segunda-feira, 25 de junho de 2012

Sobre a genialidade e a loucura


Há algum tempo que desejo escrever algo sobre esse tema, recentemente encontrei o tempo e a motivação necessários para iniciar tal empreitada. Creio que é interessante iniciar por alguns equívocos bem intencionados que povoam as ideias dos leigos em psicologia acerca do par apontado no título: a genialidade e a loucura. Um dos equívocos que parece imperar no senso comum é que não há diferença entre ambos, que são uma só e a mesma coisa, mas isso é falaz. Outro equívoco aparentado a esse é a de que a loucura não existe, seria simplesmente uma percepção social com relação a comportamentos que fogem a norma coletiva, ou nada mais que uma forma de controle social ou mesmo um mal entendido em virtude do parentesco entre o gênio e o louco, existiria algo de visionário na loucura que impediria o homem médio de compreendê-la pelo que realmente é. Novamente estamos diante de uma estultice. Estas concepções que povoam o imaginário popular acerca da loucura, do gênio, e devo acrescentar, da criação artística, não correspondem a realidade dos fatos. Há ainda uma posição supostamente científica, que sustenta que a criatividade, a criação artística e a loucura são a mesma coisa, aqui há igualmente um erro.

Jung certa feita ao discutir sobre cosmovisão se perguntava se a Psicanálise de Freud acrescentava algo a nossa cosmovisão, sua doutrina dogmática filha do avelhantado materialismo do século XIX não trazia nada de novo, todavia a psicanálise de casos reais de pessoas que padeciam dos males da alma, isso sim deveria acrescentar algo de novo a maneira como percebemos o mundo. Freud anunciou algo de suma importância: não somos senhores em nossa própria casa, mas a propensão de irracional de cunho sentimental de nosso Zeitgeist moderno de preferir a matéria, ou a metafísica da matéria como preferia Jung ao desnudar de suas quimeras e preconceitos afetivos essa concepção, logo trataram de transformar a “peste” de Freud em algo inócuo. Os casos dramáticos de pessoas que se submeteram ao escrutínio psicanalítico de Freud nos revelam as profundezas abissais do sofrimento a que uma neurose pode arremessar um ser humano, a dor a desgraça e a solidão desses estados são quase inenarráveis. Há pouquíssimo tempo, tive o privilégio de assistir a palestra de meu dileto amigo e jovem analista Filipe Jesuíno que, ao narrar com os maiores cuidados um de seus casos, falou com voz embargada de emoção sobre as dificuldades enfrentadas em conjunto, paciente e analista. A neurose não é a loucura, a histeria, a neurastemia, a neurose obsessiva, ou os novos nomes que se dão a velhos demônios, síndrome do pânico, depressão, entre outros e mais ainda que logo surgirão, não são um ens per se, mas tratam-se de um funcionamento normal levado a caricatura, na concepção de Jung, o sintoma representa o momento em que a homeostase psíquica falha, mas mesmo isso possui um sentido. Certa feita ele disse sobre a neurose algo como “ainda bem que o fulano se tornou neurótico, pois agora se verá obrigado a lidar com seus problemas”, mesmo esses abismos de solidão e sofrimento possuem um sentido mais elevado, mas estamos aqui a falar de loucura e não apenas da cisão neurótica.

Creio que não é ocioso esclarecer o que seja a neurose antes de passar a discutir a loucura propriamente e sua distinção da genialidade, além do que seja o gênio – que segundo Jung é algo raro como a fênix. A neurose se caracteriza pela dissociação da personalidade, o início de uma neurose se dá quando um complexo inconsciente se instala na superfície da consciência, tornando-se impossível evitá-lo, e progressivamente passa a assimilar a consciência do eu. A neurose diminui consideravelmente o grau de liberdade empírica do indivíduo que padece, pois o grau de liberdade empírica será proporcional à extensão da consciência. É importante anotar que a psicologia dos neuróticos diferencia-se daquela de indivíduos considerados normais por traços muito insignificantes, até mesmo pelo fato de que em nossos dias poucos podem ter a absoluta certeza de não serem neuróticos. Mas dito em outras palavras, o que salta aos olhos na restrição de liberdade da personalidade empírica no neurótico é a característica que é normal e corriqueira do dado psíquico ser algo de objetivo, que escapa ao controle da consciência. O inconsciente possui uma autonomia quase demoníaca, que escapa ao controle de qualquer iniciativa racional bem intencionada, e a cisão que caracteriza a neurose pode ser descrita como um isolamento do sujeito consciente em relação a sua natureza humana básica, a neurose consiste basicamente de uma alienação dos instintos e uma separação da consciência dos fatos fundamentais da alma. Não é ocioso repetir que a neurose não se trata de um ens per se, nem tão pouco se trata de fenômenos localizados e estreitamente circunscritos, mas trata-se de uma atitude errônea da personalidade global. “Nas doenças mentais constatamos, sob forma grave e intensa, certos fenômenos que podem aparecer episodicamente em indivíduos normais” (Jung, 1997). O sofrimento neurótico é um logro inconsciente e não tem mérito moral como o sofrimento por coisas verdadeiras. O processo de conscientização que é necessário para o desaparecimento dos sintomas neuróticos representa uma tortura para aquele que passa por ele, em compensação, seu sofrimento passa a ter sentido e se refere a um mal verdadeiro. Isso por que só se pode alterar algo que esteja na consciência.

A psicodinâmica da loucura, da criação artística e do gênio possuem inegáveis semelhanças, semelhança, todavia não significa igualdade. Igualar o gênio ao louco só pode ser fruto da mais atroz incompreensão ou da incapacidade de avaliar o valor da criação em comparação ao delírio. Certa feita, o escritor James Joyce, maior romancista do século XX, autor do monumental Ulysses e do mais genial romance experimental de todos os tempos Finnegans Wake, levou sua filha que sofria de esquizofrenia para uma consulta com o Dr. Jung. Jung pouco pode fazer por ela, e recebeu de Joyce um exemplar autografado de Ulysses, conta-se que ele teria comentado que a filha de Joyce “se afogava nas águas em que seu pai nadava”. Durante meu mestrado tive a oportunidade de ler e estudar as memórias de Paul Schreber intituladas “memórias de um doente de nervos” (Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken, no original em alemão) e me impressionou profundamente a enorme influência que o livro em que Schreber narra seus delírios teve entre pensadores alemães e filósofos do restante da Europa. Segundo Eric Santner em seu “A Alemanha de Schreber”, nos delírios paranoicos descritos em detalhes por Schreber em suas memórias encontra-se elementos nucleares da ideologia nacional-socialista que solapou a Alemanha e levou  segunda guerra mundial. Elias Canneti chegou mesmo a considerar a obra de Paul Schreber como um precursor do famoso mein Kampf escrito por Adolf Hitler na prisão. Eric Santner chega mesmo a afirmar que algumas das “descobertas” de Schreber acerca da natureza do poder e da dimensão teológica do poder político se assemelham aquilo que Cliford Geertz chamou de “sacralidade do poder soberano”. As ideias de Schreber chegaram a influenciar pensadores do quilate de um Benjamim, mas veja, essas imagens poderosas destruíram Paul Schreber, e ele terminou seus dias tristemente num asilo, outros é que fizeram uso de seus insights fazendo o trabalho duro e impossível para ele, de separar o ouro do cascalho e da sujeira. Eis a diferença fundamental, o papel que a consciência desempenha em relação a essas imagens e insights!

Diferente de Freud, que iniciou sua pesquisa empírica com a histeria, Jung iniciou sua carreira no hospital psiquiátrico Burghoelzli e deparou-se com casos severos de esquizofrenia. Um dos casos que lhe causou grande impressão foi o de um homem de seus trinta anos de idade que sofria de uma forma paranóide de esquizofrenia. Adoecera quando estava na casa dos vinte anos, fora um simples escriturário empregado de um consulado e apresentava uma interessante mistura de inteligência, obstinação e ideias fantasiosas. Adoecera de megalomania e acreditava ser o salvador, sofria de frequentes alucinações e por certos períodos ficava bastante agitado. Um dia Jung o viu piscando os olhos insistentemente para o sol e movendo a cabeça de um lado para o outro, ele pegou o médico pelo braço e tentou mostrá-lo algo. Disse ele que se Jung piscasse os olhos olhando para o sol veria o pênis do sol e que se movesse a cabeça de um lado para o outro também veria o pênis do sol e que essa era a origem do vento, isso se deu em 1906. Em 1910 Jung soube através de seus estudos de mitologia de um livro de Dieterich, tradução do chamado papiro de Paris, que era a tradução de uma liturgia do culto de Mitra escrito originalmente em grego e só traduzido em uma língua moderna em 1910. O texto fazia menção a uma série de prescrições invocações e visões, uma delas falava do tubo que pendia do sol e de onde se originava um vento infinito. As ideias fundamentais da visão religiosa e do delírio nesse caso eram extremamente similares, nelas se pode ver o mesmo “motivo” mitológico, com uma diferença crucial. A primeira era uma imagem alucinatória que alienava um indivíduo e o enlouquecia, a segunda uma imagem simbólica culturalmente diferenciada e prenhe de significado e capaz de conferir sentido e significado a vivência religiosa de toda uma comunidade.

Outro paciente de Jung, que igualmente sofria de delírios e alucinações, e mantinha uma ligação telefônica com a mãe de deus, e que na vida real era apenas um pobre aprendiz de serralheiro que enlouquecera de forma incurável aos dezenove anos de idade, imaginava que o mundo inteiro era seu livro de gravuras e que, ao mover a cabeça para os lados virava as páginas desse livro. O próprio Jung anota que essa ideia é fundamentalmente a mesma que está na base da filosofia de Schopenhauer do mundo como vontade e representação. A mesma ideia arquetípica havia ocorrido a um gênio e a um louco, o primeiro conseguiu trabalhar com essa ideia e a partir desse insight constituir uma filosofia, o segundo fora destroçado por ela e enlouquecido irremediavelmente. A genialidade e loucura possuem uma origem comum, mas resultados muito diversos. O louco padece vítima das ideias que o assolam de maneira compulsória, sua personalidade se desintegra ou desaparece, seus delírios em pouco ou nada contribuem para a ampliação do nível geral de consciência de sua época. Fundamentalmente, ele está alienado dos desafios e aventuras do espírito que se apresentam aos seus pares em seu tempo e cultura. O gênio é exatamente o oposto, ele é justamente aquele capaz de formular de maneira consciente aquilo que é apenas intuído ou pressentindo, sendo capaz de captar aquilo que há de mais elevado no espírito de sua época, mas que ainda não foi formulado. Suas palavras, ou criações artísticas são capazes de tocar uma corda comum que muitas vezes o simples discurso racional não poderia. O gênio é capaz de enriquecer a cultura e engendrar mudanças, ampliar a cosmovisão dos seus semelhantes, o louco não.

