sábado, 28 de julho de 2012

Casamento


O amor da forma a todo o universo
Mesmo aos abismos do inferno
(Joseph Campbell)

Meu jovem amigo Thiago Gimenes casou recentemente. Em virtude desse fato resolvi escrever algo sobre o casamento como um presente ao meu camarada Thiago. Não que eu seja um profundo conhecedor do assunto, talvez seja exatamente o oposto, mas pretendo trazer de forma clara e concisa a opinião de homens bem mais sábios do que eu como Campbell e Jung, para ajudar a iluminar o caminho que se inicia para o Thiago. Eu desejo a ele toda a felicidade e, além de lhe regalar com um espremedor de frutas ou algo do gênero, também lhe dedicarei esse pequeno ensaio, pois às vezes ao desejo e ao pensamento positivo devemos somar a ação concreta, nem que seja um modesto escrito.

Existem muitos livros sobre esse tema, alguns bons outros nem tanto, sobre o tema do relacionamento entre homens e mulheres então já se gastou um oceano de tinta. Alguma dessa tinta poderia ter sido mais bem utilizada, e espero que esse não seja o caso do meu esforço. Mas se faço alusão a esses fatos não é para ressaltar qualquer característica de inovação desse texto, mas para mostrar que se trata de um tema de suma importância, que afeta a vida de todos desde tempos imemoriais. Trata-se de um problema humano geral. Certamente o relacionamento do meu amigo possui suas peculiaridades e idiossincrasias. Todavia, como um relacionamento humano e imorredouro, um aspecto coletivo de nossas existências individuais, é possível falar das dificuldades que são comuns a todos nós. Lembro-me vivamente das palavras de Horácio que chocaram a velha Roma sobre o relacionamento entre homens e mulheres. Uma das coisas que disse o poeta foi que nessa relação o homem não é a seta, mas o alvo, pois quando resolve conquistar uma mulher é por que já foi conquistado por ela. Como se pode ver por este exemplo e centenas de outros que poderiam ser elencandos, desde muito antes do Thiago e a Jana se casarem já se escrevia sobre o casamento, mas esse texto é dedicado especialmente a essa união.

Jung certa feita discutiu o matrimônio como um relacionamento psíquico, nessa perspectiva, todo relacionamento psíquico só existe se existir consciência, esse é um pressuposto fundamental. Não pode existir relacionamento psíquico entre dois seres humanos se ambos se acham em estado de inconsciência. Certa feita Jung ao discutir o papel da consciência e o motivo desta tender ampliar-se e aprofundar-se, e por que a natureza se dignou a inventá-la, disse “é porque sem a consciência as coisas vão menos bem”. A liberdade pressupõe sempre a consciência, sem ela não é possível o indivíduo se desviar do instinto e do automatismo inconsciente. Felizmente, a medida da ocorrência da inconsciência total é muito pequena, todavia não é nada desprezível a amplitude das “inconsciências parciais”, e a sua existência também reduz o relacionamento psíquico.

Desde a mais tenra infância quando a consciência emerge das profundezas da vida psíquica, passamos por um processo gradativo de desenvolvimento espiritual que significa ampliação da consciência e que, de uma maneira ou de outra, não cessa enquanto vivermos. Ao falar aqui de consciência convém deixar claro que se trata da consciência do eu, para me tornar consciente preciso me distinguir dos outros, apenas onde existe essa distinção pode haver um relacionamento, infelizmente (ou felizmente) essa distinção permanece repleta de lacunas e vastas regiões de nossa vida psíquica podem permanecer inconscientes. Onde ainda reina a primitiva identidade inconsciente entre sujeito e objeto, do “eu” com os outros, há uma ausência completa de relacionamento.

Na idade em que normalmente o jovem de nossa sociedade se casa, ele já tem uma consciência do eu que vem se aprofundando e se ampliando desde a infância, todavia possui ainda vasta região que permanece nas sombras, inconscientes. A despeito de se considerar plenamente consciente de um ponto de vista subjetivo, o jovem na maioria das vezes age levado por motivos inconscientes. Na prática ele possui um conhecimento insuficiente de seus motivos e dos do outro. Um efeito pragmático dessa inconsciência é que quanto maior for a sua extensão menor será a capacidade de livre escolha no que diz respeito ao casamento. Alguns dos motivos inconscientes mais poderosos são os que se originam da influência dos pais. A ligação inconsciente com os pais dificulta a escolha do consorte, isso devido ao fato de que “em regra, a vida que os pais podiam ter vivido, mas foi impedida por motivos artificiais, é herdada pelos filhos, sob uma forma oposta”. Em termos mais práticos, os motivos inconscientes que limitam a liberdade do indivíduo e cerceiam sua vontade o forçam a tomar um rumo na vida que compense o que os pais não realizaram na própria vida. Jung gostava muito de citar um ditado Suíço de que “filho de pastor e vaca de moleiro nunca dão pra coisa boa”, pois, por exemplo, pais exageradamente moralistas têm filhos sem moral (no caso de o seu desenvolvimento espiritual manter essas lacunas a consciência no que concerne a ligação com os pais).

