Em
breve o curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), será
transferido do Centro de Ciências Humanas (CCH) para o Centro de Ciências da Saúde
(CCS). Essa é uma decisão que foi tomada pelas instâncias superiores da
administração da Universidade e parece irrevogável, mesmo assim parece que uma
tal mudança torna fortuito e até mesmo urgente discutir o lugar da Psicologia
entre essas duas grandes áreas das Ciências Naturais e das Ciências do Espírito,
debate que não é novo, mas que se torna atual diante dos recentes
acontecimentos.
Um
empreendimento como esse não é isento de vicissitudes, que não podem ser
negligenciadas ou escamoteadas, mas precisam ser encaradas, pois não podem
impedir que se faça essa reflexão. Talvez a maior dificuldade em se pensar o
que me proponho aqui seja a falácia contida no termo “Psicologia”. Ora, não há,
como bem aponta Antônio Gomes Pena, uma, mas várias Psicologias. Ao falar do
lugar da Psicologia entre esses dois campos científicos, estamos subsumindo
essas diferenças de que a suposta “Psicologia” na realidade está eivada.
Thomaz
Kuhn, em seu “A estrutura das revoluções científicas” propõe o termo
“Paradigma”, hoje muito em voga e bastante vulgarizado. Esse termo foi pensado
para as ciências da natureza, como, em linhas gerais, uma maneira unificada de
enxergar o mundo e resolver problemas científicos. Thomaz Kuhn usa até mesmo a
metáfora do paradigma como óculos que o cientista usa para enxergar o mundo. O
próprio Thomaz Kuhn admite, todavia, que seu conceito não se aplica as Ciências
do Espírito, mesmo os termos “ciência não paradigmática” “crise” e “ciência
normal” se tornam complicados ao se pensar esse campo. A Psicologia, seja ela
pertencente a um campo ou outro, ou ambos (talvez até nenhum) não possui um
paradigma unificado, existindo na realidade muitas Psicologias. Essas
“Psicologias” na maioria das vezes possuem pressupostos epistemológicos
completamente diversos entre si, e suas teorias são absolutamente
contraditórias.
Isso
torna complicada, para dizer o mínimo, qualquer metodologia que se arvore a se
aproximar de tema tão espinhoso. A saída que pretendo utilizar aqui, e que
talvez não seja a melhor, mas é a saída possível, é falar a partir dos pontos
de vista de duas dessas “Psicologias” – nesse caso as aspas são absolutamente
necessárias – a Psicanálise e a Psicologia Analítica. A escolha recai sobre
essas duas teorias por uma razão de extrema importância e outra das mais
prosaicas. A primeira é a inegável importância e rigor epistêmico de ambas, e o
fato de as teorizações desses dois campos poderem lançar luzes sobre nosso
dilema. A segunda, mais prosaica, é a de que eu não me autorizo a falar de
nenhum outro dos muitos campos da Psicologia, não os estudo com a devoção e
profundidade com que me dedico aos dois campos já citados e que um estudo dessa
ordem exige. Logo, se algum de meus leitores se sentir incomodado com alguma
ausência que julgue importante para esse debate, peço um pouco de paciência
para com as minhas limitações teóricas e atenção para a enormidade de um
empreendimento que ambicionasse trazer todos os mais importantes pontos de
vistas da Psicologia(s). Dito isto, é importante deixar claro logo de início
que se trata de um empreendimento que parte de um ponto de vista
histórico/epistemológico, Ne sutor supra crepidam!
A
Psicanálise surge em meio justamente ao debate entre as assim chamadas Ciências
da Natureza (Naturwissenchaften) e as
Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften),
que foi chamado de “querela dos métodos” (Methodenstreit)
que eclodiu em 1883 – justamente no momento em que Freud esboça sua prática
médica. Por essa época surgiam às chamadas ciências do homem ou do espírito, ou
ainda, ciências morais. O debate se dava justamente na separação entre a esfera
da natureza susceptível aos métodos galileanos, e a esfera da história e do
homem que necessitava de uma metodologia sui
generis. Como podemos contemplar com
clareza, nosso problema não é novo. Duas palavras são cruciais para se
compreender essa diferença no que concerne aos métodos: o explicar (erklären) e o compreender (verstehen) – Jung retoma essa diferença
fundamental em seu ensaio de 1957 Presente e Futuro, como veremos adiante – a
história se encontra no centro desse debate, pois foi um dos grandes
historiadores alemão do século XIX Gustav Droysen (1808-1884) quem introduziu
essa distinção, em 1854 em seu Grundriss
der Historik. Foram os historiadores os primeiros a abordar a
hermenêutica como especificando um saber próprio. A “querela dos métodos” (Methodenstreit) aparece em virtude da
discussão em torno de algumas obras importantes: a reedição de A Economia
política de um Ponto de Vista Histórico de Karl von Knies; Considerações sobre
os Métodos das Ciências Sociais de Karl Menger; e talvez o mais importante,
Introdução às Ciências do Espírito de Wilhelm Dilthey, grande teórico das Ciências
do Espírito (Geisteswissenschaften). Em outro momento, também contemporâneo do
nascimento da “jovem ciência” de Freud, Heinrich Rikert e Wilhelm Windelbrand
produzem As Fronteiras da Formação Conceitual nas Ciências da Natureza e
História e Ciência da Natureza (Assoun, 1983).