Sobre essa ideia – que é uma versão simples primitiva e concreta do mundo como vontade e representação – ocorrida a esse paciente Jung diz:

No entanto, este modo primitivo de ver as coisas subjaz no fundamento da magnífica visão de mundo de Schopenhauer. Só um gênio ou um louco pode desligar-se suficientemente dos vínculos da realidade, a ponto de ver o mundo como seu livro de imagens. Será que o doente elaborou ou construiu tal concepção ou esta lhe ocorreu por acaso? Terá sucumbido a essa visão? Esta última alternativa pode ser corroborada por seu estado de desintegração patológica e por sua inflação. Não é mais ele quem pensa e fala, mas algo pensa e fala dentro dele: por isso ouve vozes. Assim, a diferença que o separa de um Schopenhauer reside no fato de que, nele, a visão permaneceu no estádio de um mero produto espontâneo, ao passo que Schopenhauer soube abstraí-lo, exprimindo-o numa linguagem de validade universal. Deste modo, elevou-a do estado inicial subterrâneo à clara luz da consciência coletiva. Seria um erro total afirmar que a visão do paciente possui apenas um caráter ou valor meramente pessoal, como algo que lhe pertencesse. Se assim fosse, seria um filósofo. Entretanto filósofo ou gênio é precisamente aquele que consegue transmutar uma visão primitiva e natural numa ideia abstrata, que pertence ao patrimônio geral da consciência. Esta realização e somente ela constitui o seu valor pessoal, cujo reconhecimento não o fará sucumbir inevitavelmente à inflação psíquica. A visão do paciente é um valor impessoal surgido naturalmente, contra a qual ele não pôde defender-se e que o engoliu, e “transportou” para fora do mundo. A inegável grandeza da visão inflou-o até proporções patológicas, sem que ele pudesse apropriar-se da ideia transformando-a numa concepção filosófica de mundo. O valor pessoal reside na realização filosófica e não na visão primária. O filósofo citado também teve essa visão, como incremento, procedente do patrimônio geral da humanidade do qual, em princípio, todos nós partilhamos.As maçãs de ouro caem da mesma árvore, quer sejam colhidas pelo insano aprendiz de serralheiro ou por Schopenhauer. (Jung, 1997, p.19).
O parentesco entre a inspiração e o delírio do louco está em sua origem. Toda e qualquer criação humana, seja o que há de mais belo ou a mais hedionda das invenções tem sua origem na alma. Mais especificamente, todavia, a origem da inspiração e do delírio é o espírito inconsciente. A concepção de inconsciente de Jung difere fundamentalmente da de Freud nesse aspecto. Para Jung existem neoformações criadoras que tem seu ponto inicial no inconsciente. No curto e fundamental ensaio “A energia psíquica” em nota de rodapé (a nota 17) Jung tece essa diferenciação entre a noção Freudiana de inconsciente e a sua no que diz respeito à possibilidade criadora do inconsciente. Em poucas palavras, para Jung a teoria do recalque de Freud – essa teoria pressupõe um polo contrário na consciência, a disposição consciente é hostil aos complexos inconsciente – é apenas uma verdade parcial, aplica-se a muitos casos, mas não há todos. Existem casos, justamente o de conteúdos criativos aos quais a consciência não é hostil e possuem uma elevada carga afetiva, mas como é algo novo não existem associações e rupturas de relações com os conteúdos da consciência. Faz-se necessário percorrer inicialmente todas essas conexões sem as quais não é possível se chegar a um elevado grau de consciência.

A diferença entre o gênio e o louco reside na firmeza de sua personalidade consciente ao se deparar com esses conteúdos psíquicos transpessoais que são entidades vivas e exercem força de atração a consciência. Esse conteúdos objetivos, dotados de uma energia que lhes é própria e um fascínio tremendo e terrível não podem ser manipulados à vontade. A possibilidade do trabalho consciente com essas imagens, e, em decorrência disso, transformá-las em ideias abstratas, é o que permite que o gênio não sucumba ao seu poder e o que constitui valor pessoal. A ideia por ela mesma é um valor impessoal. Mais poderia ser dito, e certamente algumas delimitações teóricas mais precisas seriam requeridas para uma compreensão mais ampla dos fenômenos aqui descritos de maneira ligeira, mas tal esforço não cabe no escopo desse escrito, que procura muito mais indicar as possibilidade do que esgotá-las.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Sobre “deixar os estudos”




