali está o espírito do “The Hobbit”.
“Adeus bom ladrão,” ele disse. “Eu vou agora para os salões onde se espera para me sentar ao lado de meus pais, até que o mundo seja renovado. Então eu deixo agora todo ouro e prata, e vou para onde eles são de pouca valia, eu desejo partir em fraternidade com você, eu traria de volta minhas palavras e ações no portão.”
Bilbo ajoelhou-se e em um joelho, preenchido pelo pesar, “adeus bom rei sob a montanha!” Ele disse. “Essa é uma aventura amarga, e deve terminar dessa maneira; e nem mesmo uma montanha de ouro pode reparar isso. Ainda assim estou contente de ter dividido esses perigos – isso foi bem mais do que qualquer Baggins merece.”
“Não!” Disse Thorin. “Existe mais de bom em você do que pode perceber, criança do gentil oeste. Alguma coragem e alguma sabedoria, misturadas na medida. Se mais de nós valorizassem comida  e animação e músicas acima de tesouros acumulados, seria um mundo mais alegre. Mas triste ou alegre eu devo deixá-lo agora. Adeus!” (Tolkien, 2006, p.333, tradução minha)
É hora da longa jornada de volta ao Condado, nossas aventuras ficam para trás, e o lado Baggins começa a ficar mais forte a ansiar pela paisagem bucólica da terra dos Hobbits e pela confortável e acolhedora toca de Hobbit. Bilbo abre mão de boa parte de sua recompensa prometida, levando apenas duas arcas pequenas, e depois recuperando o ouro dos trolls, que divide com o mago, e mesmo assim, torna-se muito rico, mas na justa medida, aposenta sua espada e seu anel mágico, e para sempre perdeu sua boa reputação. Apesar dos perigos, estimado leitor, ninguém poderá dizer que não foi uma jornada divertida e instrutiva. Até hoje as palavras de Thorin me emocionam, elas dizem muito sobre a alma de Tolkien, e um pouco sobre o que vai na alma de muitos de seus leitores, há um pouco de Hobbit em todo aquele que ama a música e a alegria acima do ouro e que não sucumbe ao seu fascínio, nem se deixa enganar pelas palavras venenosas dos dragões. Eu me diverti bastante, e aprendi bastante com esse modesto escrito, há muito mais nessa obra maravilhosa, mais do que minha sabedoria seria capaz de interpretar ou compreender, e mais do que caberia no espaço de um ensaio, e, como símbolo, o Hobbit tem sempre mais e mais e nos dizer, e creio que sua mensagem é valiosa nesse mundo triste que valoriza o ouro acima de todas as coisas.
Heráclito Aragão Pinheiro, Fortaleza, anno domini 20/02/2013