Ao refletir sobre a tatuagem e as marcas corporais nos
nossos dias, ou modernidade, pós-modernidade, hipermodernidade, modernidade
líquida (que de tão rápida logo chegará ao estado de vapor) ou como se queira
chamar nosso fugaz presente; não consigo deixar de lado a sensibilidade de
historiador e atentar para a duração. A tatuagem, as escarificações e marcas
corporais não são um fenômeno novo, longe disso, são fenômenos antiquíssimos,
que se perdem na aurora da humanidade e que existiram nas mais diversas
sociedades, entre os mais variados povos e culturas sem necessariamente ter
havido alguma transmissão cultural entre eles.
Não considero lícito, todavia, que se pretenda
simplesmente explicar o presente – ou como quer que se queira adjetivar o tempo
em que vivemos – pelo passado, não é isso que nos ensina Marc Bloch. Pelo velho
método da história metódica do arco hermenêutico, preso aos ídolos das origens,
não se vai longe, na verdade, não se vai à parte alguma. Não se trata disso
aqui, da avelhantada ideia de uma história progressiva. Novamente, como nos
ensina Marc Bloch, a noção de que o passado pode ser objeto da ciência é
absurda. A história, nessa perspectiva, é busca, portanto escolha e seu objeto
são os homens, ou para dizer de modo mais preciso “os homens no tempo”. E o que
a torna uma ciência autêntica é a possibilidade de estabelecer ligações
explicativas entre os fenômenos, uma inteligibilidade. Não é ocioso lembrar
dessas lições de história, mesmo que não se trate aqui de um tratado de
história, longe disso, simplesmente de um escrito que tem como uma de suas
inspirações uma certa sensibilidade histórica. Trata-se, no entanto, de evitar
os abusos tão comuns que são cometidos ao se pensar no passado e ao se apropriar
do discurso do historiador, esse homem de ofício tão cioso de seus métodos.
Se faço um apelo ao “passado” ou a outras culturas que
parecem tão diferentes da nossa – a despeito do denominador comum que atrai o
olhar para elas – não o faço por desprezar o “presente” (seja ele sólido,
líquido ou gasoso), mas justamente pelo motivo oposto, o olhar aqui é
regressivo, vai, metaforicamente, do presente em direção ao passado. Não numa
linha evolutiva do passado em direção ao presente, esta não é a nossa quimera,
temos outras sem dúvida, mas não esta. Se estou interessado na “duração”, no
tempo, que é o plasma em que se engastam os fenômenos e lugar de sua
inteligibilidade, noção que surge dessa sensibilidade histórica, existe
igualmente como uma das linhas de força que atravessam esses escritos uma outra
sensibilidade. Sensibilidade essa que se insinua com mais força, mesmo quando
não é convocada, talvez especialmente quando não é convocada. Uma sensibilidade
que evoca um tempo que escapa a todas as temporalidades da história, seja a
individualidade e intimidade do acontecimento – esse resto desprezível para a
sociologia de Durkheim – seja a longa duração de um Fernand Braudel. Esse tempo
insidioso que teima em se insinuar desde que foi anunciado por Freud. No dizer
de Michel de Certeau, a psicanálise reconhece o passado no presente, enquanto
na história a relação entre o passado e presente se dá colocando um ao lado do
outro. No que concerne à memória, principal matéria prima do historiador, a
psicanálise compreende o esquecimento não como uma passividade ou perda, mas
como uma ação contra o passado, e o que é esquecido retorna no presente, mas
forçado ao disfarce. Onde a historiografia estabelece uma diferença, onde ela
estabelece um corte, uma divisão e hierarquia, esse outro tempo confunde essas
fronteiras entre antes e depois.
Diante dessa dupla sensibilidade é que deve ser
compreendido esse apelo ao passado para se interpelar a temática de que ora
trato nesses escritos, não como vulgar tentativa de compreender os fatos
passados como fatos positivos e objetivos. Há que se lembrar sempre que a
história é imaginação sobre aquilo que já foi imaginado. É preciso estar atento
àquilo que é a fraqueza da ciência historiográfica e, paradoxalmente, sua
fortaleza: ser poética. Resta dizer, antes de começar a dizer propriamente, que
é o presente bem definido que dá início ao processo essencial do ofício do
historiador que seja “compreender o presente pelo passado” ao mesmo tempo em
que “compreende o passado pelo presente”, pois a presa do historiador é a
mudança.
Daí que, o que acrescento ao título, o rito, é justamente
o que falta ao nosso presente líquido que parece estar em vias de nos afogar.
Esse mesmo rito que o passado – lembrando sempre da duplicidade de sensibilidade
que norteia autor desses escritos – dá sobejos exemplos de sua eficácia e
relação com as marcas nos corpos. Mas esse passado que já não podemos ver tão
hierarquizado, retorna sob disfarce e se insinua e se imbrica no presente.
Comecemos então a dizer.