Uma imagem no Facebook me chamou a atenção e me levou a refletir. A referida imagem mostrava três fotografias: Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zucerberg, todos eles homens que criaram grandes mudanças na área de tecnologia, comunicação e educação e alteraram para sempre a maneira como nos relacionamos com a tecnologia e com os nossos semelhantes. Goste-se ou não deles, os três são grandes inovadores. Pois bem, na imagem, ao lado da fotografia de cada um deles se lia: deixou os estudos. E por último, a fotografia de um mendigo e ao lado dela a frase: Você se deixar os estudos.
Obviamente a imagem tem valor de chiste, trata-se de uma piada que vem circulando pela rede mundial de computadores, mas convém recordar que o chiste é algo revelador, e que nos permite, por um instante que seja, observar coisas subterrâneas e que normalmente estariam veladas. Em virtude disso resolvi refletir sobre a mensagem veiculada por essa imagem jocosa.
A princípio me chama a atenção à expressão “deixou os estudos”, em minha opinião, o mais correto seria dizer que eles deixaram a escola, ou que deixaram a faculdade, mas nenhum deles jamais deixou os estudos. Steve Jobs, em seu “discurso testamento” deixou claro que ao deixar a aulas na universidade, que eram dispendiosas para seus pais e que não faziam sentido para ele ou tocavam a sua alma, se dedicou a estudar as coisas que realmente faziam sentido para ele, como por exemplo, caligrafia. Ele continuou estudando, e me arrisco a dizer que o fez até o fim de seus dias. O que me leva a ter a séria suspeita de que existe no senso comum a ideia de que só se estuda na escola, ou por que se está na escola, ou seja por uma demanda coletiva e não por um impulso individual.
Me parece também, que essa não é apenas uma “ideia” de senso comum, mas um tipo de funcionamento psíquico. Nem todos possuem o élan para estudar ou pesquisar, o que não constitui demérito, pois em nossa sociedade precisamos tanto de cientistas e professores quanto de bombeiros, atletas, policiais, soldados, músicos e artistas. Mas mesmo pessoas que normalmente não se sentiriam inclinadas a prosseguir estudando por possuírem outros tipos de disposições, talentos ou desejos, se veem obrigadas a estudar por décadas. Essas pessoas realmente estudam por que estão na escola, por se verem coagidas a isso, ou por compreenderem que precisam estudar até a universidade para poderem ganhar a vida ou terem o respeito de seus pares – seja isso falacioso ou não.
Umberto Eco, em seu livro “Como escrever uma tese” fala do fenômeno das “universidades de massa”, onde pessoas sem o necessário élan para o estudo e a pesquisa se veem forçadas a dispender anos a fio de suas vidas nos bancos da academia para poderem ganhar o seu sustento ou simplesmente em prol de um ideal social, o que transforma a academia num arremedo grotesco do que deveria ser. Essas pessoas estão presas ao que sir Ken Robinson chamou de “tirania do senso comum”, Campbell falava do Dragão onde em cada escama está escrito “tu deves”, e que devemos destruir para sermos nós mesmos. Em uma revista em quadrinhos do Thor, escrita pelo brilhante J. M. Straczynski, ele denominou esse mesmo fenômeno de “a tirania das vozes razoáveis”. A oposição a isso é a penosa e difícil tarefa de ser capaz de ouvir o próprio coração.
Mas para compreendermos o sentido mais profundo do chiste contido na figura que inspirou essa reflexão. Os três personagens retratados, mais o mendigo, não nos esqueçamos do mendigo, são portadores de novidades, grandes novidades, para o bem ou para o mal. Zuckerberg criou o Facebook onde esta imagem estava circulando. Bill Gates forjou a sua imagem e semelhança o mercado mundial de computadores pessoais, com um misto de gênio, oportunismo e algum plágio, e Steve Jobs, bem, Jobs foi em vida tão criativo que é difícil resumir em poucas palavras o quão inovador ele foi. Em resumo, estamos diante de três homens dotados de grande criatividade e de sensibilidade para perceber os rumos dos negócios, das artes e da cultura, visionários diriam alguns, mas creio que palavra chave aqui é criatividade.
Bem, uma coisa posso afirmar sem medo de errar, nossas escolas e universidades não nos preparam para sermos criativos. Creio que convém aqui ponderarmos sobre o nosso modelo de educação. Sir Ken Robinson, em suas brilhantes palestras no TED, falou por duas vezes sobre educação, ou mais propriamente nas dificuldades que nosso atual modelo de educação coloca para o florescimento dos talentos humanos e para o desenvolvimento da criatividade. Em sua opinião, temos um modelo de escola industrial, de manufatura, que se baseia nas ideias – falaciosas – de linearidade e conformidade. Uma analise mais minuciosa da imagem jocosa do Facebook mostra que a despeito dos três contraexemplos, a ideia que norteia a piada é da linearidade. Ora, se você completar seus estudos até a universidade você terá um bom emprego e uma boa vida, do contrário será um mendigo. É clara a noção subjacente de linearidade nessa piada. Os três grandes personagens são “a” proverbial exceção que confirma a regra. Mais sutilmente, a ideia de conformidade também se faz presente, todos precisam passar pelo mesmo processo de educação que leva ao mesmo fim: a faculdade.
Bom, talvez seja o momento de falar um pouco da minha experiência com a faculdade. A princípio eu decidi ser médico, na verdade eu nunca quis ser médico, eu queria prestar vestibular para medicina o que é muito diferente. Pois bem, naquela época há... Alguns anos atrás existiam duas fases no vestibular, eu era um ótimo aluno e passei com facilidade na primeira fase nas duas tentativas, mas veja, estranhamente, naquilo em que eu era realmente bom, a redação, eu reprovei. Como segunda opção, ainda mais tola do que a primeira, eu fiz veterinária, e entrei facilmente para essa universidade, que deve ser ótima para quem deseja ser um veterinário, o que não era o meu caso. O fato é que, na escola, eu fora preparado para ir para a universidade, ou melhor, para prestar o vestibular, e não para escolher uma profissão que me permitisse ver meus talentos florescerem. Bom, passei três anos na veterinária, gostava de cirurgia e era um ótimo aluno e fiz muitas coisas, mas aquilo, fundamentalmente era uma farsa. Como não consegui viver aquela farsa por mais tempo e, estando mais velho, começava a discernir o que queria realmente fazer decidi largar tudo.
Passei seis meses estudando em casa, pois achava que a escola não tinha mais nada a me ensinar, o que rendeu uma briga com meu irmão mais novo, e uma grande choradeira por parte de minha mãe e avó. Elas ligaram para o meu melhor amigo, Filipe Jesuíno, e disseram a ele que alguém devia conversar comigo, eu já não estudava mais, ao invés disso, passa o dia todo lendo no meu quarto. Como podem ver, o conceito de “estudo” da minha família é bem parecido com o da pessoa que criou a imagem que estou discutindo. Fiz vestibular novamente, fiquei em dúvida entre psicologia ou história, e acabei decidindo pela segunda opção, coisa de que não me arrependo. Sejamos francos, a faculdade de psicologia é uma droga, e a de história é bem mais séria e me deu uma sólida formação científica. Mas não pensem que se tratava do paraíso, não. Logo eu percebi uma coisa interessante acerca da faculdade: ela atrapalhava meus estudos. Bom, até hoje atrapalha, o doutorado tem se tornado um empecilho enorme aos meus estudos com uma série de exigências absurdas e de uma lógica mais do que questionável que enxerga a produção acadêmica como uma linha de montagem industrial, da qual, eu supostamente faço parte.
Bem, eu represento um “tipo” muito específico, e minha experiência pode ser similar a de centenas, talvez milhares de pessoas, mas certamente, não de todas. Algumas pessoas, suspeito que o autor da tal piada visual é uma delas, precisa de conformidade e linearidade, precisa de alguém que a diga o que fazer e quando fazer, ou simplesmente, está ali para cumprir uma obrigação social, ou, está olhando para o futuro, para seu tão sonhado bom emprego. Alguns, simplesmente estão ali, e não sabem muito bem o que estão fazendo e não pretendem descobrir, como todos estão fazendo faculdade isso deve ser a coisa certa a se fazer. Outras que estão nas escolas ou universidades possuem talentos e habilidade de outra ordem, e que não têm lugar ali, algumas vezes habilidades práticas que combinam pouco com a abstração que é requerida nas escolas e na academia. Ou então, como suspeito ser o meu caso, são pessoas criativas, para quem a conformidade é um grande empecilho.
Jung ao escrever sobre as possibilidades de educação descreveu algumas das formas de educar, uma delas diz respeito exatamente ao que estamos discutindo aqui, ela a chamou de “educação coletiva consciente”. Esse é um tipo de educação que se baseia em regras, princípios e métodos e estes três pontos são necessariamente de natureza coletiva, e se supõe que sejam válidas e aplicáveis ao menos a certo número de indivíduos. Mas o que se produz com esse tipo de educação? A resposta de Jung a essa indagação é “dessa educação não se pode esperar que se produza outra coisa ou mais do que aquilo está contido nas premissas, isto é, que os indivíduos sejam formados de acordo com regras, princípios e métodos gerais”. O que esse tipo de educação busca criar é a uniformidade, apenas outra maneira de dizer conformidade. O que acontece é que, variando de pessoa a pessoa em termos de grau, a índole individual do educando cede à natureza coletiva da educação. A uniformidade resultante será correspondente ao método que for empregado, ou seja, as regras, princípios e métodos. Esse tipo de educação não é, em si mesma ruim, pois em uma sociedade faz se necessário algum grau de ajustamento, de conformidade. Ou seja, isso leva a uma acomodação coletiva do educando, pois se espera, e não sem razão, que a educação conduza a formação de membros úteis da sociedade. Há, todavia um problema com esse princípio de educação, e que vem saltando aos olhos nos últimos tempos.
O problema desse tipo de educação, que é o que encontramos em nossas escolas e universidades, é que esse tipo de formação coletiva do caráter pode levar a graves danos a índole individual. É disso que sir Ken Robinson falou em suas palestras, sobre esse excesso no que concerne ao aspecto coletivo da educação. Não é ocioso recordar que esse tipo de educação coletiva é indispensável, para vivermos em sociedade e precisamos de normas coletivas e jamais poderemos renunciar ao princípio da educação coletiva. Mas o que muitos têm diagnosticado hodiernamente é um excesso. O aspecto individual tem sido sacrificado em demasia prol dos ideais coletivos, e em nossos tempos, a criatividade tornou-se uma qualidade cada vez mais desejada ou admirada, mas nossas escolas não permitem que ela floresça. Estamos diante de um grave desequilíbrio, não raro no sistema de educação individualidade é sinônimo de anarquia.
Pois bem, Jobs, Gates e Zuckerberg deixaram a faculdade, mas certamente não seus estudos, eles deixaram o ambiente que sufocava sua individualidade e abraçaram suas idiossincrasias e deram atenção a suas fantasias criativas. A faculdade não forma visionários, dificilmente dali brota algo de diferente e novo, a despeito de se exigir isso de uma tese de doutorado. Isso é algo que acredito ser bizarro quando penso a respeito. Estou escrevendo uma tese, logo é justo que eu pense a respeito. Ora, para se fazer uma tese se exige que ela seja inédita e inovadora, mas ao mesmo tempo, todo o tipo de uniformidade é exigida de maneira bastante autoritária, e dessas exigências que reforçam poderosamente os aspectos coletivos se espera que brote algo singular, estranho não? Deixando de lado essa digressão, o que o chiste que estou analisando procura transmitir é que a criatividade não é para você! Se você, caro leitor, resolver encarar como mentiras a conformidade e a linearidade, e resolver deixar a escola, ou não ir para a universidade, prepare-se para se tornar um mendigo. No fundo é uma piada muito triste.
Quando eu estava no meu último ano de escola, minha turma reunia os mais bem dotados academicamente da escola, e nessa época tive o privilégio de conhecer algumas das pessoas mais brilhantes que alguém poderia desejar conhecer, como meu dileto amigo Alexsandro Queiroz e Silva, vulgo Freud, um gênio da informática, não tenho dúvidas, e que era academicamente brilhante. Nunca fez qualquer pós-graduação e hoje vive e trabalha na Suíça, ou meu dileto amigo Fernando Barreto de Morais, vulgo Ferby, alguém que aos 16 anos já lia Rimbaud e francês e já conhecia Piaget. Mas não é deles que quero falar aqui, mas de um rapaz dessa época chamado Paulo Marciso, creio ser esse seu nome. Pois bem, ele era considerado por todos um rematado idiota. Nossa turma era muito harmoniosa e ele fazia parte da patota, e como em minha terra natal o humor é uma qualidade das mais enaltecidas, quando alguém o chamava de burro isso era feito com bom humor e ele nunca se importou, ele também nos chamava de nomes. O fato é, que ele realmente era incompetente academicamente, mas outra coisa saltava aos olhos. A despeito de toda a pressão coletiva, de mais de seiscentos alunos no último ano, creio que ele foi o único que não prestou vestibular. Ele nunca quis, dizia que quando terminasse os estudos iria se dedicar ao comércio, e dizia isso sem rancor ou ressentimento, ele não gostava de estudar e sabia que isso não era pra ele. Bem, eu sempre fui muito mais inteligente que o Paulo Marciso, mas ele sempre soube que ele era e que ele queria, e ninguém o dissuadiu de ser ele mesmo. Eu levei mais do que o dobro do tempo, talvez o triplo para poder fazer uma escolha individual, que um sujeito burro fez sem problemas.
Os três heróis de nossa piada, que não viraram mendigos, estiveram diante do mesmo dilema do meu antigo colega, e tiveram força de caráter similar. A faculdade não lhes tocava a alma, não favorecia os seus talentos e nem lhes inflamava a paixão e eles a deixaram, graças a Deus. Todos nós, em algum momento, ou mesmo em vários momentos, ficamos diante dessa mesma questão: sermos nós mesmos ou sermos o que se espera de nós? Viraremos mendigos se formos nós mesmos? A pergunta pode parecer jocosa, mas não há nada mais sério do que isso. Muito tempo se passou desde minhas escolhas desastradas na época da escola, mas ainda me vejo encarando esse enigma, bom, há algo em mim que sabe bem as respostas, mas saber a resposta e agir com convicção e coragem são coisas bem diferentes, pois quando somos nós mesmos há um preço a se pagar por isso, esse preço fica claro no discurso testamento de Jobs, quando ele se jogou em direção ao desconhecido não havia garantias, ele podia ter se tornado um mendigo, nessa época ele era um de nós. Talvez seja apenas a coragem e decisão que separe esses três e mais tantos outros do homem médio, além do talento é claro, mas apenas o talento sem a coragem não produz nada. Esse dilema é um dilema moral fundamental, e precisamos refletir seriamente sobre ele, principalmente aqueles que são educadores.
Precisamos lembrar do que disse Jung certa vez, que o homem médio desconfia e suspeita de tudo aquilo que sua inteligência não pode atingir, essa piada é uma prova dessa desconfiança. Como eles fizeram isso? Pois o homem médio certamente se tornaria um mendigo. O novo é sempre algo problemático, mesmo quando é algo de bom, há um medo terrível do novo, e nossa piada também traz um eco distante desse medo, e em parte, esse medo também impele o homem médio a desconfiar do talento. Uma tentativa de nivelar a massa do povo, se for bem sucedida, leva a catástrofe, pois, segundo Junge se o que se destaca é nivelado perde-se todos os pontos de orientação e surge o desejo de ser simplesmente conduzido por alguém. Eu, de minha parte, depois de tantos anos em busca de mim mesmo, prefiro o risco de ser um mendigo...

Tatuagens, marcas corporais e rito...