Outra influência daninha é a inconsciência artificial dos pais. Por exemplo, uma esposa que de modo artificial se mantém inconsciente para não perturbar as aparências de seu casamento e sua tépida harmonia doméstica, mas inconscientemente conserva o filho muito preso a ela quase como um substituto do marido. A influência oculta dos complexos que os pais negligenciaram em si mesmos ou acumularam afeta os filhos, pois a inconsciência produz falta de diferenciação, e na prática isso leva o indivíduo a sempre supor uma estrutura semelhante a sua no outro. Esse ponto é de extrema importância, É essa diferenciação que permite uma ação moral, pois no momento em que alguém se identifica com o elemento coletivo, ele tentará impor a todos os demais as exigências de seu inconsciente, pois esse tipo de identificação acarreta um sentimento de validez geral, nesse caso, ignorará completamente as diferenças da psique individual dos demais, pois uma atitude coletiva pressupõe esta mesma psique coletiva nos outros. A conseqüência disso é um menosprezo implacável diante das diferenças individuais. Ou como dito anteriormente, a ausência de um relacionamento psíquico genuíno.

Um relacionamento pessoal (ou individual), ou seja, que se funda na individualidade das duas pessoas envolvidas e não em sua identificação com o inconsciente e onde impera o traço coletivo, só se torna possível quando se tornar conhecida à natureza das motivações inconscientes e se tiver superado em larga escala a identidade inicial. Um matrimônio raramente ou mesmo nunca se desenvolve sem crises, pois “não é possível tornar-se consciente sem passar por sofrimentos”. A maioria de nós fará de tudo para permanecer inconsciente, para não se confrontar com aquilo que muitas vezes já conhece nos outros, mas desconhece em si mesma, como disse meu amigo Filipe Jesuíno, apenas a dira necessitas ( a atroz necessidade) nos faz trilhar esse vale de lágrimas, e a necessidade de se relacionar de maneira genuína com outro ser humano é um dos motivos que podem nos fazer levar a sério o desafio de nos confrontarmos consigo mesmos. É preciso sublinhar que essa busca por aquilo que Jung chamou de “autoconhecimento” é repleta de percalços, pois o que comumente chamamos de autoconhecimento é um conhecimento muito restrito e dependente de fatores sociais, por isso tropeça em preconceitos afetivos e pretensões ilusórias. O autoconhecimento não é o conhecimento da personalidade consciente do eu, mas sim o conhecimento do fato psíquico real, das motivações inconscientes de que falava há pouco. O eu conhece apenas o seus conteúdos e desconhece o inconsciente e seus respectivos conteúdos.

Campbell afirmou certa vez “o casamento não é um caso de amor, é um ordálio. É uma experiência religiosa, um sacramento, a graça de participar da vida de alguém”. Para Campbell o casamento genuíno é o “casamento alquímico”, onde existe o entrelaçamento das psiques e a educação recíproca que provêm desse relacionamento. Nesse sentido percebemos a possibilidade do casamento, da relação pessoal e consciente, nos levar cada vez mais longe na dura via do autoconhecimento. Para Campbell, se você tem um programa ao se casar, vai logo perceber que ele não funciona na verdade é “uma queda livre a maneira como você lida com cada fato novo que acontece” um casamento bem sucedido é uma vida inovadora a dois, ambos abertos, esqueçam a programação ou o que pensaram que seria antes de casar. Deve existir um senso de responsabilidade para com a outra pessoa, se ele estiver presente o casamento durará. Amor sem um senso de responsabilidade não é amor, “tu és eternamente responsável por aquilo que cativas” ensinou a raposa ao príncipe que veio das estrelas com o coração partido. “dedicar-se a alguém, transformar seu destino em um destino duplo, é tarefa para uma vida”. Essa responsabilidade tem um significado todo especial, ela demanda um sacrifício, esse sacrifício somos nós mesmos, nossos desejos egoístas, isso precisa ser destruído. Na alquimia o processo alquímico que culminava no ouro, ou no lapis, a pedra filosofal, era composto por: fermentação, amalgamação, desintegração e putrefação, só assim ocorre a união. É preciso ter em mente que no casamento você não está se sacrificando à outra pessoa, você está se sacrificando ao relacionamento, que deve ser algo maior do que ambos. Essa união verdadeira depende da compaixão, sem isso não pode haver um matrimônio. Compaixão é “a participação imediata no sofrimento de outrem, a ponto de nos esquecermos de nós mesmos e de nossa própria segurança para fazermos o que é necessário”. Essa é a questão central do casamento “posso me abrir à compaixão?”.