Tendo como bússola de nossa jornada o nosso próprio tempo,
convém analisar alguns dos discursos representativos do pensamento corrente
sobre o tema. Não é debalde iniciar essa análise com aquilo que se diz e pensa
sobre o corpo. Afinal, é um tanto óbvio que a tatuagem e as escarificações e
marcas corporais se fazem no corpo, e que em vista desse fato ele se torna
espaço privilegiado de nossa reflexão, convém, todavia, desconfiar do óbvio. E
é essa desconfiança que leva a uma rápida consideração preliminar – peço
paciência ao leitor pelo aparente excesso de prolegômenos, asseguro que não se
mostrará esforço vão – Jung, ao tratar das dificuldades de se lidar com o
fenômeno psíquico, comparou a posição do psicólogo ao do físico ao lidar com o
fenômeno da luz, que se comporta tanto como partícula quanto onda. A alma,
contudo, é infinitamente mais complexa do que a luz, e sua compreensão repousa
em não apenas um paradoxo, mas vários. Destes, interessa o seguinte: “a psique
depende do corpo e o corpo depende da psique”, para ambas as afirmações existem
tantas e tais provas que um juízo objetivo não poderá se decidir por um ou pelo
outro. De outra feita, o mesmo Jung acerca da mesma temática asseverou:
É certo que as forma psíquicas elementares estão intimamente
ligadas aos processos fisiológicos do corpo, como também não resta a menor
dúvida de que o fator fisiológico
representa pelo menos um dos polos do cosmo psíquico. Muito embora os processos
instintivos e afetivos, bem como toda a sintomatologia neurótica produzida
pelos distúrbios dos mesmos tenham inequivocamente uma base fisiológica, o
fator perturbador prova, por outro lado, que ele tem o poder de converter a
harmonia fisiológica em desordem. (Jung, 1981, p.74).
O que se pode constatar com facilidade é que, hodiernamente,
os juízos objetivos tendem a escolher apenas um dos lados da antinomia, e nosso
tempo, ou para usar a controversa expressão escolhida por Jung para realizar
essa afirmação, nosso Zeitgeist, possui uma preferência sentimental pela
matéria em detrimento do espírito. Logo, boa parte das teses a serem discutidas
aqui sobre o corpo tendem a possuir como pressuposto tácito que: “a psique
depende do corpo”. Tendem a compreender a alma como epifenômeno de causas
materiais, resultante da fisiologia do cérebro, algum quimismo qualquer, ou,
para usar a expressão jocosa do mesmo Jung “algo de saboroso”. Dito isto, e
diremos novamente em breve, passemos ao nosso presente caudaloso.
Francisco Ortega, em artigo denominado Modificações
corporais e bioidentidades, se ocupa em analisar novas formas de sociabilidade
contemporâneas e a formação de identidades culturais, bem como reflexões sobre body modification
na perspectiva da biossociabilidade, que ele define como um conceito que visa
descrever e analisar novas formas de sociabilidade nascidas da interação entre
o capitalismo e a medicina, sendo uma forma de sociabilidade apolítica – se é
que isso é possível – seguindo critérios de saúde e performances corporais,
diferindo fundamentalmente da biopolítica, pois a sexualidade ocupa na
biossociabilidade um plano secundário e o corpo e a comida ocupam o lugar de
fonte de ansiedade e patologia. Ainda segundo ele, o tabu que antes existia
sobre a sexualidade se desloca hodiernamente para o açúcar, a gordura e o
colesterol, numa clara demonstração de que, em sua análise, ele desconhece o
que seja um tabu. Não que não existissem tabus alimentares, uma rápida olhada
na cozinha Kosher judia e suas inúmeras proibições (não se pode comer porco,
não se pode misturar carne e leite, é preciso até mesmo esperar um período
superior a seis horas antes de ingerir leite após comer carne, o sangue da
carne não pode ser ingerido e mais mil etcs), ao se observar esses tabus, é
fácil perceber que o tabu do açúcar proposto por ele é, no mínimo, estranho.
Ele fala ainda sobre bioacesses (eu desconheço qualquer método ascético
tradicional que não envolva o corpo) que levam a um sujeito que se
autocontrola, autovigia e autogoverna, nesse sentido, me parece que ele também
utiliza o termo ascese de uma maneira bastante peculiar. A base da bioascese é
uma compreensão do self como um projeto reflexivo, sendo a reflexividade um
processo de peritagem sobre nós mesmo e que resulta na constituição de um
indivíduo responsável que orienta as suas escolhas comportamentais e estilo de
vida para a procura da saúde e corpo perfeito e o desvio dos riscos. Alguém
deveria informar isso urgentemente aos donos do McDonalds.
Para Ortega as modificações corporais constituem um
fenômeno sui generis de tentativa de personalização do corpo, o que me soa
estranho visto eu sempre ter considerado, meu rosto, por exemplo, algo bastante
pessoal... Mas prosseguindo na argumentação do autor em questão, por um lado
essas modificações parecem seguir o esquema das biossociabilidades, por outro,
parecem querer “recuperar uma dimensão do vivido corporal”. Por body modification
o autor compreende as mais variadas práticas: tatuagens, piercings, brandings, cutting, e até mesmo o fitness e o body building, a anorexia
e o jejum. Ortega analisa duas correntes de interpretação sobre o tema, das
quais discorda. A primeira considera essas práticas como um elemento do mundo
da moda e da sociedade de consumo e do espetáculo. A segunda abordagem
considera essas práticas como patologias, um problema de saúde mental, que
iguala o discurso das modificações corporais ao da automutilação, se
constituindo num discurso moralista. Ele considera as duas abordagens
reducionistas, a leitura dele está em acordo com a centralidade do corpo, das
bioasceses e das bioidentidades na contemporaneidade. Sua tese é a de que a
fragilidade do laço social, a ausência de vínculos simbólicos e rituais
coletivos levam os indivíduos a se retrair sobre os seus corpos e os
transformarem em universos em miniaturas, diante de tantas contingências essas
práticas forneceriam uma ilusão de estabilidade cultural e social. Ele vai mais
longe, e sugere que a desvalorização da experiência subjetiva do “corpo que eu
sou” e o privilégio do “corpo que tenho” mediante as modificações corporais
pode ser entendida como uma tentativa de passar de um corpo que é objeto da
biomedicina para um corpo sujeito da sensação, de experiência, e do mundo.