Ao refletir sobre a tatuagem e as marcas corporais nos nossos dias, ou modernidade, pós-modernidade, hipermodernidade, modernidade líquida (que de tão rápida logo chegará ao estado de vapor) ou como se queira chamar nosso fugaz presente; não consigo deixar de lado a sensibilidade de historiador e atentar para a duração. A tatuagem, as escarificações e marcas corporais não são um fenômeno novo, longe disso, são fenômenos antiquíssimos, que se perdem na aurora da humanidade e que existiram nas mais diversas sociedades, entre os mais variados povos e culturas sem necessariamente ter havido alguma transmissão cultural entre eles.
Não considero lícito, todavia, que se pretenda simplesmente explicar o presente – ou como quer que se queira adjetivar o tempo em que vivemos – pelo passado, não é isso que nos ensina Marc Bloch. Pelo velho método da história metódica do arco hermenêutico, preso aos ídolos das origens, não se vai longe, na verdade, não se vai à parte alguma. Não se trata disso aqui, da avelhantada ideia de uma história progressiva. Novamente, como nos ensina Marc Bloch, a noção de que o passado pode ser objeto da ciência é absurda. A história, nessa perspectiva, é busca, portanto escolha e seu objeto são os homens, ou para dizer de modo mais preciso “os homens no tempo”. E o que a torna uma ciência autêntica é a possibilidade de estabelecer ligações explicativas entre os fenômenos, uma inteligibilidade. Não é ocioso lembrar dessas lições de história, mesmo que não se trate aqui de um tratado de história, longe disso, simplesmente de um escrito que tem como uma de suas inspirações uma certa sensibilidade histórica. Trata-se, no entanto, de evitar os abusos tão comuns que são cometidos ao se pensar no passado e ao se apropriar do discurso do historiador, esse homem de ofício tão cioso de seus métodos.
Se faço um apelo ao “passado” ou a outras culturas que parecem tão diferentes da nossa – a despeito do denominador comum que atrai o olhar para elas – não o faço por desprezar o “presente” (seja ele sólido, líquido ou gasoso), mas justamente pelo motivo oposto, o olhar aqui é regressivo, vai, metaforicamente, do presente em direção ao passado. Não numa linha evolutiva do passado em direção ao presente, esta não é a nossa quimera, temos outras sem dúvida, mas não esta. Se estou interessado na “duração”, no tempo, que é o plasma em que se engastam os fenômenos e lugar de sua inteligibilidade, noção que surge dessa sensibilidade histórica, existe igualmente como uma das linhas de força que atravessam esses escritos uma outra sensibilidade. Sensibilidade essa que se insinua com mais força, mesmo quando não é convocada, talvez especialmente quando não é convocada. Uma sensibilidade que evoca um tempo que escapa a todas as temporalidades da história, seja a individualidade e intimidade do acontecimento – esse resto desprezível para a sociologia de Durkheim – seja a longa duração de um Fernand Braudel. Esse tempo insidioso que teima em se insinuar desde que foi anunciado por Freud. No dizer de Michel de Certeau, a psicanálise reconhece o passado no presente, enquanto na história a relação entre o passado e presente se dá colocando um ao lado do outro. No que concerne à memória, principal matéria prima do historiador, a psicanálise compreende o esquecimento não como uma passividade ou perda, mas como uma ação contra o passado, e o que é esquecido retorna no presente, mas forçado ao disfarce. Onde a historiografia estabelece uma diferença, onde ela estabelece um corte, uma divisão e hierarquia, esse outro tempo confunde essas fronteiras entre antes e depois.
Diante dessa dupla sensibilidade é que deve ser compreendido esse apelo ao passado para se interpelar a temática de que ora trato nesses escritos, não como vulgar tentativa de compreender os fatos passados como fatos positivos e objetivos. Há que se lembrar sempre que a história é imaginação sobre aquilo que já foi imaginado. É preciso estar atento àquilo que é a fraqueza da ciência historiográfica e, paradoxalmente, sua fortaleza: ser poética. Resta dizer, antes de começar a dizer propriamente, que é o presente bem definido que dá início ao processo essencial do ofício do historiador que seja “compreender o presente pelo passado” ao mesmo tempo em que “compreende o passado pelo presente”, pois a presa do historiador é a mudança.
Daí que, o que acrescento ao título, o rito, é justamente o que falta ao nosso presente líquido que parece estar em vias de nos afogar. Esse mesmo rito que o passado – lembrando sempre da duplicidade de sensibilidade que norteia autor desses escritos – dá sobejos exemplos de sua eficácia e relação com as marcas nos corpos. Mas esse passado que já não podemos ver tão hierarquizado, retorna sob disfarce e se insinua e se imbrica no presente. Comecemos então a dizer.
Tendo como bússola de nossa jornada o nosso próprio tempo, convém analisar alguns dos discursos representativos do pensamento corrente sobre o tema. Não é debalde iniciar essa análise com aquilo que se diz e pensa sobre o corpo. Afinal, é um tanto óbvio que a tatuagem e as escarificações e marcas corporais se fazem no corpo, e que em vista desse fato ele se torna espaço privilegiado de nossa reflexão, convém, todavia, desconfiar do óbvio. E é essa desconfiança que leva a uma rápida consideração preliminar – peço paciência ao leitor pelo aparente excesso de prolegômenos, asseguro que não se mostrará esforço vão – Jung, ao tratar das dificuldades de se lidar com o fenômeno psíquico, comparou a posição do psicólogo ao do físico ao lidar com o fenômeno da luz, que se comporta tanto como partícula quanto onda. A alma, contudo, é infinitamente mais complexa do que a luz, e sua compreensão repousa em não apenas um paradoxo, mas vários. Destes, interessa o seguinte: “a psique depende do corpo e o corpo depende da psique”, para ambas as afirmações existem tantas e tais provas que um juízo objetivo não poderá se decidir por um ou pelo outro. De outra feita, o mesmo Jung acerca da mesma temática asseverou:
É certo que as forma psíquicas elementares estão intimamente ligadas aos processos fisiológicos do corpo, como também não resta a menor dúvida de que o fator fisiológico representa pelo menos um dos polos do cosmo psíquico. Muito embora os processos instintivos e afetivos, bem como toda a sintomatologia neurótica produzida pelos distúrbios dos mesmos tenham inequivocamente uma base fisiológica, o fator perturbador prova, por outro lado, que ele tem o poder de converter a harmonia fisiológica em desordem. (Jung, 1981, p.74).
O que se pode constatar com facilidade é que, hodiernamente, os juízos objetivos tendem a escolher apenas um dos lados da antinomia, e nosso tempo, ou para usar a controversa expressão escolhida por Jung para realizar essa afirmação, nosso Zeitgeist, possui uma preferência sentimental pela matéria em detrimento do espírito. Logo, boa parte das teses a serem discutidas aqui sobre o corpo tendem a possuir como pressuposto tácito que: “a psique depende do corpo”. Tendem a compreender a alma como epifenômeno de causas materiais, resultante da fisiologia do cérebro, algum quimismo qualquer, ou, para usar a expressão jocosa do mesmo Jung “algo de saboroso”. Dito isto, e diremos novamente em breve, passemos ao nosso presente caudaloso.
Francisco Ortega, em artigo denominado Modificações corporais e bioidentidades, se ocupa em analisar novas formas de sociabilidade contemporâneas e a formação de identidades culturais, bem como reflexões sobre body modification na perspectiva da biossociabilidade, que ele define como um conceito que visa descrever e analisar novas formas de sociabilidade nascidas da interação entre o capitalismo e a medicina, sendo uma forma de sociabilidade apolítica – se é que isso é possível – seguindo critérios de saúde e performances corporais, diferindo fundamentalmente da biopolítica, pois a sexualidade ocupa na biossociabilidade um plano secundário e o corpo e a comida ocupam o lugar de fonte de ansiedade e patologia. Ainda segundo ele, o tabu que antes existia sobre a sexualidade se desloca hodiernamente para o açúcar, a gordura e o colesterol, numa clara demonstração de que, em sua análise, ele desconhece o que seja um tabu. Não que não existissem tabus alimentares, uma rápida olhada na cozinha Kosher judia e suas inúmeras proibições (não se pode comer porco, não se pode misturar carne e leite, é preciso até mesmo esperar um período superior a seis horas antes de ingerir leite após comer carne, o sangue da carne não pode ser ingerido e mais mil etcs), ao se observar esses tabus, é fácil perceber que o tabu do açúcar proposto por ele é, no mínimo, estranho. Ele fala ainda sobre bioacesses (eu desconheço qualquer método ascético tradicional que não envolva o corpo) que levam a um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna, nesse sentido, me parece que ele também utiliza o termo ascese de uma maneira bastante peculiar. A base da bioascese é uma compreensão do self como um projeto reflexivo, sendo a reflexividade um processo de peritagem sobre nós mesmo e que resulta na constituição de um indivíduo responsável que orienta as suas escolhas comportamentais e estilo de vida para a procura da saúde e corpo perfeito e o desvio dos riscos. Alguém deveria informar isso urgentemente aos donos do McDonalds.
Para Ortega as modificações corporais constituem um fenômeno sui generis de tentativa de personalização do corpo, o que me soa estranho visto eu sempre ter considerado, meu rosto, por exemplo, algo bastante pessoal... Mas prosseguindo na argumentação do autor em questão, por um lado essas modificações parecem seguir o esquema das biossociabilidades, por outro, parecem querer “recuperar uma dimensão do vivido corporal”. Por body modification o autor compreende as mais variadas práticas: tatuagens, piercings, brandings, cutting, e até mesmo o fitness e o body building, a anorexia e o jejum. Ortega analisa duas correntes de interpretação sobre o tema, das quais discorda. A primeira considera essas práticas como um elemento do mundo da moda e da sociedade de consumo e do espetáculo. A segunda abordagem considera essas práticas como patologias, um problema de saúde mental, que iguala o discurso das modificações corporais ao da automutilação, se constituindo num discurso moralista. Ele considera as duas abordagens reducionistas, a leitura dele está em acordo com a centralidade do corpo, das bioasceses e das bioidentidades na contemporaneidade. Sua tese é a de que a fragilidade do laço social, a ausência de vínculos simbólicos e rituais coletivos levam os indivíduos a se retrair sobre os seus corpos e os transformarem em universos em miniaturas, diante de tantas contingências essas práticas forneceriam uma ilusão de estabilidade cultural e social. Ele vai mais longe, e sugere que a desvalorização da experiência subjetiva do “corpo que eu sou” e o privilégio do “corpo que tenho” mediante as modificações corporais pode ser entendida como uma tentativa de passar de um corpo que é objeto da biomedicina para um corpo sujeito da sensação, de experiência, e do mundo.
Henri-Pierre Jeudy, em seu Corpo como Objeto de Arte, se ocupa, entre outras coisas, da pergunta sobre “o que pode o corpo?” e não sem certa lucidez constata que o corpo se constitui em um objeto privilegiado do discurso, e sobre o exibicionismo das metalinguagens que incessantemente anunciam o que ele é ou o que virá a ser, todavia essa massa de discursos jamais esgota seu objeto, que “parece apto a se esconder indefinidamente”.  Nesse sentido, sua pergunta “o que pode o corpo?” queda sem resposta, como se as palavras utilizadas para exibi-lo perdessem todo o seu poder sobre ele. O jogo de sombras entre imagem e representação segue implacável, a arte se converte em um viveiro a engendrar equivalência e banalidade. O excesso de conceitos e a saturação de linguagens acarreta o enfraquecimento da singularidade da criação artística. Paradoxalmente, a heterologia cultural surge como um efeito da esteriotipia cultural e o corpo se mantendo como fonte de todas as ilusões garante o futuro dos estereótipos. Ele prossegue constatando que o objeto da criação artística não é mais a busca pela beleza, mas sim a irrupção das fantasias coletivas. Ao analisar performances que se utilizam da desconstrução do corpo ou de sua exibição para a irrupção de fantasias, ele se aproxima da temática das modificações do corpo, analisando a ideia que se torna comum de que se pode fazer o que se quer com o corpo, em negação a fatalidade do congênito. Jeudy resvala em questionamentos dos mais interessantes ao meditar sobre a cirurgia plástica através de paralelos com a performance e a literatura e se pergunta se a cirurgia estética não seria senão um meio de se descobrir o seu “Outro”. O fracasso do belo na arte se dá também em virtude do corpo e de sua organicidade, o que o invólucro do corpo esconde a body art procura desvelar, a beleza não é senão ilusão, a transcendência se esvai diante da brutal organicidade do corpo.
Maria Rita Kehl, em artigo intitulado As Máquinas Falantes, se propõe discutir não o corpo bioquímico ou o corpo psicológico, mas sim o corpo como objeto social. Diante da dualidade que ela identifica no ocidente, entre corpo e alma, ou entre ser um corpo, ou o que parece mais em voga em nossos dias, ter um corpo, afirma o corpo próprio como “o corpo do outro”. Ao invés de ser propriedade privada, ele nos pertence muito menos do que costumeiramente imaginamos. O corpo pertence ao universo simbólico que habitamos, pertence ao Outro da linguagem. Ele é formatado pela linguagem e depende do lugar social que lhe é atribuído para se constituir. Ela teoriza que os corpos se modificam por efeito do que se diz sobre eles e do novo lugar social que isso engendra. Um corpo investido de um novo discurso corresponde a outro eu. Kehl faz uma comparação um tanto temerária do ponto de vista psicanalítico, um tanto avesso à antropologia (e vice versa), e se baseia nos estudos de Lévi-Strauss para tentar compreender melhor a “estreita dependência entre o corpo, o Eu e o Outro”.  Ao analisar um jovem candidato a xamã do norte do Canadá, o antropólogo se depara com a surpresa do jovem ao perceber que os truques do farsante, caso sejam legitimados pela comunidade, tem poder de cura e até mais poder do que um xamã genuíno que tenha perdido a credibilidade. O xamã, mesmo o farsante, promove a cura ao organizar a experiência de exceção que é estar doente, sua narrativa mítica oferece sentido ao que é singular, solitário e informulável. No texto seguinte, “A eficácia simbólica” o antropólogo analisa a cura de uma mulher com dificuldades de parto por um xamã a partir de uma narrativa mítica em que ele atualiza o mito da concepção. O mito tem o efeito de tornar aceitáveis para o espírito da doente as dores que o corpo se recusa a tolerar. Simbolizada a dor se torna tolerável, desde que acredite no xamã. A análise feita pela autora é interessante e digna de nota. Lévi-Strauss compara à eficácia do xamanismo a eficácia da cura pela palavra da psicanálise, ressaltando uma sutil diferença: na psicanálise a palavra tem outra origem, não a palavra proferida pelo analista, mas aquela proferida pelo analisando. Ao analisar a transferência, e compará-la a aceitação do xamã por sua comunidade, eu creio que ela vai longe demais e erra o alvo, a psicanálise não é nem pode ser cura por sugestão. Acerta, todavia, em minha opinião, ao asseverar que o desaparecimento dos sintomas físicos que ocorre quando o neurótico consegue colocar em palavras endereçadas ao analista algo que represente o informulável do seu desejo, e dessa formulação deduz a estreita relação entre o corpo, a linguagem e o Outro.
Em outra perspectiva, não tão distante assim das duas últimas apresentadas anteriormente, e bem menos recente, (e receio, bem mais sólida do que parece ser o gosto atual) Jung ao analisar o que é um corpo vivo, em seu artigo Espírito e Vida, afirma que a Psique é constituída essencialmente de imagens, não como uma mera justaposição, ou uma sucessão, mas uma estrutura riquíssima de sentido e uma objetivação das atividades vitais. Jung pensa de maneira antinômica, pois assim como a matéria corporal precisa da psique para ser capaz de viver, a psique pressupõe um corpo para que suas imagens possam viver.
A alma e o corpo são presumivelmente um par de opostos e, como tais, são a expressão de uma só entidade cuja natureza não se pode conhecer nem a partir das manifestações materiais exteriores nem através das percepções interiores e diretas. Como sabemos, segundo uma antiga crença, o homem surge do concurso de uma alma com um corpo. Mais correto seria falar de um ser vivo desconhecido sobre cuja natureza íntima o máximo que podemos dizer é que ela expressa vagamente a quintessência da vida. (Jung, 1986, pp. 267, 268).
Na perspectiva de Jung, vivemos sob o peso de uma reviravolta de cunho irracional, ou para usar seus termos, uma enantiodromia, que solapou a cultura e os símbolos europeus, quando aconteceu a passagem aparentemente brusca, de uma preferência sentimental e universal de cunho irracional pelo espírito para a sua atitude oposta, uma preferência de cunho sentimental universal e irracional pela matéria. A matéria, todavia, assim como o espírito, nos é algo absolutamente desconhecido, pois vivemos imediatamente apenas num mundo de imagens. A única realidade imediata é a realidade da alma e sua complexa e rica estrutura de representações. A realidade da matéria como dado objetivo, apesar de ser um pressuposto tácito de boa parte do discurso contemporâneo, assim como a irrealidade do espírito, são ambos discursos metafísicos. A maioria das coisas que se fala hodiernamente sobre o corpo, não passa, fundamentalmente, de metafísica da matéria numa perspectiva Junguiana. Jung não se propõe a reinventar a roda, entretanto, sua teorização – fundamentalmente prática e empírica – Possui uma clara base kantiana. Essa reviravolta significa que tudo o que extramundano se converte em realidade imediata, e todo o valor se fundamenta na pretensa realidade dos fatos. O que não se permite enxergar é que ambos os pontos de vista (material e espiritual) são igualmente lógicos, igualmente metafísicos, igualmente arbitrários e igualmente simbólicos.
Joseph Campbell, em seu primeiro volume das Máscaras de Deus, dedicado à mitologia primitiva descreve os ritos de passagens dos aborígenes australianos. Os jovens são removidos da cabana das mulheres por homens mascarados enquanto um dos homens utiliza um objeto especial para fazer um barulho aterrador. As mulheres dizem que o pai serpente consegue farejar o prepúcio dos jovens e eles são por fim levados pelos homens mascarados, para longe de suas mães, avós e irmãs. Por um bom tempo eles são alimentados apenas com o sangue dos homens da tribo e, em dado momento são colocados num local em separado, próximo a uma clareira onde está acontecendo um ritual e são instruídos a não olhar, aqueles que o fazem são mortos. Em seguida, como parte do ritual que os tornará homens, eles são circuncidados e depois é feito uma subincisão em seus pênis, que deve sangrar profusamente, os homens que realizam o ritual também reabrem suas subincisões e mostram que podem sangrar como as mulheres. Todo o conhecimento cosmológico da tribo, seus espíritos e divindades são encenados diante dos jovens e, quando o ritual termina eles são homens, a filha do homem que os circuncidou será sua esposa e eles terão seus papéis sociais definidos na tribo. Segundo o próprio Campbell, sua adolescência dura apenas enquanto dura o ritual, o momento de confusão e indecisão quando já não são mais meninos, nem tão poucos homens. Depois não resta dúvida, o ritual que marca seus corpos também marca as suas almas provocando a metanóia necessária a transformação de um menino em um homem.
Reparem que nesse, como em diversos outros rituais do mesmo tipo, o papel que a mulher desempenha concretamente no ritual é quase nulo, irrelevante, mas a transformação dos garotos em homens está centrada no simbolismo da mulher. É das mulheres que eles são separados, e assim como as mulheres sofrem ao dar a luz os jovens precisam mostrar que também são capazes de suportar a dor, assim como as mulheres sangram – e para muitas culturas primitivas esse fato é visto com temor e reverência – eles também devem sangrar através de suas subincisões, vaginas simbólicas em seus pênis. Entre os judeus, onde também se procura exorcizar a magia feminina e seu poder sobre a psique masculina de muitas e muitas formas, uma mulher é considerada impura quando está em seu período menstrual, e mesmo os objetos que ela toca não podem ser tocados pelos homens, sob pena de se tornarem igualmente impuros. Assim como os aborígenes, o povo judeu pratica a circuncisão no ritual do Brit Milá, no oitavo dia de nascido dos garotos o Mohel remove seus prepúcios (apenas homens podem oficiar esse ritual), o que os marca e os distingue como membros de uma comunidade específica o povo de Israel e nesse dia recebem seus nomes, ocorre seu segundo nascimento.