Ao nos casarmos assumimos a tarefa de com o outro e pelo outro olharmos para nós mesmos, vencer empedernidos preconceitos, e caminhar para lançar luz às trevas que habitam em nós e que estão sempre a espreita. Assumimos o lugar que outrora foi de nossos pais, nos tornamos agora papai e mamãe e devemos viver isso em sua plenitude, conseguindo cortar os laços de dependência infantil. E assumimos o risco e a responsabilidade de amar alguém como a nós mesmos, a sofrer com o outro como se sua dor ferisse a nossa própria carne, estamos diante da aventura de nos modificarmos, como os reagentes que se unem e se modificam ao se tocarem. Há algo de mágico e sublime no casamento que nossa sociedade parece não mais enxergar, mas ainda está lá, para aqueles que tiverem os corações e mentes abertos.

Eu demorei mais tempo do que normalmente levaria para escrever esse pequeno mimo ao meu casal de amigos, mas havia algo preso em mim que precisava estar livre para que essas palavras realmente fizessem sentido. Falar do casamento é, sem sombra de dúvida, falar do amor, e por mais que se fale sobre o amor jamais se poderá dizer tudo, pois nada é mais universal na vida humana. Quando pensamos, o fazemos com a cabeça, e algumas pessoas dizem que amamos com o coração, pois eu digo que elas estão todas erradas. Quando somos tomados pelo amor, nós o sentimos em nossa cabeça povoando nossos pensamentos e imaginação, o sentimos em nosso coração, que parece estar tão cheio de algo estranho e sublime que enviar sangue aos órgãos não passa de um detalhe. O amor se manifesta no estômago, ao anteciparmos com um frio na barriga o momento em que vamos ver novamente a pessoa amada, nos olhos quando eles brilham de um jeito que nunca brilharam antes, na pele que parece antecipar o toque de quem se ama, o amor demanda o homem todo! Todo o corpo e toda a alma são capturados por esse sentimento que possui o estranho condão de nos fazer sentir vivos, mais vivos e mais ávidos por vida. Enquanto caminhamos por ruas cinzentas, olhando rostos sem face que passam por nós como espectros, com um buraco no peito e uma cabeça cheia de ideias, movidos unicamente pela fome, pela inércia, ou por algum juízo tolo, não sabemos o que é realmente estar vivos, não até termos nos apaixonados. Nesse momento, o sentido genuíno da vida e do mundo ao nosso redor se manifesta com uma força tão arrebatadora que mesmo o mais brilhante dos céticos, o mais loquaz dos cínicos, o mais empedernido pessimista não poderia nos dissuadir de que o mundo é um lugar maravilhoso, e que a vida vale a pena. Pensar sobre o amor é uma tolice, assim como falar sobre ele sem se deixar tomar pelo enlevo divino que é essa emoção, a mais poderosa que o ser humano pode almejar sentir. Que lamentável passar pela vida sem ter se apaixonado! E que felicidade é perceber que duas almas se uniram irmanadas por esse sentimento, duas almas que almejam mudar o mundo e sem saber já o fizeram ao se apaixonar, ao aumentar o amor que existe nesse nosso mundinho já o tornaram muito melhor. Felicidades meus amigos, obrigado por terem se apaixonado, e sigam vivendo e sentindo da maneira mais intensa possível, nós talvez só vivamos uma vez, e viver sem amor é insuportável.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Sobre a Secretaria de Cultura no segundo Governo de Cid Ferreira Gomes


A cultura nunca foi um tema de grande relevância nos governos dos Ferreiras Gomes, mas, nesse segundo mandato de Cid, tornou-se um tema irrelevante para o governo. No primeiro mandato de Cid, o secretário Alto Filho foi alvo de críticas, mas sua gestão, vista hoje com o necessário distanciamento, foi coerente, com metas e prioridades claras. Alto privilegiou o livro e a leitura, e trouxe para a secretaria muitas inovações nessa área. Alto enfrentou a falta de dinheiro e o descaso do governador, mas o fez com muito mais brio do que o atual secretário.