Com
Rickert e Wildebrand fica estabelecida a demarcação entre ciências da cultura e
ciências da natureza, “ciências nomotética” (capazes de estabelecer leis
regulares para os fenômenos) e “ciências idiográficas” (ciências que lidam com
fatos singulares e que são irrepetíveis, das quais a História é o melhor
exemplo). Em 1913 Karl Jaspers introduziu no campo da Psicologia a distinção
entre explicar e compreender/interpretar (Deutung).
As ciências ditas nomotéticas se esforçam para reduzir o devir a leis
universais, que subsumem o particular ao universal e geral. Nesse sentido,
estão essas ciências em acordo com a episteme ocidental fundada por
Aristóteles, que já em sua Metafísica declara que toda ciência é ciência do
geral, e coloca a História abaixo da poesia, justamente por sua vocação para
lidar com o singular. As ciências idiográficas, por outro lado, tentam
apreender o objeto em sua idiossincrasia, enquanto singularidade. Não se trata
de dissolver o particular no geral como no primeiro caso, mas de transcrever o
individual sem dissolvê-lo em uma mediação conceitual. Além disso, as ciências
da natureza se atêm a juízos de realidade, já as ciências da cultura implicam a
valorização (Assoun, 1983). Anos depois, o grande historiador Marc Bloch, em
seu livro escrito durante seu cativeiro em poder dos nazistas na França A
Apologia da História, afirmou sobre a cientificidade da démarche historiográfica que o que a torna uma ciência
autêntica é a possibilidade de estabelecer ligações explicativas entre os
fenômenos, uma inteligibilidade. É preciso estar atento àquilo que é a fraqueza
da ciência historiográfica e, paradoxalmente, sua fortaleza: ser poética.
Freud obstinadamente evita tomar parte nesse
debate e desde o início denomina a Psicanálise de Naturwissenchaft, para Freud não se tratava de uma questão de
escolha, mas para ele Naturwissenchaft era
praticamente sinônimo de Wissenchaft. Não
há lugar na episteme Freudiana para um Dualismo, a psicanálise se caracteriza
por um Monismo radical, não há lugar para a distinção ontológica entre “alma” e
“corpo” e sem ela a distinção epistemológica carece de sentido. Freud não
realiza uma interiorização desse debate metodológico, não há na démarche psicanalítica uma dicotomização
em que uma parte dela seria explicativa (ciência da natureza) e outra
interpretativa (ciência do espírito) – é interessante notar, como exporei
adiante, que Jung faz justamente isso ele interioriza essa distinção – para
Freud a Psicanálise é inteiramente Ciência da Natureza. O que nos coloca,
estimado leitor, diante de uma pergunta das mais incômodas, como anota Assoun,
“Não nasce a psicanálise, de certa forma, com a Traumdeutung?”.
O
Deutung Freudiano não está em nenhum
momento dissociado do erklären, sendo
até mesmo a interpretação uma variante da explicação, o Deutung é visto como um procedimento intelectual que explica
fornecendo a causa. Na ciência dos sonhos de Freud o ato interpretativo não
está livre do ato explicativo pela qual remonta o efeito à causa. O mesmo se
observa na psicopatologia Freudiana. Freud recusa todo o Dualismo e permanece
ligado ao ideal científico do início de sua carreira, a anatomia e a fisiologia
que tendem a alinhá-lo com o campo físico-químico. A psicanálise em Freud
mantém-se irredutivelmente Monista, uma Naturwissenchaft
que é sinônimo de Wissenchaft. A
ciência do espírito constitui não mais do que uma parte da ciência da natureza
(Assoun, 1983). Em seu Projeto para uma Psicologia Científica, Freud tentou
fundar uma Psicologia como Ciência Natural, sobre as bases da neurologia, em
consonância com as aspirações positivistas de seus mestres (Brüke e Meyert, por
exemplo), nesse sentido ele tentava submeter às leis da mente as leis do
movimento e introduzir um ponto de vista quantitativo. Mesmo inacabado, e tendo
sido abandonado o “Projeto”, a ambição de Freud de fundar uma Psicologia
científica nunca foi totalmente abandonada. Em seu último escrito, o Esboço de
Psicanálise ele sustentava a ideia de que no futuro a Psicanálise poderia
exercer uma influência direta sobre as quantidades de energia e sua
distribuição no aparelho mental através de substâncias químicas, ideia essa que
remonta tal e qual ao seu programa ao escrever o Projeto em 1895 (Gay, 2008).
Freud
não ignorava o termo Geisteswissenschaft,
mas o campo da ciência do espírito só era evocado por Freud para melhor
frisar que por vocação a Psicanálise era uma Naturwissenchaft, ou então para tratar de uma espécie de dualidade
de competências. Assoun cita um texto de Freud de 1927 sobre a formação do
analista para ilustrar esse fato.
Comungo com a expectativa de que todos os problemas que se referem às conexões (Zusammenhänge) entre os fenômenos psíquicos e seus princípios orgânicos, anatômicos e químicos só podem ser abordados por pessoas que estudaram uns e outros, portanto, por analistas de formação médica. Não obstante, não deveríamos nos esquecer de que tudo isso não pertence à psicanálise e de que, por outro lado, não podemos prescindir da colaboração de pessoas que foram formadas nas ciências do espírito. (Freud, apud ASSOUN, 1983, p.57).