Henri-Pierre Jeudy, em seu Corpo como Objeto de Arte, se
ocupa, entre outras coisas, da pergunta sobre “o que pode o corpo?” e não sem
certa lucidez constata que o corpo se constitui em um objeto privilegiado do
discurso, e sobre o exibicionismo das metalinguagens que incessantemente
anunciam o que ele é ou o que virá a ser, todavia essa massa de discursos
jamais esgota seu objeto, que “parece apto a se esconder indefinidamente”. Nesse sentido, sua pergunta “o que pode o
corpo?” queda sem resposta, como se as palavras utilizadas para exibi-lo
perdessem todo o seu poder sobre ele. O jogo de sombras entre imagem e
representação segue implacável, a arte se converte em um viveiro a engendrar
equivalência e banalidade. O excesso de conceitos e a saturação de linguagens
acarreta o enfraquecimento da singularidade da criação artística.
Paradoxalmente, a heterologia cultural surge como um efeito da esteriotipia
cultural e o corpo se mantendo como fonte de todas as ilusões garante o futuro
dos estereótipos. Ele prossegue constatando que o objeto da criação artística
não é mais a busca pela beleza, mas sim a irrupção das fantasias coletivas. Ao
analisar performances que se utilizam da desconstrução do corpo ou de sua
exibição para a irrupção de fantasias, ele se aproxima da temática das
modificações do corpo, analisando a ideia que se torna comum de que se pode fazer
o que se quer com o corpo, em negação a fatalidade do congênito. Jeudy resvala
em questionamentos dos mais interessantes ao meditar sobre a cirurgia plástica
através de paralelos com a performance e a literatura e se pergunta se a
cirurgia estética não seria senão um meio de se descobrir o seu “Outro”. O
fracasso do belo na arte se dá também em virtude do corpo e de sua
organicidade, o que o invólucro do corpo esconde a body art procura
desvelar, a beleza não é senão ilusão, a transcendência se esvai diante da
brutal organicidade do corpo.
Maria Rita Kehl, em artigo intitulado As Máquinas
Falantes, se propõe discutir não o corpo bioquímico ou o corpo psicológico, mas
sim o corpo como objeto social. Diante da dualidade que ela identifica no
ocidente, entre corpo e alma, ou entre ser um corpo, ou o que parece mais em
voga em nossos dias, ter um corpo, afirma o corpo próprio como “o corpo do
outro”. Ao invés de ser propriedade privada, ele nos pertence muito menos do
que costumeiramente imaginamos. O corpo pertence ao universo simbólico que
habitamos, pertence ao Outro da linguagem. Ele é formatado pela linguagem e
depende do lugar social que lhe é atribuído para se constituir. Ela teoriza que
os corpos se modificam por efeito do que se diz sobre eles e do novo lugar
social que isso engendra. Um corpo investido de um novo discurso corresponde a
outro eu. Kehl faz uma comparação um
tanto temerária do ponto de vista psicanalítico, um tanto avesso à antropologia
(e vice versa), e se baseia nos estudos de Lévi-Strauss para tentar compreender
melhor a “estreita dependência entre o corpo, o Eu e o Outro”. Ao analisar um jovem candidato a xamã do
norte do Canadá, o antropólogo se depara com a surpresa do jovem ao perceber
que os truques do farsante, caso sejam legitimados pela comunidade, tem poder
de cura e até mais poder do que um xamã genuíno que tenha perdido a
credibilidade. O xamã, mesmo o farsante, promove a cura ao organizar a
experiência de exceção que é estar doente, sua narrativa mítica oferece sentido
ao que é singular, solitário e informulável. No texto seguinte, “A eficácia
simbólica” o antropólogo analisa a cura de uma mulher com dificuldades de parto
por um xamã a partir de uma narrativa mítica em que ele atualiza o mito da
concepção. O mito tem o efeito de tornar aceitáveis para o espírito da doente
as dores que o corpo se recusa a tolerar. Simbolizada a dor se torna tolerável,
desde que acredite no xamã. A análise feita pela autora é interessante e digna
de nota. Lévi-Strauss compara à eficácia do xamanismo a eficácia da cura pela
palavra da psicanálise, ressaltando uma sutil diferença: na psicanálise a
palavra tem outra origem, não a palavra proferida pelo analista, mas aquela
proferida pelo analisando. Ao analisar a transferência, e compará-la a aceitação
do xamã por sua comunidade, eu creio que ela vai longe demais e erra o alvo, a
psicanálise não é nem pode ser cura por sugestão. Acerta, todavia, em minha
opinião, ao asseverar que o desaparecimento dos sintomas físicos que ocorre
quando o neurótico consegue colocar em palavras endereçadas ao analista algo
que represente o informulável do seu desejo, e dessa formulação deduz a
estreita relação entre o corpo, a linguagem e o Outro.
