Venho estudando e praticando o Budismo desde os meus quinze anos, já se vão um bom par de anos, começo a ficar velho e somente depois de todos esses anos de prática e reflexão começo a ter algum vislumbre sobre o significado de algumas das historietas zen que tanto me fascinaram em minha juventude. Essa que vou tentar esclarecer, em particular, sempre me pareceu um enigma insondável e apenas no mês de Dezembro do ano passado, alguns fatos da minha vida me levaram a ter um lampejo de compreensão. Não é ocioso afirmar uma vez mais, como sempre faço ao tratar dessas singelas parábolas, que eu não possuo qualquer mérito espiritual, ou passei pelos rigores do treinamento a que os mestres do Dharma normalmente são submetidos, no máximo, posso argumentar ao meu favor minha sincera dedicação a esse tema por longos anos e o estudo com muitos mestres realizados. Mesmo assim, meu ponto de vista deve ser encarado com desconfiança e, uma interpretação criativa e única deve ser o objetivo daqueles que se aproximam dessas histórias, ou ao menos, um coração aberto para ser genuinamente tocado por sua simplicidade e beleza. Passo a história propriamente dita e depois a sua interpretação.
Uma velha construiu uma cabana e por vinte anos ajudou um monge em seu aperfeiçoamento pessoal. Todos os dias, uma bela jovem lhe levava as suas refeições. Um dia, a velha senhora resolveu testar o resultado dos esforços encetados pelo monge e ordenou a jovem que levava a comida “quando você for lá, vamos ver como anda seu aperfeiçoamento pessoal. Abrace-o e veja como ele reage”. A bela jovem deixou a comida para o monge e, em seguida, o abraçou ternamente e perguntou “como se sente?”, “Como uma árvore seca num penhasco; de um dia gelado de inverno...” foi a resposta que obteve. Ao ouvir o que o monge dissera, a velha ficou furiosa e ateou fogo a cabana. “Vinte anos perdidos com um idiota!” Vociferou a velha ao ver a cabana arder.
Essa curta parábola versa sobre aquilo que é o coração do budismo Mahayana, do qual o Zen é uma das muitas vertentes: a Compaixão. O budismo Mahayana se caracteriza pelo voto do Bodhisattva, alguém que não busca a iluminação para si próprio, mas em benefício de todos os seres, pois é capaz de enxergar claramente através da ilusão da separatividade e da dualidade, e com essa visão clara e precisa, percebe que não há diferença entre ele mesmo e todos os demais seres, que toda a diferença faz parte do véu de Maya. Campbell refletiu longamente sobre a venerável sabedoria do dito sânscrito Tat Tvam Asi, “tu és isto”. O budismo Mahayana baseia-se nessa premissa, e, o Bodhisattva, é aquele que escolheu viver em júbilo em meio às tristezas do mundo. Ele não o abandona em definitivo ao entrar no Nirvana, ao invés disso, ele faz o voto de renascer em incontáveis vidas para beneficiar todos os seres “até que o último talo de grama alcance o estado de bem aventurança”. Podemos perceber essa verdade singela na bela prece dita pelos budistas tibetanos ao dedicar os méritos espirituais de suas práticas:
“Ao longo de minhas muitas vidas e até este momento, todas as virtudes que tenha alcançado, inclusive o mérito gerado por essa prática, ofereço para o bem-estar dos seres sencientes.
Possam a doença, a fome, guerra e sofrimento diminuir para todos os seres, enquanto sua sabedoria e compaixão aumentam nesta e em vidas futuras.
Possa eu claramente perceber todas as experiências como sendo tão insubstanciais quanto o tecido do sonho durante a noite e imediatamente despertar para perceber a manifestação de sabedoria pura ao surgir de cada fenômeno.
Possa eu rapidamente alcançar iluminação para trabalhar sem cessar pela liberação de todos os seres”.
Todos os méritos, toda a busca, todo o caminho espiritual é dedicado a toda forma de vida senciente. A prática da compaixão é o coração do Mahayana, em virtude disso é que se pode perceber que a atitude seca e distante do monge de nossa história é profundamente equivocada, ainda presa a ilusão da dualidade. Certa feita, após um longo e cansativo dia de estudos e ensinamentos, em que atuei como tradutor, minha professora se reuniu com alguns alunos mais antigos para lhes transmitir alguns ensinamentos de Tara Verde. Outra pessoa estava atuando como tradutor e eu permaneci por perto por apenas alguns instantes e entreouvi uma pergunta interessante sobre a prece acima “mas se eu dedicar todos os méritos da minha prática a todos os seres sencientes, como é que eu fico?” a resposta de minha mestra foi bastante inspiradora e um tanto engraçada “todos” disse ela “inclui você também”.