É
extremamente interessante notar também que Freud, em sua insistência em não
tomar parte nesse debate metodológico e de resolver abruptamente a questão do
pertencimento da Psicanálise a Naturwissenchaften,
negava a possibilidade para a psicanálise de ter conceitos fundamentais
claros com contornos precisos, tal clareza só seria possível nas ciências do
espírito e seria supérflua ou impossível para a Psicanálise (Assoun, 1983),
nesse ponto Freud e Jung são absolutamente diferentes, pois Jung faz a defesa
dessa clareza e precisão justamente como uma base fundamental, conditio sine qua non, de qualquer ciência psicológica.
A
questão da cientificidade em Freud é ardentemente desejada e acenada, mas não
ficou demonstrada nem garantida, é Lacan que a põe como uma problemática
genuína. A nova orientação psicanalítica oriunda de Lacan surge de um diálogo
apaixonado com a linguística e a antropologia. Diferente do intrincado e
confuso Dédalo que é a episteme da Psicanálise em Freud (nascida, mutatis mutandis, da confluência entre a neurologia e a biologia), com sua
paixão positivista por uma ciência da natureza e sua insistência teimosa em
situar a sua jovem ciência nesse campo, Lacan com sua leitura absolutamente
inovadora de Freud pôde tornar a Psicanálise uma teoria bem posicionada
epistemologicamente. Diferente de Freud, Lacan escapa ao cogito cartesiano estrito por uma visão que estabelece a relação
entre um ego “cogitante” e um sujeito
desejante, entre o imaginário da sua cognição e a verdade do seu desejo.
Nenhuma ação humana encontra-se fora do campo do inconsciente, nenhuma práxis
humana escapa ao inconsciente, epistemologicamente a visão de Lacan parece
enxergar o campo da ciência inclinar-se a evidência do inconsciente. A pergunta
crucial em Lacan já não é mais a pergunta sonegada e recalcada em Freud “é a
Psicanálise uma ciência?”, essa questão com a qual, de maneira insidiosa, Freud
se debateu e, paradoxalmente, não se debateu, carece de vigor ou importância na
postura assumida por Lacan para o fato de que o inconsciente não deixa nenhuma
de nossas ações fora de seu campo. (Beividas, 2002). Para Lacan “Permanente donc restait La question qui fait
notre projet radical: celle qui va de: La psychanalyse est-elle une science? À
qu’est-ce qu’une science qui incluit La psychanalyse?”.
Segundo
Beividas, existe em grande parte dos teóricos pós-lacaniano uma forte tendência
a se acomodar a crença da impossibilidade da Psicanálise ser uma ciência, com
um corpo de argumentos difusos e de pesos desiguais, alguns francamente
opiniosos. Entre esses argumentos o conceito de Foraclusão – impugnado como a
estrutura psicótica da ciência, viria a provar no discurso de Lacan a
irredutibilidade da Psicanálise a ciência, em virtude da eliminação do eu do
discurso da ciência, nesse sentido o neo-positivismo de Russell é apontado como
um dos elementos que exorciza o sujeito do desejo do discurso científico, e ao
critério de falseabilidade de Popper é referido como mera ficção.
Em
Lacan a cientificidade não se tornou uma solução, mas um problema, “o que é uma
ciência que inclua a psicanálise?”. Em uma comunicação feita em Madri em 1936 e
retomada em Zurique em 1949, Lacan lança a hipótese do estádio do espelho (o
momento inaugural da socialização da criança), e uma de suas conclusões é que o
estádio do espelho imprime à cognição humana ab ovo um caráter
paranoico de todo o conhecimento. O conhecimento paranoico é uma das
“pré-condições” do conhecimento humano, a experiência que a criança atravessa
no estádio do espelho precipita um efeito de alienação do sujeito, tal efeito
de captura especular imaginária se mostra como a forma de organização mais
arcaica do conhecimento humano. O discurso científico estaria destinado a
reproduzir na captura e descrição de seus objetos um modelo calcado
paranoicamente no estádio do espelho. Tal constatação engendra uma postura
reservada diante da ciência, a psicanálise não poderia enredar-se
precipitadamente no discurso científico, mas trata-se precisamente de denunciar
sua infrapatologia de origem. A despeito de uma hipótese de tal envergadura e
alcance epistemológico, Beividas afirma que toda a produção inaugural de Lacan
pode ser dita como inspirada no espírito científico, ou, ao menos, compatível com
ele.
Na
década de 50 do século XX, Lacan vincula-se a linguística, especialmente a
linguística de Saussure, pois a estrutura da linguagem era capaz de dar suporte
teórico a hipótese do inconsciente freudiano, além de representar, a época, um
catalisador epistêmico das várias disciplinas humanas. O discurso de Roma, de
1953 foi o manifesto de integração da Psicanálise na nova ordem conceitual que
se estabelecia no campo das ciências humanas. É possível perceber nesse momento
da obra de Lacan, uma visível aproximação da Psicanálise as ciências do
espírito, a despeito da recusa Freudiana de sequer cogitar a Psicanálise como Geisteswissenschaft,
outro médico, Lacan a vincula ao movimento mais geral das ciências do homem em
direção ao estruturalismo linguístico. Beividas anota que esse movimento em
Lacan e em sua Psicanálise, de encontrar uma equivalência da terminologia de
Freud a nova linguagem da antropologia, da linguística e da filosofia, faz com
que a sua cientificidade seja efetivamente apontada, mas não significou que ela
tenha sido ostensivamente perseguida e pregada. O movimento cíclico de
aproximação e afastamento de Lacan da cientificidade aproxima-se de sua
maturidade epistêmica na década de 60 do século XX com o texto “ciência e
verdade”. O discurso científico caracteriza-se por procurar apagar as marcas da
enunciação, trata-se de uma estratégia de persuasão, da obtenção de um efeito
de verdade. Esse objetivismo é a forma de persuasão do discurso científico. Há
no discurso científico uma “decência”, uma camuflagem que serve justamente para
suprimir o sujeito do desejo, existe aqui uma clivagem importante, para Lacan,
há na Psicanálise justamente uma centralidade do desejo. Lembremo-nos, todavia,
da questão de Lacan, “o que é uma ciência que inclua a psicanálise?”, o caminho
de Lacan não foi o de se antagonizar simplesmente ao discurso científico. Lacan
coloca o desejo no centro de sua teoria e simultaneamente, força essa questão a
ser reconhecida pelas disciplinas científicas.