A indicação do nome de Pinheiro foi vista com bons olhos pela classe artística a princípio, mas o encanto durou pouco. Pinheiro foi vice-governador no primeiro mandato de Cid, sob os auspícios de Luiziane Lins, mas foi um vice-governador de atuação apagada e discreta e que logo se afastou de Luiziane. Os motivos desse afastamento são vários, mas alguns podem ser elencados como de interesse para a compreensão do que está acontecendo hodiernamente na cultura. Pinheiro não estava disposto a fazer a política do PT ou de Luiziane Lins como vice-governador, não bastasse isso, foi um dos petistas que mais rápida e docilmente aderiu ao projeto cidista. Seu silêncio, timidez e subserviência eram bem vistos por Cid, e mal vistos pelo resto do PT. Pinheiro é um militante histórico, que foi um importante intelectual de esquerda, e que fazia a leitura equivocada de que a aliança entre PT e os Ferreiras Gomes havia trazido o PSB e os Gomes para o campo de centro esquerda, uma quimera como se vê hoje. Pinheiro nunca foi um homem carismático ou um agitador, mas acumulou durante seus anos no PT e como sindicalista e professor um admirável capital moral e intelectual que ele transformou em fumaça com sua atuação nos últimos anos.

Como secretário de cultura, presente de grego que lhe foi dado pelo amigo Cid Gomes pelos seus serviços prestados como vice, ele demonstrou as mesmas qualidades de antes: timidez e subserviência. Sua gestão têm se caracterizado desde o início pela indecisão e a descontinuidade. Pinheiro nunca teve músculos eleitorais, e por mais que sua figura pacata e silenciosa tenha lhe trazido alguma simpatia, nunca lhe trouxe votos. Mesmo na primeira vez em que se elegeu como deputado há dois anos, sua votação foi pífia e contestada de maneira desonesta na justiça. Isso foi o bastante para tirá-lo do comando da secretaria e gerar um clima de incerteza e descaso ainda maior. Ocupado em tentar reaver sua vaga de deputado, na justiça ou por quaisquer meios que lhe fossem possíveis, deixou a Secult de lado. Pinheiro não teve autonomia para escolher seu secretário executivo nem sua adjunta, nem teve o traquejo político ou a diplomacia de trazê-los para o seu lado. Ao contrário, seu grupo político fez questão de hostilizá-los o que gerou um desgoverno sem par na secretaria.

Ao assumir, Pinheiro tentou ser leal ao amigo Alto filho e adotou o discurso da continuidade, apenas para em seguida começar a desfazer todo e qualquer avanço obtido por Alto e a afastar todos os membros de sua equipe. Na gestão de Pinheiro não é possível ver qualquer continuidade com relação a de Alto Filho, e tudo o que ele conseguiu a duras penas foi destruído em pouco tempo. O afastamento da equipe de Alto Filho teve um preço caro, pois técnicos competentes foram afastados e em seu lugar pessoas inexperientes ou francamente incompetentes foram trazidas para a secretaria. Essas pessoas passaram a ocupar cargos técnicos sem o devido conhecimento técnico, por razões de conveniência política, o que gerou um sucateamento técnico da Secult. Tantos e tais são os fatos que a incompetência da equipe de Pinheiro é fato consumado e não opinião ou especulação.

Quando as coisas pareciam estar ao menos tranquilas, Cid em malfadada jogada política para tentar submeter o PT aos seus desmandos ordena que Pinheiro se desincompatibilize da secretaria, no que é prontamente atendido. Antônio Carlos assume o seu lugar apenas para renunciar dias depois e, mais uma vez, vemos a Secult ser lançada a incerteza. A insatisfação dos artistas vem crescendo e suas manifestações têm se tornado mais eloquentes, e com justiça. Pinheiro não é diretamente responsável por todas as mazelas da Secult, Cid tem uma enorme parcela de culpa em virtude de seu centralismo e do descaso com que trata a pasta, mas Pinheiro nesse tempo todo tem aquiescido docilmente a tudo o que Cid ordena, como o fez quando vice.

É tamanho o descontentamento que poucos se recordam das promessas de Cid para a cultura, menos ainda dos planos de Pinheiro. Ele prometia um sistema estadual de arquivos públicos, mas esse projeto jaz no esquecimento, não há dinheiro, não há vontade nem competência para fazer tal coisa. Mais uma vez fora da Secult, talvez em definitivo em virtude de inúmeros fatores, entre eles a profunda insatisfação dos artistas, Pinheiro continua demonstrado falta de tato político, e um afastamento cada vez maior do PT. A saída de Pinheiro e o fim de sua desastrada administração dificilmente irá mudar alguma coisa, talvez minimamente, o funcionamento ordinário da secretaria volte a ser mais tranquilo. Os artistas, creio eu, terão de esperar por um novo governo estadual, uma nova mentalidade e um novo projeto de estado, para ver alguma mudança. Cultura não dá voto, pragmaticamente falando, essa é a verdade nua e crua que orienta os Gomes.