Não me espanta que eu tenha levado tanto tempo para ter esse pequeno vislumbre sobre essa historieta, pois, a despeito de meu esforço e sinceridade no caminho budista, a compaixão é algo que costumeiramente me escapa. A compaixão está intimamente associada a Ahimsa, a não violência, e, talvez, minha disposição excessivamente combativa me leve a ter dificuldades com esses temas tão importantes. Eu também tinha grande dificuldade para compreender a diferença que normalmente se faz no budismo entre “compreender o ensinamento e realizar o ensinamento”. Paradoxalmente, a minha grande dificuldade em compreender a compaixão me levou a entender melhor essa sutil diferenciação. Para compreender um ensinamento tudo o que se precisa é de inteligência mediana, ter prestado atenção e ser capaz de se recordar dele. Quase qualquer pessoa que conheça o Prajna Paramita, o sutra do coração da sabedoria, é capaz de recitar de cor seu conceito de vacuidade “vazio é forma, forma é vazio”. Realizar o ensinamento, todavia, significa algo bem diferente, significa que esse ensinamento foi capaz de alterar a sua visão e, em decorrência disso, alterou para sempre suas ações e passa a orientar a forma como você passa a reagir a certos estímulos internos e externos. Significa igualmente, que algum véu de ignorância, algum obscurecimento, foi removido de seus olhos, que sua consciência se expandiu. Tal expansão de consciência significa igualmente uma responsabilidade, um fardo. “ignorance is bliss” dizem os ingleses, quando deixamos para trás algum grau de ignorância, somos igualmente obrigados a nos confrontarmos conosco mesmos. Não é mais o vizinho que é um sovina, ou a colega de trabalho que é chata e fofoqueira, o foco se desloca para nós mesmos, pois nos tornarmos responsáveis por coisas que não encarávamos como pesos a carregar devido ao fato de os vermos apenas nos outros. A realização do ensinamento demanda um posicionamento moral diante da vida e de nossas próprias atitudes, do contrário, ele permanece apenas no reino das idéias abstratas, sem carne nem sangue, sem vida. Apenas algo com o qual entretemos o nosso intelecto e que, muitas vezes, o samsara se apropria dessas idéias e nos enreda ainda mais em nossa infantilidade e irresponsabilidade, nos tornando ainda mais obstinadamente ignorantes, mas inflados com uma falsa sabedoria que dificulta ainda mais a verdadeira realização. Supomos termos descoberto as chaves da sabedoria, mas elas permanecem empoeirando em um canto de nosso intelecto e as portas da realização permanecem fechadas como sempre.
A atitude de usar essas chaves, realizar o ensinamento, demanda coragem e esforço, e um empenho em mudar a nós mesmos, um esforço em enxergar com clareza e precisão, o que significa abandonar muitos comportamentos e atitudes habituais, e deixar de lado a preguiça e a estase espirituais. Decorar palavras bonitas, vestir roupas rituais coloridas, raspar a cabeça, ou conversar frivolamente sobre os ensinamentos, não adianta de nada se nosso coração não participar desse processo, Campbell gostava de citar um dito espirituoso de um renomado mestre indiano “não procure a iluminação a menos que a procure como um homem que tem os cabelos em chamas procura por uma lagoa”. O valor dos ensinamentos deve nos levar a ação, ou ao menos a reflexão sincera, deve existir um sentido de urgência e necessidade, do contrário, são um passatempo que podem, até mesmo, nos desviar de nossa verdadeira natureza. Sem atribuirmos a eles esse valor, se não vemos essa premente necessidade, pois estamos todos enredados em emoções aflitivas e hábitos mentais que nos levam a ver de maneira distorcida e que criam as causas e condições de nosso próprio sofrimento, nada nunca muda. Sempre será culpa de alguém, sou infeliz por que não tenho muito dinheiro, ou meu chefe torna a minha existência miserável, minha esposa me chateia, numa lista interminável de mentiras piedosas que estão sempre envolvidas com o desejo e a aversão.
No meu caso, me debato até hoje para ser alguém mais compassivo, ou, ao menos, para compreender melhor o que seja a compaixão. Algo que suspeito, deve me tomar ainda muitos anos de reflexão e dedicação, antes que possa me considerar alguém genuinamente compassivo. Espero sinceramente, pelo bem de todos os seres sencientes, conseguir isso ainda nesta vida.