Lacan,
em seu ensino, também comparou à ciência a histeria, mostrando que possuem
estruturas semelhantes. Para ele a histeria é um tipo de discurso, um tipo de
laço social que ele designa como fazer desejar. Lacan aponta que o sujeito
histérico faz o outro desejar saber, assim a histérica procura um mestre que
deseje decifrar o enigma que ela mesma representa. Em uma inversão do esquema
Freudiano, Lacan afirma que quem seduz não é o outro, mas sim a própria
histérica, que no fim das contas se esquiva do ato sexual, mas acentua no outro
a quem atribui o lugar de mestre o desejo de saber. Ela acaba por castrar o
mestre ao mostrar que o saber dele é sempre incapaz de desvelar o mistério que
ela mesma representa. Toda a forma de laço que envolve sedução e engodo, e toma
o outro como suposição de saber está no discurso histérico. (Quinet, 2005).
A
despeito de Jung frequentemente ocupar um lugar imaginário de “outro abjeto”
para os seguidores da Psicanálise, ou de mera deturpação, ele não era nem uma
coisa e nem outra. Esse é um ponto que precisa ficar claro desde o início: Jung
é outra coisa. Que há um parentesco entre a Psicologia Analítica e a
Psicanálise, ou dívidas teóricas da Psicologia fundada por Jung para com as
descobertas feitas por Freud, isso é inegável, mas Jung funda uma outra
possibilidade de compreensão dos fenômenos da alma que não mais se confunde com
a Psicanálise. Além disso, diferente de Freud, Jung valorizava a discussão
epistêmica e nunca se furtou a fazê-la, dedicando uma parte considerável de sua
obra a esse fim. Ao contrário da intrincada e ambivalente epistemologia da
Psicanálise de Freud, a Psicologia Analítica possui uma epistemologia mais
solidamente fundamentada, elegante e amplamente discutida e tematizada por seu
criador. De início não é ocioso deixar claro que para Jung a Psicologia
Analítica tratava-se de uma ciência.
Em
conferência realizada em 1935, Jung discorreu sobre a prática da psicoterapia, e
principia por tratar das características peculiares do objeto da Psicologia,
comparando a situação da psicologia a da física, comparação que, como veremos,
era cara a Jung. Ao comparar algumas das correntes da psicoterapia de seu tempo
e apontar as contradições evidentes entre elas, a conclusão a que ele chega tem
a ver com o objeto comum de estudo de todas elas.
As contradições em qualquer ramo da ciência comprovam apenas que o objeto da ciência tem propriedades, que por ora só podem ser apreendidas através de antinomias; como a natureza ondulatória e corpuscular da luz. Só que a psique é de natureza infinitamente mais complicada do que a luz, razão certamente do grande número de antinomias necessárias à descrição satisfatória da essência do psiquismo. (Jung, 1981, p.2).
Duas
ponderações importantes devem ser feitas aqui, a primeira tem a ver com a
comparação entre a psicologia e a física, que encerra graves consequências
epistemológicas para Jung, e, dentre as antinomias apontadas uma em particular
interessa de perto para se compreender a posição do opus junguiano entre as Geisteswissenschaften
e as Naturwissenschaften, a antinomia
é a seguinte: “O individual não importa
perante o genérico, e o genérico não importa perante o individual”. Por ora
me aterei a essa antinomia para em seguida retornar a comparação entre a
psicologia e a física.
As
reflexões acerca dessa antinomia vão, em última instância determinar uma
atitude do terapeuta no caso da terapia individual (segundo Jung, e isso
permanece uma verdade inatacável, a única que se justifica cientificamente). O
que está em jogo aqui, e Jung estava bem ciente desse fato, é a velha querela
entre o nominalismo e o realismo que se estende por quase dois milênios na
filosofia ocidental, mas nesse caso, tratada na seara científica de uma
psicologia que não possui ambições especulativas, mas práticas. O exemplo utilizado
por Jung do elefante ajuda a compreender a questão. Não existe um elefante
genérico, apenas elefantes individuais, todavia se o genérico não existisse e
houvesse uma constante multiplicidade de elefantes, um elefante individual
seria extremamente inverossímil. A atitude do analista, não pode ser a de uma
autoridade diante do paciente capaz de fazer afirmações corretas sobre a
totalidade de sua personalidade – nesse caso fica-se no “o individual não
importa perante o genérico” e trata-se de terapia por sugestão – isso significa
falta de espírito crítico, afirmações de cunho universalizante só podem ser
feitas com relação ao ser humano genérico, ou ao menos, relativamente genérico,
nesse ponto se revela a notável influência do romantismo alemão (notadamente
Goethe) no espírito de Jung, ele afirma “mas como tudo o que vive só é
encontrado na forma individual, é visto que só posso afirmar sobre a
individualidade de outrem, o que encontro em minha própria individualidade,
corro o risco, ou de violentar o outro, ou de sucumbir por minha vez ao seu
poder de persuasão” (Jung, 1981). Nesse sentido ele aponta para a necessidade
prática de um método clínico dialético e, em termos epistemológicos, nos traz
pistas para a pergunta que norteia esse escrito se a psicologia de Jung seria a
Ciência do Homem ou da Natureza.