Em outra perspectiva, não tão distante assim das duas
últimas apresentadas anteriormente, e bem menos recente, (e receio, bem mais
sólida do que parece ser o gosto atual) Jung ao analisar o que é um corpo vivo,
em seu artigo Espírito e Vida, afirma que a Psique é constituída essencialmente
de imagens, não como uma mera justaposição, ou uma sucessão, mas uma estrutura
riquíssima de sentido e uma objetivação das atividades vitais. Jung pensa de
maneira antinômica, pois assim como a matéria corporal precisa da psique para
ser capaz de viver, a psique pressupõe um corpo para que suas imagens possam
viver.
A alma e o corpo são presumivelmente um par de opostos e,
como tais, são a expressão de uma só
entidade cuja natureza não se pode conhecer nem a partir das manifestações
materiais exteriores nem através das percepções interiores e diretas. Como
sabemos, segundo uma antiga crença, o homem surge do concurso de uma alma com
um corpo. Mais correto seria falar de um ser vivo desconhecido sobre cuja
natureza íntima o máximo que podemos dizer é que ela expressa vagamente a
quintessência da vida. (Jung, 1986, pp. 267, 268).
Na perspectiva de Jung, vivemos sob o peso de uma
reviravolta de cunho irracional, ou para usar seus termos, uma enantiodromia,
que solapou a cultura e os símbolos europeus, quando aconteceu a passagem
aparentemente brusca, de uma preferência sentimental e universal de cunho
irracional pelo espírito para a sua atitude oposta, uma preferência de cunho
sentimental universal e irracional pela matéria. A matéria, todavia, assim como
o espírito, nos é algo absolutamente desconhecido, pois vivemos imediatamente
apenas num mundo de imagens. A única realidade imediata é a realidade da alma e
sua complexa e rica estrutura de representações. A realidade da matéria como
dado objetivo, apesar de ser um pressuposto tácito de boa parte do discurso
contemporâneo, assim como a irrealidade do espírito, são ambos discursos
metafísicos. A maioria das coisas que se fala hodiernamente sobre o corpo, não
passa, fundamentalmente, de metafísica da matéria numa perspectiva Junguiana.
Jung não se propõe a reinventar a roda, entretanto, sua teorização –
fundamentalmente prática e empírica – Possui uma clara base kantiana. Essa
reviravolta significa que tudo o que extramundano se converte em realidade
imediata, e todo o valor se fundamenta na pretensa realidade dos fatos. O que
não se permite enxergar é que ambos os pontos de vista (material e espiritual)
são igualmente lógicos, igualmente metafísicos, igualmente arbitrários e
igualmente simbólicos.
Joseph Campbell, em seu primeiro volume das Máscaras de
Deus, dedicado à mitologia primitiva descreve os ritos de passagens dos
aborígenes australianos. Os jovens são removidos da cabana das mulheres por
homens mascarados enquanto um dos homens utiliza um objeto especial para fazer
um barulho aterrador. As mulheres dizem que o pai serpente consegue farejar o
prepúcio dos jovens e eles são por fim levados pelos homens mascarados, para
longe de suas mães, avós e irmãs. Por um bom tempo eles são alimentados apenas
com o sangue dos homens da tribo e, em dado momento são colocados num local em
separado, próximo a uma clareira onde está acontecendo um ritual e são
instruídos a não olhar, aqueles que o fazem são mortos. Em seguida, como parte
do ritual que os tornará homens, eles são circuncidados e depois é feito uma
subincisão em seus pênis, que deve sangrar profusamente, os homens que realizam
o ritual também reabrem suas subincisões e mostram que podem sangrar como as
mulheres. Todo o conhecimento cosmológico da tribo, seus espíritos e divindades
são encenados diante dos jovens e, quando o ritual termina eles são homens, a
filha do homem que os circuncidou será sua esposa e eles terão seus papéis
sociais definidos na tribo. Segundo o próprio Campbell, sua adolescência dura
apenas enquanto dura o ritual, o momento de confusão e indecisão quando já não
são mais meninos, nem tão poucos homens. Depois não resta dúvida, o ritual que
marca seus corpos também marca as suas almas provocando a metanóia necessária a
transformação de um menino em um homem.
Reparem que nesse, como em diversos outros rituais do
mesmo tipo, o papel que a mulher desempenha concretamente no ritual é quase
nulo, irrelevante, mas a transformação dos garotos em homens está centrada no
simbolismo da mulher. É das mulheres que eles são separados, e assim como as
mulheres sofrem ao dar a luz os jovens precisam mostrar que também são capazes
de suportar a dor, assim como as mulheres sangram – e para muitas culturas
primitivas esse fato é visto com temor e reverência – eles também devem sangrar
através de suas subincisões, vaginas simbólicas em seus pênis. Entre os judeus,
onde também se procura exorcizar a magia feminina e seu poder sobre a psique
masculina de muitas e muitas formas, uma mulher é considerada impura quando
está em seu período menstrual, e mesmo os objetos que ela toca não podem ser
tocados pelos homens, sob pena de se tornarem igualmente impuros. Assim como os
aborígenes, o povo judeu pratica a circuncisão no ritual do Brit Milá, no
oitavo dia de nascido dos garotos o Mohel remove seus prepúcios (apenas homens
podem oficiar esse ritual), o que os marca e os distingue como membros de uma
comunidade específica o povo de Israel e nesse dia recebem seus nomes, ocorre
seu segundo nascimento.