Mircea Eliade, em seu Xamanismo, nos fornece outros exemplos de iniciações, desta feita, não de jovens que se tornarão homens, mas de homens que através de suas iniciações se tornam os guardiões vivos do espírito de seus povos. Entre os yurak-samoiedos, a aprendizagem do ofício de xamã se inicia com o tamborim, e nesse momento os espíritos descendem sobre ele. Segundo relato do xamã Ganykka, enquanto ele tocava tambor os espíritos desceram sobre ele e o fizeram em pedaços, cortando inclusive suas mãos, e durante sete dias e sete noites permaneceu inconsciente, enquanto isso sua alma vagava na companhia dos espíritos. Temos aqui a imagem do corpo despedaçado, cortado em pedaços e da alma sequestrada pelos espíritos.
Em outra narrativa, de xamãs de avamsamoiedos, esse xamã, atacado de varicela, foi quase dado como morto, durante esse período de quase morte aconteceu sua iniciação, nesse período ele narra ter sido levado até um grande mar, e lá ouviu a voz da doença (a varicela que o acometia) que lhe dizia que ele se tornaria um xamã pelas graças do senhor das águas, depois ele escalou uma montanha onde encontrou uma mulher nua e começou a mamar em seu peito, em seguida o marido dessa mulher, o senhor do inferno, lhe deu dois guias animais para levá-lo ao inferno e lá encontrou sete tendas com os tetos rasgados ao entrar na primeira encontrou os habitantes do inferno e os homens da grande doença que arrancaram seu coração e o jogaram em uma panela. Após inúmeras outras peripécias e visões aterradoras e beatíficas, o candidato a xamã chegou a um deserto lá ele encontrou um homem nu trabalhando com um fole. No fogo havia uma panela do “tamanho da metade da terra”, o tal homem o viu e o agarrou com uma enorme tenaz, “estou morto” pensou o candidato a xamã. O homem cortou-lhe a cabeça, retalho-o em pedaços e colocou tudo no caldeirão. Cozinhou tudo durante três anos. Havia três bigornas e o homem nu forjou sua cabeça na terceira, e depois jogou a cabeça na terceira panela que lá havia, cuja água era mais fria. O ferreiro recolheu-lhe os ossos, que boiavam num rio, montou-os e os cobriu de carne. Após contar os ossos disse-lhe que havia três peças a mais, logo deveria arrumar três vestes de xamã, trocou seus olhos, furou suas orelhas tornando-o capaz de compreender a linguagem das plantas.
A riqueza de detalhes dessa narrativa iniciática se coaduna e é coerente com um sistema ritual e simbólico bem conhecido na história das religiões: o tema universal da morte e da ressurreição mística do candidato por intermédio de uma descida ao inferno e uma ascensão aos céus. Outros relatos de xamã, como os siberianos, são mais sucintos: o candidato a xamã permanece desacordado por vários dias e sonha que é cortado em pedaços pelos espíritos e depois levado ao céu e ao inferno.
O xamã tungue Ivan Tcholko relata que o futuro xamã deve ficar doente, ter o corpo cortado em pedaços e ter seu sangue bebido por maus espíritos, que na verdade são na realidade as almas dos xamãs mortos (vemos novamente o ritual de beber sangue, como entre a iniciação dos jovens aborígenes). Jogam sua cabeça num caldeirão onde é forjada com outras peças metálicas que farão parte de suas vestes cerimoniais. As mesmas experiências são observadas em outros lugares, uma mulher teleuta tornou-se xamã após ter tido uma visão em que homens desconhecidos lhe cortavam o corpo em pedaços e cozinhavam-nos numa panela. Entre os xamãs altaicos, reza a tradição que os espíritos dos ancestrais comem suas carnes, bebem seu sangue, abrem seus ventres etc. os xamãs esquimós também conhecem a experiência extática do despedaçamento do corpo seguido da renovação dos órgãos. Eles falam de um animal que fere o candidato a xamã, despedaça-o ou devora-o e depois cresce carne nova em seus ossos. Não raro o animal que tortura o futuro xamã torna-se seu espírito auxiliar. Muitos dos xamãs esquimós, ao procurarem a iniciação passam pela experiência mística de morte e ressurreição provocada pela contemplação de seu próprio esqueleto. Em toda a parte, seja a experiência extática de sonhos e visões, seja nos rituais, o esquema da iniciação segue esses passos morte (que pode ser antecedida por uma crise nervosa, doença, acidentes, ferimentos, luta com animais ferozes), descida aos infernos, ascensão às regiões superiores e por fim a ressurreição.
Em todos os processos iniciatórios descritos até agora, centenas mais poderiam ser elencados, os deuses e espíritos desempenha um papel fundamental, Campbell assim define os deuses.
(...) os deuses representam as forças protetoras que sustem o indivíduo em seu campo de ação. Ao contemplar as divindades, esse indivíduo ganha uma espécie de força estabilizadora que o coloca, por assim dizer, no papel representado por uma das divindades particular. (Campbell, 2008, p.17).
Na perspectiva de Campbell, mito não é o mesmo que história, o mito é o transcendente na relação com o presente. O mito proporciona um campo em que você pode se situar, como os exemplos anteriores demonstram de maneira dramática! O que o mito faz é apontar o transcendente além do terreno dos fenômenos. Uma figura mítica é como um compasso, com uma ponta na esfera do tempo e a outra na eternidade. A imagem dos deuses, ou dos espíritos, xamãs ou heróis, podem assumir forma humana ou animal, como vimos, mas sua referência transcende a isso. O mito não é uma alegoria, não funciona verdadeiramente de forma denotativa, um mito genuíno aponta para algo indescritível que está além de si mesmo. Quando alguém possui uma divindade como modelo, sua vida se torna transparente ao transcendente.
Segundo Campbell, o xamã é aquele que passou por uma crise psicológica e se recuperou. Um xamã mais velho dá ao jovem candidato a xamã as instruções que o ajudarão a escapar dessa situação difícil. A iniciação inclui a representação de certos ritos psicológicos que permitem ao futuro xamã retornar ao contato uma vez mais, passando a ser capaz de cantar seu próprio canto. Ele descobre o sentido transcendente e anagógico de seus sonhos e visões, e o destino que elas encerram. Ao mergulhar em seu próprio inconsciente o que esse indivíduo encontra é o inconsciente de toda a sociedade ao qual pertence – nas sociedades primitivas as pessoas estão atadas a um horizonte estreito e compartilham um sistema limitado de problemas psicológicos – dessa forma, o xamã se converte num professor e guardião da tradição mítica, torna-se assim isolado e temido, pois adquire aquilo que Jung chamou de prestígio mágico, torna-se uma “personalidade mana”. Não é fácil ser um xamã, tão pouco é uma posição invejada ou desejada pelos demais.
A maneira como atua o xamã, e a maneira como atua a iniciação é a maneira como o mito atua. Campbell considerava que o mito podia desempenhar quatro funções, chamadas por ele de: mística, cosmológica, sociológica e psicológica. Os símbolos míticos proporcionam um sentido de efetiva participação na transcendência, esses símbolos possuem a função de auxiliar o indivíduo a atravessar vários estágios e crises da vida de maneira significativa, isto é, a compreender a vida de maneira íntegra. A metáfora religiosa nos coloca em harmonia com nossa cultura, consigo mesmo, com o universo e com o mysterium tremedum da existência. A primeira função de uma mitologia viva e atuante é conciliar a consciência com as precondições de sua própria existência. A vida é algo bastante horrendo, um ciclo sem fim de morte e sofrimento, e vida está constantemente se alimentando de vida. A primeira função de uma ordem mítica é reconciliar a consciência com esse fato. A segunda função consiste em apresentar uma imagem coerente do cosmos, uma imagem que conserve e induza uma sensação de assombro. A terceira função de uma ordem mitológica é validar e preservar um dado sistema sociológico. Uma iniciação não tem qualquer sentido se o segundo nascimento que ela proporciona não permitir a adaptação a uma dada sociedade. Quando há uma ordem mítica vigente, viva e energizada pelo poder de suas metáforas, as leis da sociedade em que ela atua têm a mesma autenticidade das leis do universo. Por fim chegamos a quarta função apontada por Campbell.
O mito deve fazer o indivíduo atravessar as etapas da vida, do nascimento à maturidade, depois à senilidade e à morte. A mitologia deve fazê-lo em comum acordo com a ordem social do grupo desse indivíduo, em comum acordo com o cosmos – conforme o grupo o defina – e em comum acordo com o mistério estupendo. (Campbell, 2008, p.37).
O xamã, ao atender ao seu próprio canto, as imagens visionárias que os acometem se tornam centrados, e garantem paz a si mesmos quando entoam canções e executam ritos. O que é um rito? Todos nós deveríamos saber, pois mesmo em nossa sociedade fluida vivemos em meio a muitos deles, seja o batismo, o casamento, a comunhão, a primeira eucaristia, o Bar Mitzvah, o Brit Milá, todos são ritos que, infelizmente, para a maioria, degeneraram em formalidade vazia e sem sentido. O ritual é simplesmente a representação do mito. É a repetição do mito vezes sem conta que torna o indivíduo transparente ao transcendente. É assim que o mito funciona.
Chegamos assim a uma encruzilhada, falei antes que justamente o que nos faltava era o rito. No título desse ensaio, logo depois de rito há reticências, pois sem mito não há rito, ou talvez, apenas formalidade vazia de sentido e de efetiva atuação. Todavia, mesmo em nossos dias, ainda há aqueles que decoram seus corpos com tatuagens, ou que o escarificam ou o marcam de maneira permanente. Essas práticas não possuem – ou apenas algumas como o Brit Milá – relação de causalidade com essas práticas ancestrais que utilizei como exemplos e amplificação, todavia elas possuem uma conexão, e aqui as palavras de Certou de inspiração psicanalítica adquirem seu sentido devido, aqui vemos como o passado ressurge no presente sob disfarce. Aqui não há nada de líquido, mas assim como a experiência do xamã, de ser reduzido aos ossos, aquilo que há de indestrutível e adamantino em seus corpos e almas, nos deparamos com algo sólido como rocha, onde as águas do presente se quebram incapazes de mover ou desgastar essa rocha que se eleva sobre as ondas, impassível, pois já viu quebrar águas de eras sem fim desde que o homem adquiriu a maior das maravilhas cósmicas: a consciência. Me parece, que existe uma conexão entre os ritos primitivos, as marcas escarificações e tatuagem utilizadas nos brutais ritos de passagem e as tatuagens e marcas corporais dos nossos dias, entretanto essa conexão não é causal, mas uma conexão pela raiz, irracional e psíquica (Jung, 1981).
Nossa espécie possui uma característica que a faz diferente dos outros mamíferos, nascemos muito cedo, e passamos por um período de dependência com relação aos nossos pais muito longo, que dura por volta de doze anos, durante esse período somos incapazes de cuidar de nós mesmos.  Devemos, em determinado ponto de nossas existências, passar desse estado de dependência a um estado de independência com relação aos nossos pais. Isso certamente leva a uma crise, ao menos para a maioria, essa transformação nesse momento de crise é um problema recorrente em todas as sociedades. A psique do adulto jovem deve abandonar o padrão de dependência e adotar o padrão adulto de responsabilidade. Em todas as sociedades essa transformação é alvo de grande preocupação e é justamente para esse momento que servem os ritos de iniciação das sociedades primitivas (Campbell, 2008).
O “pai”, psicologicamente falando, faz às vezes de educador do espírito, ele transmite as regras e anseios da sociedade e representa e informa a criança o papel que o adulto deve assumir. Esse é um tema que ressurge incontáveis vezes nos mitos das mais variadas culturas: a mãe gera o corpo físico, o pai o ser espiritual. O que a sociedade requer de nós é que sejamos capazes de assumir responsabilidades de imediato, sem nos corrigirmos. Espera-se que não voltemos correndo ao papai e a mamãe, mas que nos tornemos papai e mamãe. Alguém que está dividida entre as duas atitudes – de dependência e de responsabilidade – é ambivalente e neurótica e só será genuinamente um adulto quando conseguir enfrentar os desafios sem voltar correndo, internamente, para os pais. A função dos ritos de puberdade nas culturas mais antigas era pôr em prática essa transformação psicológica, que torna o individuo capaz de assumir responsabilidades. Eles serviam para nos acordar, para despertar para a vida adulta e deixar a infância para trás. O ritual garante essa Metanóia através da transferência das imagens anteriores de pai e mãe para as imagens ancestrais da tribo. Quando o ritual termina, o garoto não é mais um menino, seu corpo e sua psique mudaram. Ele se alimentou do sangue dos homens da sua tribo, foi banhado no sangue desses homens, seu corpo foi marcado de forma indelével. Depois ele é enviado de volta a para junto das meninas, lá lhe aguarda a sua futura esposa, filha do homem que o circuncidou, ele não tem escolha. Nas sociedade de cultura tradicional a maturidade é conditio sine qua non viver dentro das fronteiras da cultura. O indivíduo se torna o veículo da ordem moral, ele se torna a própria ordem moral. Essas sociedades enfrentam problemas de sobrevivência em confronto com a natureza que a própria existência da sociedade depende dessa transformação. O indivíduo deve ser iniciado de tal maneira na ordem social que suas reações espontâneas estejam de acordo com as necessidades da sociedade (Campbell, 2008).
Em nossa sociedade contemporânea podemos nos dar ao luxo de sermos inadaptados. Além disso, a exigência que se faz as nossas crianças é outra bem diferente, a de que se tornam indivíduos, que desenvolva uma personalidade individual e não simplesmente que se transforme num papel social. Estamos imersos até o pescoço no que alguns chamam de “paradoxo da pós-modernidade”.
Nos ritos de puberdade se expressa uma premente necessidade de separar os jovens de suas mães, depois de findo o rito eles passam a conviver com os homens na cabana dos guerreiros, em algumas sociedades primitivas, o jovem recentemente iniciado na vida adulta tem relações sexuais com a mãe logo após os rituais, para comprovar que aquela não é mais sua mãe, seu corpo não é o mesmo que recebeu dela ao nascer e seu espírito não é mais o mesmo, ele renasceu no seio da tradição de seu povo. Há entre os povos primitivos um temor do poder feminino, que é aplacado de várias maneiras. Mesmo em sociedades mais sofisticadas, como as sociedades mulçumanas, por exemplo, ainda ouvimos claramente os ecos desse temor ancestral. Heinmirich Zimmer, grande orientalista e estudioso da arte e literatura indiana, ao se referir aos mistérios da tradição do subcontinente indiano disse.
Só a Deusa conhecia aquela energia secreta e onimovente dos mundos, que levou os deuses à segunda vitória; era o poder que possuíam, do qual não tinham consciência. Eles achavam que eram fortes por si mesmos, mas sem essa força, ou contra ela, mal poderiam vergar uma folha de grama. A deusa conhecia a força universal, que os sacerdotes védicos chamam de brahman e que os hindus chamam de sakti, pois sakti, ou seja, a energia, é a essência e nome da própria Grande Deusa, e por isso ela podia explicar a misteriosa essência para os seres, ela podia ensinar-lhes esse segredo – pois era o próprio segredo (Zimmer, apud Campbell, 2003, p.218).
Campbell citou Zimmer no início de uma de suas memoráveis palestras para falar desse poder feminino ao qual todos os ritos iniciáticos parecem servir de ritual apotropáico, de defesa e proteção, contra a mãe ogro, o espírito que é ao mesmo tempo fonte de todas as coisas e morte e aniquilação do mundo criado. No mito japonês, Izanagi que junto de seu irmão e esposo Izanami criou o mundo é, paradoxalmente, o espírito da morte que habita as profundezas do reino de Yomi, o mundo subterrâneo. Na perspectiva indiana, todo o poder, sakti ou brahman, é feminino, por isso o feminino representa a totalidade do poder, e o masculino é apenas um agente do poder feminino. No hinduísmo – bem como no xintoísmo japonês – o sol é feminino e a lua é masculina. No hiduísmo, a lua (shiva) nasce do sol e morre nela todos os meses, Parvati, a consorte do grande deus shiva é o poder solar. Em alto alemão, o sol die Sonnen, é feminino, num eco distante dessa ordem mítica que apresento aqui. Na simbólica egípcia, o céu é feminino. Na imagem egípcia do faraó em seu trono, o trono é a fonte de todo o seu poder e autoridade, o trono é a deusa Ísis. Campbell compara essa imagem ao simbolismo cristão do menino Jesus representado no colo da virgem Maria, assim como o faraó no trono, ela é o seu poder, o deus governa o mundo, mas ela está sempre por trás dele.
Na velha Hélade também se pode ouvir os ecos desse poder nas palavras enigmáticas de Heráclito. ψυχηισιν θάνατος ΰδωρ γενέσθαι, ΰδατι δε θάνατος γην γενέσθαι, εκ γης υδωρ γίνεται εξ ΰδατος δε ψυχή. “É mortal para a alma se tornar água, e é mortal para a água se tornar terra, água vem à existência saindo da terra e almas saídas da água”. Spengler certa vez disse “O homem faz a história, A mulher é a história”. Na perspectiva Junguiana, “o princípio básico do inconsciente é o Eterno Feminino”.
O poder masculino surge com os semitas e árias indo-europeus. Campbell, ao analisar praticamente todas as mitologias existentes chega a uma conclusão das mais interessantes sobre o lugar do feminino: onde a agricultura é o principal sustento, há poderes terrenos e deusas. Onde a caça predomina é a justificativa masculina que justifica a matança de animais. De modo simples, de toda a complexidade dos mitos de todas as épocas, Campbell articula que o “masculino” é igual à ordem social, o “feminino” a ordem natural. A “mulher” é a vida, a totalidade, na perspectiva simbólica a função do homem é agir, a função da mulher é existir. Segundo Zimmer, a mulher no simbolismo da mitologia representa a totalidade do que pode ser conhecido e o herói é aquele que passa a conhecer. Na mitologia sumeriana, Marduk para criar o mundo despedaça a deusa dragão Tiamat, que representa o oceano primordial fonte de toda a criação, e com seus pedaços ele recria o mundo a sua imagem. No mito de Perseu (que analisei em outro estudo) o herói só consegue cumprir o seu destino e desposar uma jovem princesa após decapitar a pavorosa medusa – paradoxalmente do pescoço da medusa, a face da morte, nasce o pégaso e o gigante Crisaor, morte e criação novamente unidas no símbolo mítico. O herói russo Ivan cumpre seu destino após subjugar a bruxa Baba Yaga, mesmo na moderna psicanálise lacaniana, o papel da assim chamada “mãe fálica” pode ser crucial para o destino de seu filho.
Na perspectiva mítica o homem precisa fazer, e para tanto, precisa desligar-se da mãe e encontrar um modo de “fazer” – pode ser o seu modo individual ou o modo da tribo – o que normalmente é algo doloroso, a mulher só precisa existir. Os rapazinhos precisam ser transformados em homens, de maneiras cruéis e chocantes. A menina ao chegar à puberdade percebe com clareza que seu corpo não lhe pertence, a natureza se encarrega através de seus meios misteriosos e maravilhosos de transforma-la numa jovem mulher, pronta para dar a luz a uma nova vida, o que mesmo em nossa sociedade líquida e cínica, é um milagre e tanto. O que não significa que a menina não sente medo e insegurança nessa passagem, e que sua atitude também pode ser ambivalente. Como no delicioso conto de fadas da princesa e o sapo, onde todas as imagens majestosas da jornada interior estão representadas de maneira singela.
O que todas essas histórias e ritos representam é um drama anímico, toda criança apresenta uma ligação inconsciente com os pais, um estado primitivo de indiferenciação. Esse estado primitivo de identidade inconsciente, em virtude de sua inconsciência apresenta uma enorme inércia e é capaz de se opor ferrenhamente a qualquer desenvolvimento espiritual mais elevado. No ocidente, a igreja representava o substitutivo espiritual mais elevado a essa ligação com os pais, sendo capaz de libertar o indivíduo dessa inércia inconsciente. Os rituais iniciáticos e seus simbolismos proveem aos jovens dessas tribos primitivas novos relacionamentos que os libertam dessa relação com as figuras parentais e isso permite que se desenvolvam plenamente como adultos. Jung afirmou certa feita que “Não há uma única forma de tragédia humana que não provenha realmente desta luta do eu contra o inconsciente” vemos a verdade dessa afirmação de maneira eloquente em tudo o que foi exposto.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Mais uma vez a banalidade do mal