Em
um curto, mas decisivo, ensaio publicado em 1957, intitulado “Presente e
Futuro” Jung aponta com maior clareza as consequências epistêmicas da antinomia
entre genérico e individual. O argumento principia por discutir o termo
“autoconhecimento” com o objetivo de discutir a possibilidade de uma teoria
capaz de constituir um fio condutor para o autoconhecimento, que normalmente é
tido, erroneamente na perspectiva de Jung, como o conhecimento da personalidade
consciente do eu. O eu, todavia, só conhece seus próprios conteúdos
desconhecendo os conteúdos inconscientes. Nesse caso o autoconhecimento é
medido pelo que o meio social sabe ao seu respeito, mas o fato psíquico real é
desconhecido, logo o que é chamado de autoconhecimento é um conhecimento muito
restrito e dependente de fatores sociais. O sentido do argumento está em
mostrar que esse tipo de “autoconhecimento”, digamos, de “senso comum” não
alcança o inconsciente e isso encerra graves consequências, pois o campo vasto
do inconsciente não alcançado pela crítica consciente se acha desprotegido para
receber todo o tipo de infecções psíquicas. Certa feita, ao se questionar sobre
as razões da natureza de ter criado o milagre cósmico da consciência Jung afirmou
que “sem consciência as coisas vão menos bem”, nesse sentido ele anota no
referido ensaio “(...) só podemos nos proteger das contaminações psíquicas
quando ficamos sabendo o que no está atacando, como, onde e quando isso se dá”.
Nesse ponto de sua argumentação fica evidente o método de argumentação de Jung
que se baseia na articulação elegante de antinomias e paradoxos em consonância
com a natureza de seu objeto de estudos que, cum grano salis, podemos dizer que é a alma (seja
em que idioma usemos essa palavra: Seele, ψυχή etc),
é importante recordar que para Jung a psique é um fenômeno e não um dado
arbitrário, mais ainda, trata-se de um fenômeno natural e, como todo fenômeno
natural, é um dado irracional. Novamente referindo-se ao autoconhecimento ele
afirma que uma teoria que se limitasse estritamente
a essa perspectiva seria de pouca valia por se tratarem de fatos individuais,
por outro lado, eis o paradoxo, quanto mais uma teoria aspira à validade
universal, menor sua possibilidade de aplicação a uma conjuntura de fatos
individuais.
Para
Jung, toda a teoria que se baseia na experiência é necessariamente estatística.
Ela estipula uma média ideal, que elimina todas as exceções, em cada
extremidade da escala, substituindo-as por um valor médio abstrato. Este valor
figura na teoria como um fato fundamental mesmo quando não ocorre sequer uma
vez na realidade.
O método estatístico proporciona um termo médio ideal de uma conjuntura de fatos, e não o quadro de sua realidade empírica. Embora possa fornecer um aspecto incontestável da realidade, pode também falsear a verdade factual, a ponto de incorrer em graves erros. Isso acontece, de modo especial, nas teorias baseadas em estatísticas. Os fatos reais, porém, evidenciam-se em sua individualidade; de certo modo, pode-se dizer que o quadro real se baseia nas exceções da regra, e a realidade absoluta, por sua vez, caracteriza-se predominantemente pela irregularidade. (Jung, 2011, p.14).
A conclusão de Jung é que não há nem pode
haver autoconhecimento baseado em pressupostos teóricos, pois o objetivo do
autoconhecimento é um indivíduo, em outras palavras, uma exceção e
irregularidades relativas, não é o universal e o regular que caracterizam o
indivíduo, mas sim o único. Novamente, Jung argumenta de maneira elegante e
paradoxal, pois para ele o indivíduo (a noção de indivíduo aqui tem relação com
a possibilidade de ampliação da consciência ligada à superação daquilo que ele
chama de inconsciências parciais e da superação, ao menos relativa da
psicologia que caracteriza a consciência da criança, do primitivo e o
inconsciente do homem civilizado: a identidade arcaica) não pode ser
compreendido como unidade recorrente, mas como algo único e singular que não
pode ser comparado e nem mesmo conhecido, ao mesmo tempo, o homem pode e deve ser descrito enquanto unidade
estatística, pois, do contrário, nenhuma característica geral lhe pode ser
atribuída. Desse modo tem início uma antropologia e uma psicologia de validade
universal segundo um quadro abstrato do homem médio que perde todos os traços
singulares. Chegamos aqui ao ponto nevrálgico da discussão.
Contudo, esses traços são justamente os mais importantes para a compreensão do homem. Se pretendo conhecê-lo em sua singularidade, devo abdicar de todo o conhecimento científico do homem médio e renunciar a toda teoria de modo a tornar possível um questionamento novo e livre de preconceitos. Só posso empreender a tarefa da compreensão com a mente desembaraçada e livre (vacua et libera mente) ao passo que o conhecimento do homem requer sempre todo o saber possível sobre o homem em geral. (Jung, 2011, p.15, grifo meu).