Mircea Eliade, em seu Xamanismo, nos fornece outros
exemplos de iniciações, desta feita, não de jovens que se tornarão homens, mas
de homens que através de suas iniciações se tornam os guardiões vivos do
espírito de seus povos. Entre os yurak-samoiedos, a aprendizagem do ofício de
xamã se inicia com o tamborim, e nesse momento os espíritos descendem sobre
ele. Segundo relato do xamã Ganykka, enquanto ele tocava tambor os espíritos
desceram sobre ele e o fizeram em pedaços, cortando inclusive suas mãos, e
durante sete dias e sete noites permaneceu inconsciente, enquanto isso sua alma
vagava na companhia dos espíritos. Temos aqui a imagem do corpo despedaçado,
cortado em pedaços e da alma sequestrada pelos espíritos.
Em outra narrativa, de xamãs de avamsamoiedos, esse xamã,
atacado de varicela, foi quase dado como morto, durante esse período de quase
morte aconteceu sua iniciação, nesse período ele narra ter sido levado até um
grande mar, e lá ouviu a voz da doença (a varicela que o acometia) que lhe
dizia que ele se tornaria um xamã pelas graças do senhor das águas, depois ele
escalou uma montanha onde encontrou uma mulher nua e começou a mamar em seu
peito, em seguida o marido dessa mulher, o senhor do inferno, lhe deu dois
guias animais para levá-lo ao inferno e lá encontrou sete tendas com os tetos
rasgados ao entrar na primeira encontrou os habitantes do inferno e os homens
da grande doença que arrancaram seu coração e o jogaram em uma panela. Após
inúmeras outras peripécias e visões aterradoras e beatíficas, o candidato a
xamã chegou a um deserto lá ele encontrou um homem nu trabalhando com um fole.
No fogo havia uma panela do “tamanho da metade da terra”, o tal homem o viu e o
agarrou com uma enorme tenaz, “estou morto” pensou o candidato a xamã. O homem
cortou-lhe a cabeça, retalho-o em pedaços e colocou tudo no caldeirão. Cozinhou
tudo durante três anos. Havia três bigornas e o homem nu forjou sua cabeça na
terceira, e depois jogou a cabeça na terceira panela que lá havia, cuja água
era mais fria. O ferreiro recolheu-lhe os ossos, que boiavam num rio, montou-os
e os cobriu de carne. Após contar os ossos disse-lhe que havia três peças a
mais, logo deveria arrumar três vestes de xamã, trocou seus olhos, furou suas
orelhas tornando-o capaz de compreender a linguagem das plantas.
A riqueza de detalhes dessa narrativa iniciática se
coaduna e é coerente com um sistema ritual e simbólico bem conhecido na
história das religiões: o tema universal da morte e da ressurreição mística do
candidato por intermédio de uma descida ao inferno e uma ascensão aos céus.
Outros relatos de xamã, como os siberianos, são mais sucintos: o candidato a
xamã permanece desacordado por vários dias e sonha que é cortado em pedaços
pelos espíritos e depois levado ao céu e ao inferno.
O xamã tungue Ivan Tcholko relata que o futuro xamã deve
ficar doente, ter o corpo cortado em pedaços e ter seu sangue bebido por maus
espíritos, que na verdade são na realidade as almas dos xamãs mortos (vemos
novamente o ritual de beber sangue, como entre a iniciação dos jovens
aborígenes). Jogam sua cabeça num caldeirão onde é forjada com outras peças
metálicas que farão parte de suas vestes cerimoniais. As mesmas experiências
são observadas em outros lugares, uma mulher teleuta tornou-se xamã após ter
tido uma visão em que homens desconhecidos lhe cortavam o corpo em pedaços e
cozinhavam-nos numa panela. Entre os xamãs altaicos, reza a tradição que os
espíritos dos ancestrais comem suas carnes, bebem seu sangue, abrem seus
ventres etc. os xamãs esquimós também conhecem a experiência extática do
despedaçamento do corpo seguido da renovação dos órgãos. Eles falam de um
animal que fere o candidato a xamã, despedaça-o ou devora-o e depois cresce
carne nova em seus ossos. Não raro o animal que tortura o futuro xamã torna-se
seu espírito auxiliar. Muitos dos xamãs esquimós, ao procurarem a iniciação
passam pela experiência mística de morte e ressurreição provocada pela
contemplação de seu próprio esqueleto. Em toda a parte, seja a experiência
extática de sonhos e visões, seja nos rituais, o esquema da iniciação segue
esses passos morte (que pode ser antecedida por uma crise nervosa, doença,
acidentes, ferimentos, luta com animais ferozes), descida aos infernos,
ascensão às regiões superiores e por fim a ressurreição.
Em todos os processos iniciatórios descritos até agora,
centenas mais poderiam ser elencados, os deuses e espíritos desempenha um papel
fundamental, Campbell assim define os deuses.
(...) os deuses representam as forças protetoras que sustem o
indivíduo em seu campo de ação. Ao contemplar as divindades, esse indivíduo
ganha uma espécie de força estabilizadora que o coloca, por assim dizer, no
papel representado por uma das divindades particular. (Campbell, 2008, p.17).