Hannah Arendt, filósofa judia, ao se deparar com os carrascos nazistas no julgamento de Nurenberg foi tomada de um grande espanto, pois toda aquela crueldade fora praticada não por monstros ou pessoas mentalmente desequilibradas, mas por pequenos burgueses de aparência pacata e algumas vezes quase bovina. Foram esses, que poderiam ser seus vizinhos, ou colegas pacatos de trabalho que, ao receber as ordens para perpetrar o maior horror do século XX, o holocausto de seis milhões de judeus, o fizeram sem titubear, estavam apenas seguindo ordens. Pode-se pensar que esse é um fenômeno restrito ao passado, ou quem sabe, quiçá restrito aos alemães, mas isso não passa de falácia. Em nossa história recente, pacatas donas de casa foram às ruas apoiar nossa sangrenta ditadura militar, e Jung certa feita afirmou que o fenômeno do nazismo poderia ter surgido em qualquer parte da Europa. Hodiernamente, o que me preocupa e me leva a refletir não são os acontecimentos de nossa história recente, mas sim o que se passa nos dias de hoje, quando pacatos bancários defendem por via das redes socais ideias de extrema direita e facistóides.

Ao escrever essas linhas, pretendo traçar duas linhas de argumentação, que se entrelaçam: uma histórica – com a qual inicio – e uma psicológica, que vai ao coração do problema. Recentemente pude ver em imagens no Facebook, o novo ágora, mensagens de solidariedade aos PMs paulistas que executaram a sangue frio um suspeito, ou mensagens mais genéricas que diziam coisas como “bandido bom é bandido morto, enterrado em pé para não ocupar muito espaço, operação senta o dedo, essa eu apoio” o texto vem acompanhado de imagens das mais chocantes e sangrentas. Esse tipo de mensagem carrega mesmo que tacitamente – e isso é um problema ainda maior – a ideia de que “bandido” não é um lugar, mas um tipo, no sentido caracteriológico, como se existisse um “bandido nato” incapaz de ser outra coisa que não bandido. O que remete as ideias de Lombroso no final do século XIX, e por mais que essas mensagens de facebook não transmitam uma ideia de raça, certamente passam pela noção de que se nasce bandido.