Mais
uma vez vemos o método de pesquisa e argumentação de Jung por paradoxos e a
utilização de uma distinção entre Compreender
e Conhecer que, como demonstrarei
adiante, é fundamental para entender a posição epistêmica do opus Junguiano. Fundamentalmente, visto
Jung ter afirmado reiteradas vezes (para ouvidos moucos ao que me parece) que
não era filósofo, mas empirista e médico e não podia se dar ao luxo da
especulação abstrata que não tivesse qualquer relação com sua atividade prática
como médico ou com o bem estar de seus pacientes “(...) nossa psicologia é uma
psicologia prática. Não pesquisamos apenas por causa da pesquisa, mas sim
levados pela intenção imediata de ajudar” (Jung, 2011a). Essa distinção
estabelece simultaneamente uma atitude clínica e uma atitude de pesquisa. Na
clínica – assim como na introspecção daqueles que pensam por si mesmos sobre os
conteúdos inconscientes que lhe assomam a consciência, ou seja, na busca do
autoconhecimento como definido por Jung – uma postura teórica, que supõe de
antemão um saber, esmaga a possibilidade genuína de compreender, pois a
compreensão tem como alvo o único e singular enquanto o conhecimento teórico
fala do homem médio ideal e visa não à compreensão, mas o Conhecimento. Todavia, estamos diante de mais um dos muitos
paradoxos com que Jung elegantemente se defrontou, talvez seja possível
formulá-lo assim: “a Compreensão não
importa perante o Conhecimento, e o Conhecimento não importa perante a
Compreensão”. A despeito dos termos, temos aqui uma equivalência entre o compreender
(verstehen) e o que Jung denomina
compreensão (nesse caso os termos parecem ser os mesmos, mas preciso ainda
checar no texto original em alemão) e explicar (erklären) com relação ao que Jung denomina Conhecimento. Diferente
de Freud, Jung se defronta decididamente com o problema central da querela dos
métodos (Methodenstreit), que se
impõe a prática clínica em virtude do interesse do analista ser um sujeito individual,
e do papel do analista ser o de espelho
dialético, o que significa estar ciente e atento a antinomia entre
individual/genérico. Além disso, o desafio da clínica impõe essa postura em
virtude da hipótese de um inconsciente psíquico, ora se eu postulo a existência
de um dado irracional existencial inalienável, uma instância que me é
desconhecida como posso me arvorar um saber sobre o não sabido a não ser diante
de suas manifestações a consciência? A postura tipicamente médica, do
especialista que pode dizer do indivíduo mais do que ele mesmo pode, não se
sustenta diante da constatação de que o quantum de energia psíquica da
consciência não representa a somatória total da energia psíquica da alma. A
constatação seguinte, de que o inconsciente de manifesta de maneira
compensatória e complementar a consciência, além da existência de um psiquismo
objetivo, que se manifesta criativamente (aquilo que Jung chamou de
neoformações criativas do inconsciente) tiram definitivamente a ilusão de poder
e autoridade do analista, pois no fundo, quem dá a direção do processo
analítico não é nem o analista e nem o paciente, mas o inconsciente.
A
antinomia que formulo aqui a partir da compreensão já presente em Jung “a Compreensão não importa perante o
Conhecimento, e o Conhecimento não importa perante a Compreensão” pode ser
compreendida à mesma luz que a metáfora anteriormente citada do elefante,
troquemos o elefante pelo homem (visto elefantes não serem encontrados com
frequência em análise), Não existe um homem genérico, apenas homens
individuais, todavia se o genérico não existisse e houvesse uma constante
multiplicidade de homens, um homem individual seria extremamente inverossímil.
A “teoria” (em Jung o termo deve vir entre aspas) lida com o um valor médio
abstrato, com um homem genérico ideal e racional, enquanto a realidade empírica
do homem individual é caracterizada pela irracionalidade e a impossibilidade de
se conhecer ou comparar. Mas a atitude de Jung consiste em encarar a antinomia
e o paradoxo como tal, sem fazer pender a balança para um lado ou outro. Jung
sempre se intitulava médico, e nele esse termo tem a acepção de alguém que deve
por dever de ofício se preocupar em primeiro lugar com o bem estar de seus
pacientes, a “ciência pura” ou a especulação filosófica têm pouco interesse ao
médico que deve ter sempre em mente de modo pragmático que tem seres humanos
reais que sofrem aos seus “cuidados”.
Se o Psicólogo em causa for um médico que não apenas pretende classificar seus pacientes segundo as categorias científicas mas também deseja compreendê-los, ficará, em certas situações, exposto a uma colisão de direitos entre duas partes opostas e excludentes: de um lado, o conhecimento e, de outro, a compreensão. Esse conflito não se resolve com uma alternativa exclusiva – “ou ou” – e sim por uma via dupla de pensamento: fazer uma coisa sem perder a outra de vista. (Jung, 2011, p.15).
A
Compreensão diz respeito ao individual, enquanto o Conhecimento ao genérico. Em
certa medida, há aqui um paradoxo irremediável em termos práticos, pois tudo o
que vive, vive individualmente, outra comparação feita por Jung torna-se útil
aqui. Um rosto possui uma configuração genérica universal em T – dois olhos
nariz e boca – essa configuração genérica, universal, coletiva, só pode ser deduzida da multiplicidade de fenômenos
individuais, todavia ela não existe por si mesma, como fenômeno, só o que
existe realmente são os rostos individuais.