Na perspectiva de Campbell, mito não é o mesmo que
história, o mito é o transcendente na relação com o presente. O mito
proporciona um campo em que você pode se situar, como os exemplos anteriores
demonstram de maneira dramática! O que o mito faz é apontar o transcendente além
do terreno dos fenômenos. Uma figura mítica é como um compasso, com uma ponta
na esfera do tempo e a outra na eternidade. A imagem dos deuses, ou dos
espíritos, xamãs ou heróis, podem assumir forma humana ou animal, como vimos,
mas sua referência transcende a isso. O mito não é uma alegoria, não funciona
verdadeiramente de forma denotativa, um mito genuíno aponta para algo
indescritível que está além de si mesmo. Quando alguém possui uma divindade
como modelo, sua vida se torna transparente ao transcendente.
Segundo Campbell, o xamã é aquele que passou por uma crise
psicológica e se recuperou. Um xamã mais velho dá ao jovem candidato a xamã as
instruções que o ajudarão a escapar dessa situação difícil. A iniciação inclui
a representação de certos ritos psicológicos que permitem ao futuro xamã
retornar ao contato uma vez mais, passando a ser capaz de cantar seu próprio
canto. Ele descobre o sentido transcendente e anagógico de seus sonhos e
visões, e o destino que elas encerram. Ao mergulhar em seu próprio inconsciente
o que esse indivíduo encontra é o inconsciente de toda a sociedade ao qual
pertence – nas sociedades primitivas as pessoas estão atadas a um horizonte
estreito e compartilham um sistema limitado de problemas psicológicos – dessa
forma, o xamã se converte num professor e guardião da tradição mítica, torna-se
assim isolado e temido, pois adquire aquilo que Jung chamou de prestígio
mágico, torna-se uma “personalidade mana”. Não é fácil ser um xamã, tão pouco é
uma posição invejada ou desejada pelos demais.
A maneira como atua o xamã, e a maneira como atua a
iniciação é a maneira como o mito atua. Campbell considerava que o mito podia
desempenhar quatro funções, chamadas por ele de: mística, cosmológica,
sociológica e psicológica. Os símbolos míticos proporcionam um sentido de
efetiva participação na transcendência, esses símbolos possuem a função de
auxiliar o indivíduo a atravessar vários estágios e crises da vida de maneira
significativa, isto é, a compreender a vida de maneira íntegra. A metáfora
religiosa nos coloca em harmonia com nossa cultura, consigo mesmo, com o universo
e com o mysterium tremedum da existência. A primeira
função de uma mitologia viva e atuante é conciliar a consciência com as
precondições de sua própria existência. A vida é algo bastante horrendo, um
ciclo sem fim de morte e sofrimento, e vida está constantemente se alimentando
de vida. A primeira função de uma ordem mítica é reconciliar a consciência com
esse fato. A segunda função consiste em apresentar uma imagem coerente do
cosmos, uma imagem que conserve e induza uma sensação de assombro. A terceira
função de uma ordem mitológica é validar e preservar um dado sistema
sociológico. Uma iniciação não tem qualquer sentido se o segundo nascimento que
ela proporciona não permitir a adaptação a uma dada sociedade. Quando há uma
ordem mítica vigente, viva e energizada pelo poder de suas metáforas, as leis
da sociedade em que ela atua têm a mesma autenticidade das leis do universo. Por
fim chegamos a quarta função apontada por Campbell.
O mito deve fazer o indivíduo atravessar as etapas da vida,
do nascimento à maturidade, depois à senilidade e à morte. A mitologia deve
fazê-lo em comum acordo com a ordem social do grupo desse indivíduo, em comum
acordo com o cosmos – conforme o grupo o defina – e em comum acordo com o
mistério estupendo. (Campbell, 2008, p.37).
O xamã, ao atender ao seu próprio canto, as imagens
visionárias que os acometem se tornam centrados, e garantem paz a si mesmos
quando entoam canções e executam ritos. O que é um rito? Todos nós deveríamos
saber, pois mesmo em nossa sociedade fluida vivemos em meio a muitos deles,
seja o batismo, o casamento, a comunhão, a primeira eucaristia, o Bar Mitzvah,
o Brit Milá, todos são ritos que, infelizmente, para a maioria, degeneraram em
formalidade vazia e sem sentido. O ritual é simplesmente a representação do
mito. É a repetição do mito vezes sem conta que torna o indivíduo transparente
ao transcendente. É assim que o mito funciona.
Chegamos assim a uma encruzilhada, falei antes que
justamente o que nos faltava era o rito. No título desse ensaio, logo depois de
rito há reticências, pois sem mito não há rito, ou talvez, apenas formalidade
vazia de sentido e de efetiva atuação. Todavia, mesmo em nossos dias, ainda há
aqueles que decoram seus corpos com tatuagens, ou que o escarificam ou o marcam
de maneira permanente. Essas práticas não possuem – ou apenas algumas como o
Brit Milá – relação de causalidade com essas práticas ancestrais que utilizei
como exemplos e amplificação, todavia
elas possuem uma conexão, e aqui as palavras de Certou de inspiração psicanalítica
adquirem seu sentido devido, aqui vemos como o passado ressurge no presente sob
disfarce. Aqui não há nada de líquido, mas assim como a experiência do xamã, de
ser reduzido aos ossos, aquilo que há de indestrutível e adamantino em seus
corpos e almas, nos deparamos com algo sólido como rocha, onde as águas do
presente se quebram incapazes de mover ou desgastar essa rocha que se eleva
sobre as ondas, impassível, pois já viu quebrar águas de eras sem fim desde que
o homem adquiriu a maior das maravilhas cósmicas: a consciência. Me parece, que
existe uma conexão entre os ritos primitivos, as marcas escarificações e
tatuagem utilizadas nos brutais ritos de passagem e as tatuagens e marcas
corporais dos nossos dias, entretanto essa conexão não é causal, mas uma
conexão pela raiz, irracional e psíquica (Jung, 1981).