Há igualmente uma incompreensão do que significa os direitos inalienáveis que são o esteio da democracia ocidental, logo o ataque a eles significa uma espécie de fascismo disfarçado ou apenas parcialmente consciente. Nosso regime político atual se caracteriza pela ideia iluminista de igualdade: todos nascemos iguais. É o oposto da ideia que norteava o antigo regime, o absolutismo monárquico europeu, de que nascemos desiguais. O nascimento, como nobre ou plebeu, decidia o seu destino: uns destinados a comandar e outros a servir. Alguns acumulando direitos e privilégios e os demais acumulando apenas obrigações. A “era das revoluções” como a chamou Hobsbawn mudou radicalmente essa concepção de mundo. O absolutismo começou a ruir com a adoção na Inglaterra do habeas corpus, ou seja, mesmo reis e nobres não poderiam prender alguém sem motivos legalmente válidos. Em seguida, na mesma Inglaterra, a monarquia constitucional colocou até mesmo o rei sob a tutela da lei. Na perspectiva do liberalismo burguês de viés iluminista todos nascemos com direito a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Ao negar o direito de alguns, que seriam qualitativamente diferentes dos demais, ou simplesmente ocupariam uma posição abjeta, o “bandido”, estamos retrocedendo ao pensamento do antigo regime, a lógica da desigualdade natural. O fascismo depende do totalitarismo, da desigualdade, assim como a democracia da igualdade, e da isonomia.