Para a compreensão, o homem em sua singularidade consiste no único e no mais nobre objeto de sua investigação, sendo necessário o abandono de todas as leis e regras que, antes de tudo, encontram-se no coração da ciência. O médico principalmente deve ter consciência desta contradição. Por um lado, ele estará equipado com as verdades estatísticas de sua formação científica e, por outro lado, ele se depara com a tarefa de cuidar de um doente que, principalmente no caso da doença mental, exige uma compreensão individual. Quanto mais esquemático o tratamento, maiores as resistências no paciente e mais comprometida a possibilidade de cura. O psicoterapeuta ver-se-á obrigado a considerar a individualidade do paciente como fator essencial, a partir do qual deverá ajustar os métodos terapêuticos. (Jung, 2011, p.16, grifo meu).
As
verdades científicas se baseiam em conhecimentos abstratos que transmitem uma
cosmovisão (weltanschauung) irreal,
embora racional em que o individuo é um fenômeno marginal que não desempenha
nenhum papel. As teses científicas se referem a um homem irreal ou “normal”,
mas o fenômeno vivo é o indivíduo, um dado irracional que é o verdadeiro
portador da realidade. Segundo Jung, e aqui ele é bem claro “As ciências
naturais, em oposição as ‘humanidades’, impõem, portanto, uma imagem de mundo
que exclui a psique humana real” (Jung, 2011). O fato das humanidades virem
aspeadas tem a ver com a comparação entre a Psicologia Analítica e a Física,
como demonstrarei adiante.
Em
palestra proferida na Inglaterra em 1924, no Congresso de Educação em Londres,
Jung expressa com clareza a posição epistemológica que assume em seu opus. Não se trata simplesmente de
realizar uma dicotomização interna a teoria dos dois modos de atuar da ciência
o explicar e o compreender, mas de assumir uma posição epistemológica radical
baseada na noção de realidade psíquica, bem como de assumir muitas das críticas
filosóficas a impossibilidade de uma Psicologia e, ao invés de simplesmente escamotear
o problema ou contorná-lo com uma prestidigitação intelectual, encarar a
questão com rara lucidez o que, paradoxalmente, permite que as noções de
inconsciente e realidade psíquica possam ser assumidas em sua radicalidade. Para
Jung sua Psicologia considera o homem tanto em seu estado natural (biológico)
como em seu estado modificado pela cultura (espiritual). O médico em virtude de
sua formação exclusivamente orientada para as ciências naturais tende a encarar
o fenômeno psíquico apenas do ponto de vista bilógico. Jung considera que a
atitude que caracteriza as ciências da natureza é empírica fenomenológica
(convém salientar que o que Jung chama aqui de fenomenologia nada tem a ver com
a tolice pré-kantiana que hodiernamente se chama “fenomenologia”) e que esta,
por sua vez, possui grande valor heurístico. O método que as ciências naturais
e biológicas empregam é de enorme importância, graças a ele conhecemos os fatos
e sabemos o que ocorre e como ocorre, esse método lhe permite chegar mais perto
da realidade através da descrição pormenorizada dos fenômenos. Há, todavia,
problemas ao se empregar esse método descritivo, empírico fenomenológico à
psicologia, pois “não existe nenhum outro campo experimental em que a visão do
real se encontre tão turvada como na percepção que nosso mundo psíquico deve
ter a respeito de si mesmo” (Jung, 2011a). Em nenhum outro campo ocorre que o
observador perturbe tanto o experimento como na Psicologia. Há ainda para além
do fato de que na observação do psíquico se interpõe entre o “observador” e seu
“objeto” toda a sorte de projeções, preconceitos, juízos que dependem do humor
do momento, muito mais radicalmente, o fato de que na psicologia é a psique que
observa a si mesma. Em aula inaugural pronunciada na Escola Politécnica Federal
de Zurique em 1934, Jung torna essa posição epistêmica ainda mais clara,
segundo ele, nenhum pesquisador pode se abstrair de seus próprios complexos,
pois eles gozam da mesma autonomia que o das outras pessoas (o fato dele ser um
cientista não o torna menos susceptível a ação perturbadora de seus complexos),
os complexos fazem parte da constituição psíquica,
e é a constituição psíquica que decide inapelavelmente a pergunta de saber que
concepção psicológica terá um determinado observador, qualquer observação
psicológica para ser válida pressupõe a equação pessoal do observador, uma
teoria psicológica expressa antes e acima de tudo uma situação criada pelo diálogo
entre um determinado observador e um certo número de indivíduos observados.
Ora,
é esta justamente a maior crítica à possibilidade de existir uma psicologia
científica, mesmo em Kant, pois a condição de possibilidade de toda observação,
o sujeito, se encontra impossibilitado de se observar a si mesmo de um ponto de
vista objetivo. Como demonstrei antes ao falar do ensino de Lacan, há na
ciência um objetivismo que é estratégia de convencimento para estabelecer seus
enunciados como verdade através da obliteração do sujeito da enunciação, há uma
“decência” na ciência que oculta o sujeito, mas o que Jung aponta com clareza,
muito antes de Lacan, é que, assim como bem apontaram seus críticos, essa
manobra intelectual é impossível em psicologia. Ao invés de enxergar tal fato
como obstáculo intransponível, de perceber que em termos filosóficos toda
afirmação psicológica não passaria de falácia de contradição performativa, Jung
abraça essa contradição e ao assumi-la assume também a radicalidade de seu
empreendimento.