Nossa espécie possui uma característica que a faz
diferente dos outros mamíferos, nascemos muito cedo, e passamos por um período
de dependência com relação aos nossos pais muito longo, que dura por volta de
doze anos, durante esse período somos incapazes de cuidar de nós mesmos. Devemos, em determinado ponto de nossas
existências, passar desse estado de dependência a um estado de independência
com relação aos nossos pais. Isso certamente leva a uma crise, ao menos para a
maioria, essa transformação nesse momento de crise é um problema recorrente em
todas as sociedades. A psique do adulto jovem deve abandonar o padrão de
dependência e adotar o padrão adulto de responsabilidade. Em todas as sociedades
essa transformação é alvo de grande preocupação e é justamente para esse
momento que servem os ritos de iniciação das sociedades primitivas (Campbell,
2008).
O “pai”, psicologicamente falando, faz às vezes de
educador do espírito, ele transmite as regras e anseios da sociedade e
representa e informa a criança o papel que o adulto deve assumir. Esse é um
tema que ressurge incontáveis vezes nos mitos das mais variadas culturas: a mãe
gera o corpo físico, o pai o ser espiritual. O que a sociedade requer de nós é
que sejamos capazes de assumir responsabilidades de imediato, sem nos
corrigirmos. Espera-se que não voltemos correndo ao papai e a mamãe, mas que
nos tornemos papai e mamãe. Alguém que está dividida entre as duas atitudes –
de dependência e de responsabilidade – é ambivalente e neurótica e só será
genuinamente um adulto quando conseguir enfrentar os desafios sem voltar
correndo, internamente, para os pais. A função dos ritos de puberdade nas
culturas mais antigas era pôr em prática essa transformação psicológica, que
torna o individuo capaz de assumir responsabilidades. Eles serviam para nos
acordar, para despertar para a vida adulta e deixar a infância para trás. O
ritual garante essa Metanóia através da transferência das imagens anteriores de
pai e mãe para as imagens ancestrais da tribo. Quando o ritual termina, o
garoto não é mais um menino, seu corpo e sua psique mudaram. Ele se alimentou
do sangue dos homens da sua tribo, foi banhado no sangue desses homens, seu
corpo foi marcado de forma indelével. Depois ele é enviado de volta a para
junto das meninas, lá lhe aguarda a sua futura esposa, filha do homem que o
circuncidou, ele não tem escolha. Nas sociedade de cultura tradicional a
maturidade é conditio sine qua non
viver dentro das fronteiras da cultura. O indivíduo se torna o veículo da ordem
moral, ele se torna a própria ordem moral. Essas sociedades enfrentam problemas
de sobrevivência em confronto com a natureza que a própria existência da
sociedade depende dessa transformação. O indivíduo deve ser iniciado de tal
maneira na ordem social que suas reações espontâneas estejam de acordo com as
necessidades da sociedade (Campbell, 2008).
Em nossa sociedade contemporânea podemos nos dar ao luxo
de sermos inadaptados. Além disso, a exigência que se faz as nossas crianças é
outra bem diferente, a de que se tornam indivíduos, que desenvolva uma
personalidade individual e não simplesmente que se transforme num papel social.
Estamos imersos até o pescoço no que alguns chamam de “paradoxo da pós-modernidade”.
Nos ritos de puberdade se expressa uma premente
necessidade de separar os jovens de suas mães, depois de findo o rito eles
passam a conviver com os homens na cabana dos guerreiros, em algumas sociedades
primitivas, o jovem recentemente iniciado na vida adulta tem relações sexuais
com a mãe logo após os rituais, para comprovar que aquela não é mais sua mãe,
seu corpo não é o mesmo que recebeu dela ao nascer e seu espírito não é mais o
mesmo, ele renasceu no seio da tradição de seu povo. Há entre os povos
primitivos um temor do poder feminino, que é aplacado de várias maneiras. Mesmo
em sociedades mais sofisticadas, como as sociedades mulçumanas, por exemplo,
ainda ouvimos claramente os ecos desse temor ancestral. Heinmirich Zimmer,
grande orientalista e estudioso da arte e literatura indiana, ao se referir aos
mistérios da tradição do subcontinente indiano disse.
Só a Deusa conhecia aquela energia secreta e onimovente dos
mundos, que levou os deuses à segunda vitória; era o poder que possuíam, do
qual não tinham consciência. Eles achavam que eram fortes por si mesmos, mas
sem essa força, ou contra ela, mal poderiam vergar uma folha de grama. A deusa
conhecia a força universal, que os sacerdotes védicos chamam de brahman e que
os hindus chamam de sakti, pois sakti, ou seja, a energia, é a essência e nome
da própria Grande Deusa, e por isso ela podia explicar a misteriosa essência
para os seres, ela podia ensinar-lhes esse segredo – pois era o próprio segredo
(Zimmer, apud Campbell, 2003, p.218).