Existe algo curioso acerca dos direitos que esses criptofacistas parecem desconhecer, ou julgam por bem omitir: ou eles são para todos, ou não são para ninguém. Afinal, quem decide quem é bandido? Nos regimes totalitários quem decide isso é o estado, e não a sensibilidade da classe média que se arvora de extrema direita. Se defendemos uma polícia assassina, que faz às vezes de juiz júri e executor, estamos condenando a nós mesmos a sermos “bandidos”, pois a única distinção possível entre “bandido” e “cidadão” na democracia é o sistema judiciário pois somos todos inocentes até que se prove o contrário. Quem garante que numa madrugada o pacato bancário que vibra com a polícia assassina não será parado por uma blitz e, ao ter esquecido os documentos ou se negado a dar propina, não será barbarizado ou executado sumariamente como “bandido”? Ninguém garante, pois a única garantia que temos é o estado de direito. Ao enquadrar alguém como bandido, e ao jogar toda a culpa sobre os ombros dessa pessoa por sua condição, ou sobre seu nascimento ou genética, faz-se tabula rasa de duas coisas: as condições sociais e ao fato de que todos nós estamos sujeitos ao mal. Mesmo o pacato bancário, que gosta de apoiar a polícia assassina, ou que se julga acima do bem e do mal ao ponto de julgar quem é ou não bandido, pode, dependendo da temperatura dos afetos, matar, agredir, ou quem sabe algo até pior.

Mas qual é a psicologia do pacato bancário? Que na realidade, se não tivermos cuidado é também a nossa psicologia e, mesmo com todos os cuidados, num nível profundo, é também a nossa. É preciso que nos lembremos sempre, como disse Jung, que o dom da reflexão crítica e da razão não constitui uma propriedade incondicional do homem e, mesmo onde ele existe, ele se mostra muitas vezes instável e oscilante. O mesmo Jung, em ensaio intitulado “Presente e Futuro” afirmou: “Se o Estado de direito sucumbe, por exemplo, a um acesso de fraqueza, a massa pode esmagar a compreensão e reflexão ainda presentes em indivíduos isolados, levando fatalmente a uma tirania autoritária e doutrinária.”. Como as manifestações do facebook parecem atestar, essa é uma possibilidade que está muito viva. É difícil para um intelectual como eu admitir, mas se Jung acrescentou algo a nossa cosmovisão, foi a percepção do fato inelutável de que a argumentação racional só é possível até o ponto onde as emoções não tenham atingido um certo ponto crítico, pois depois disso a razão sucumbe e se torna ineficaz, restando em seu lugar slogans (bandido bom é bandido morto) e desejos quiméricos que levam progressivamente a uma epidemia psíquica.
A psicologia do pacato bancário – veja bem não digo aqui que se trata de uma personalidade doentia, é algo bem pior ele é perfeitamente normal – se sustenta em quimeras, preconceitos afetivos e ressentimentos fanáticos que fazem apelo à irracionalidade coletiva, usualmente, em pessoas normais ou em tempos de paz, esse dado coletivo de irracionalidade repousa sob o manto da razão. Mas sabemos que a paz é apenas um desiderato, um estado raramente alcançado.  Talvez a psicologia do pacato bancário não seja essa que eu descrevi, mas como o inconsciente é um dado irracional inalienável de natureza existencial, ele está sujeito, sem o saber, ao contágio psíquico de espíritos desse tipo, que existiram sempre em todas as épocas, apenas esperando o momento certo para deflagrar um incêndio que nos consume a todos assim que suas chamas se elevam furiosas aos céus.

Essas infecções psíquicas, cujos sinais de seus modestos inícios podemos ver nessas nefastas publicações no facebook, só acontecem e se propagam em virtude do conhecimento muito limitado que o pacato bancário – sendo ele normal – possui de si mesmo. O que acontece ao pacato bancário (todos nós em algum nível ou em algum momento nos comportamos como pacato bancário) é que ele (nós) confundimos “autoconheciemento” com o conhecimento da personalidade consciente. Infelizmente o eu conhece apenas os seus próprios conteúdos desconhecendo os conteúdos do inconsciente. Medimos nosso pretenso autoconhecimento por aquilo que o meio social sabe sobre nós e não a partir do fato psíquico real. Cito Jung textualmente, pois nesse ponto, ele toca no preconceito fundamental do pacato bancário.

O que comumente chamamos de "autoconhecimento" é, portanto, um conhecimento muito restrito na maior parte das vezes, dependente de fatores sociais - daquilo que acontece na psique humana. Por isso, ele muitas vezes tropeça no preconceito de que tal fato não acontece "conosco", "com a nossa família", ou em nosso meio mais ou menos imediato. Por outro lado, a pessoa se defronta com pretensões ilusórias sobre suposta presença de qualidades que apenas servem para encobrir os verdadeiros fatos.

O principal preconceito do pacato bancário é justamente esse, ao ler pelos jornais ou assistir aos cruentos programas de notícias policiais sobre assassinos e estupradores, traficantes e outros bandidos perigosos, de que tudo isso não acontece com ele ou seu meio imediato, ele não está sujeito a fazer nada daquilo que ele assiste com indisfarçável prazer na tela da TV, e que lhe permite viver sua ilusão por mais um dia, e reforça sua crença em suas pretensas qualidades. No passado, entre os antigos judeus, havia um ritual em que um bode periodicamente se tornava o receptáculo de todos os pecados da tribo e era lançado para morrer no deserto de Azazel de fome e sede. Não temos mais esse ritual, mas esse funcionamento típico não desapareceu de nossa alma, infelizmente nos dias de hoje, tão modernos, queremos exorcizar e matar nossos pecados em nossos semelhantes ah! Desculpem, não são nossos semelhantes, são bandidos! Esse é um dos preconceitos afetivos que sustentam o discurso e a ação do pacato bancário. Ao nutrir esses preconceitos e quimeras, nós (o pacato bancário) ficamos sujeitos a infecções psíquicas, pois só podemos evitá-las quando sabemos o que nos está atacando, como, onde e quando isso se dá. Ao permanecermos na inconsciência, enxergando nossos semelhantes como seres abjetos absolutamente diferentes de nós, nos condenamos a arder nas chamas do incêndio coletivo que aquelas personalidades que vivem sob a influência de fatores inconscientes doentios e perversos esperam para iniciar.

Nunca é fácil olhar para nós mesmos, mesmo as escrituras expõem esse fato com clareza Mateus 7.5 “Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.” O pacato bancário se comporta como o proverbial hipócrita, pois vê sua escuridão projetada de maneira distorcida nos bandidos, tornando-se presa fácil da contaminação psíquica que acompanha o discurso totalitarista e fascista. É fácil apontar o dedo para o outro, mas uma vez mais lembro que todos nós somos o pacato bancário, e todos temos a responsabilidade de nos mantermos, o maior tempo possível, racionais, e para tanto, convém conhecer o que há de irracional em nós, em nós e não em nosso semelhante. Do contrário veremos o passado se repetir de maneira funesta, pode até ser que dessa vez não seja eu e outros judeus e descendentes de judeus a queimar em holocausto, mas mesmo assim, essa perspectiva deve ser combatida por aquele pequeno percentual da população capaz de enxergar esse estado de coisas, seja lá quem os pacatos bancários resolvam queimar dessa vez, em seu mal banal e cotidiano.