Campbell citou Zimmer no início de uma de suas memoráveis
palestras para falar desse poder feminino ao qual todos os ritos iniciáticos
parecem servir de ritual apotropáico, de defesa e proteção, contra a mãe ogro,
o espírito que é ao mesmo tempo fonte de todas as coisas e morte e aniquilação
do mundo criado. No mito japonês, Izanagi que junto de seu irmão e esposo
Izanami criou o mundo é, paradoxalmente, o espírito da morte que habita as
profundezas do reino de Yomi, o mundo subterrâneo. Na perspectiva indiana, todo
o poder, sakti ou brahman, é feminino, por isso o feminino representa a
totalidade do poder, e o masculino é apenas um agente do poder feminino. No
hinduísmo – bem como no xintoísmo japonês – o sol é feminino e a lua é
masculina. No hiduísmo, a lua (shiva) nasce do sol e morre nela todos os meses,
Parvati, a consorte do grande deus shiva é o poder solar. Em alto alemão, o sol
die Sonnen, é feminino, num eco distante dessa ordem mítica que
apresento aqui. Na simbólica egípcia, o céu é feminino. Na imagem egípcia do
faraó em seu trono, o trono é a fonte de todo o seu poder e autoridade, o trono
é a deusa Ísis. Campbell compara essa imagem ao simbolismo cristão do menino
Jesus representado no colo da virgem Maria, assim como o faraó no trono, ela é
o seu poder, o deus governa o mundo, mas ela está sempre por trás dele.
Na velha Hélade também se pode ouvir os ecos desse poder
nas palavras enigmáticas de Heráclito. ψυχηισιν θάνατος ΰδωρ γενέσθαι, ΰδατι δε
θάνατος γην γενέσθαι, εκ γης υδωρ γίνεται εξ ΰδατος δε ψυχή. “É mortal para a
alma se tornar água, e é mortal para a água se tornar terra, água vem à
existência saindo da terra e almas saídas da água”. Spengler certa vez disse “O
homem faz a história, A mulher é a história”. Na perspectiva Junguiana, “o
princípio básico do inconsciente é o Eterno Feminino”.
O poder masculino surge com os semitas e árias
indo-europeus. Campbell, ao analisar praticamente todas as mitologias
existentes chega a uma conclusão das mais interessantes sobre o lugar do
feminino: onde a agricultura é o principal sustento, há poderes terrenos e
deusas. Onde a caça predomina é a justificativa masculina que justifica a
matança de animais. De modo simples, de toda a complexidade dos mitos de todas
as épocas, Campbell articula que o “masculino” é igual à ordem social, o “feminino”
a ordem natural. A “mulher” é a vida, a totalidade, na perspectiva simbólica a
função do homem é agir, a função da mulher é existir. Segundo Zimmer, a mulher
no simbolismo da mitologia representa a totalidade do que pode ser conhecido e
o herói é aquele que passa a conhecer. Na mitologia sumeriana, Marduk para
criar o mundo despedaça a deusa dragão Tiamat, que representa o oceano
primordial fonte de toda a criação, e com seus pedaços ele recria o mundo a sua
imagem. No mito de Perseu (que analisei em outro estudo) o herói só consegue
cumprir o seu destino e desposar uma jovem princesa após decapitar a pavorosa
medusa – paradoxalmente do pescoço da medusa, a face da morte, nasce o pégaso e
o gigante Crisaor, morte e criação novamente unidas no símbolo mítico. O herói
russo Ivan cumpre seu destino após subjugar a bruxa Baba Yaga, mesmo na moderna
psicanálise lacaniana, o papel da assim chamada “mãe fálica” pode ser crucial
para o destino de seu filho.
Na perspectiva mítica o homem precisa fazer, e para tanto,
precisa desligar-se da mãe e encontrar um modo de “fazer” – pode ser o seu modo
individual ou o modo da tribo – o que normalmente é algo doloroso, a mulher só
precisa existir. Os rapazinhos precisam ser transformados em homens, de
maneiras cruéis e chocantes. A menina ao chegar à puberdade percebe com clareza
que seu corpo não lhe pertence, a natureza se encarrega através de seus meios
misteriosos e maravilhosos de transforma-la numa jovem mulher, pronta para dar
a luz a uma nova vida, o que mesmo em nossa sociedade líquida e cínica, é um
milagre e tanto. O que não significa que a menina não sente medo e insegurança
nessa passagem, e que sua atitude também pode ser ambivalente. Como no
delicioso conto de fadas da princesa e o sapo, onde todas as imagens majestosas
da jornada interior estão representadas de maneira singela.
O que todas essas histórias e ritos representam é um drama
anímico, toda criança apresenta uma ligação inconsciente com os pais, um estado
primitivo de indiferenciação. Esse estado primitivo de identidade inconsciente,
em virtude de sua inconsciência apresenta uma enorme inércia e é capaz de se
opor ferrenhamente a qualquer desenvolvimento espiritual mais elevado. No ocidente,
a igreja representava o substitutivo espiritual mais elevado a essa ligação com
os pais, sendo capaz de libertar o indivíduo dessa inércia inconsciente. Os rituais
iniciáticos e seus simbolismos proveem aos jovens dessas tribos primitivas
novos relacionamentos que os libertam dessa relação com as figuras parentais e
isso permite que se desenvolvam plenamente como adultos. Jung afirmou certa
feita que “Não há uma única forma de tragédia humana que não provenha realmente
desta luta do eu contra o inconsciente” vemos a verdade dessa afirmação de
maneira eloquente em tudo o que foi exposto.