O
que ocorre é que existe uma impossibilidade de se transpor para qualquer outro
meio o conhecimento psíquico, a física pode traduzir os fenômenos empíricos
para a linguagem matemática, ou seja, o que o físico faz é a reconstrução psíquica do processo físico, mas
tal procedimento é impossível ao psicólogo. Isso gera uma dúvida sobre a
possibilidade mesma de qualquer conhecimento psíquico, entretanto nesse ponto a
vinculação do médico com as ciências naturais lhe serve de salvaguarda ao invés
de converter-se em dificuldade, e a perspectiva Kantiana de Jung torna-se ainda
mais clara.
Também neste particular o médico se sente satisfeito por estar solidário com as ciências naturais. Ele não se sente obrigado a filosofar, mas se alegra por ter um conhecimento vivo do interior do psíquico, em outras palavras: a psique certamente não pode conhecer nada além da psique (...), mas é bem possível que dois estranhos se encontrem no interior do psíquico. Não saberão jamais o que cada um é em si, mas apenas o que cada um parece ser para o outro. (Jung, 2011a, p.97).
O
que Jung percebe e afirma é que o processo psíquico não pode ser reproduzido em
outro meio, a conclusão radical é que não existe conhecimento acerca do psíquico, mas unicamente no psíquico! Nesse ponto nevrálgico surge
a similaridade e a disparidade entre a ciência natural e os procedimentos da
psicologia, pois para a ciência natural, como a física, por exemplo, é possível
essa reconstrução psíquica do processo
físico a psicologia, todavia, possui uma sutil diferença. Quando a
psicologia faz uso do método empírico fenomenológico (aqui o que Jung denomina
de empiria depende diretamente de sua concepção de realidade psíquica, pois
para ela a empiria genuína é aquela que aborda fatos psíquicos, pois todo
conhecimento é mediado pelo psíquico e o único conhecimento imediato possível é
o conhecimento no psíquico) enquadra-se mutatis
mutandis no escopo da ciência natural
“Contudo, se distingue da ciência natural por efetuar a reconstrução
(conhecimento/explicação) não em um meio de outra natureza, mas em um meio de
natureza igual” (Jung, 2011a).
Nesse
sentido, o saber produzido pela psicologia é um fenômeno psíquico de mesma
natureza e idêntica dignidade aos fenômenos que estuda. Indo à radicalidade
dessa proposição Von Franz afirma mesmo que a psicologia é, no fundo, um
mitologema explicativo, é a maneira contemporânea que temos de lidar com o
fenômeno psíquico real, o inconsciente objetivo. O que isso indica de maneira
clara, em minha opinião, é que a verdade da psicologia é a verdade do
inconsciente, sendo ela a possibilidade de enunciar de alguma maneira o sujeito
inconsciente em toda a sua paradoxalidade, pois este algumas vezes se manifesta
apenas como dado natural objetivo e cabe a nós fazer o julgamento de valor
daquilo que emerge do inconsciente. Outras vezes, não poucas, se revela de
maneira mercurial e mefistotélica, dotado de humor e ironia e seus conteúdos já
carregam o julgamento de valor em si mesmos. Se é que se trata de uma
reconstrução, é a reconstrução na linguagem da consciência do discurso do
inconsciente, sem que com isso se possa anular ou domar a natureza irracional e
inalienável do inconsciente. Toda e qualquer manobra intelectual que busque de
alguma maneira obnubilar essa verdade em prol de um objetivismo como é o método
mais corriqueiro de convencimento do discurso científico, finda por mitigar ou
mesmo anular a radicalidade da cientificidade da psicologia complexa de Jung. O
que muitos não percebem, nesse caso é que em virtude desse projeto radical a psicologia
complexa fundada por Jung não se confunde, nem pode se confundir, com uma
filosofia, ou mesmo, com algum tipo de racionalismo aplicado. Nesse ponto é
fecunda a utilização por Jung do método empírico fenomenológico descritivo (eu acrescentaria), é a isso
que se deve a necessidade de trazer entre aspas o termo “teoria” em Jung, e que
se deve rejeitar com veemência toda a tentativa de subtrair da psicologia
complexa justamente sua “complexidade”. O método descritivo como proposto por
Jung não deve ser sobrecarregado com pressupostos teóricos ou filosóficos.
Nesse ponto, ao analisar a formulação epistêmica de Jung naquilo que apresenta
de mais radical, ou seja, já formulando, para usar a expressão de Lacan “uma
ciência que inclua a psicanálise”, ou, para se mais fiel ao húmus do solo
epistêmico de Jung “uma ciência que inclua o inconsciente”, percebo que o termo
Psicologia Complexa é bem adequado do que o termo “analítico”. Mas retornando a
“teoria”, não é ocioso citar o próprio Jung, em texto de 1936, intitulado “O
Arquétipo Como Referência Especial ao Conceito de Anima”:
(...) Por mais desejável que seja a avaliação quantitativa – é impossível prescindir do método descritivo qualitativo. A psicologia médica reconheceu que os fatos decisivos são extraordinariamente complexos e só podem ser apreendidos através da descrição casuística. Este método porém exige que se esteja livre de pressupostos teóricos. Toda ciência natural é descritiva quando não pode proceder experimentalmente, sem no entanto deixar de ser científica. Mas uma ciência experimental torna-se inviável quando delimita seu campo de trabalho segundo conceitos teóricos. A alma não termina lá onde termina um pressuposto fisiológico ou de outra natureza. Em outras palavras, em cada caso singular, cientificamente obervado, devemos levar em consideração o fenômeno anímico em sua totalidade.Essas ponderações são imprescindíveis para a discussão de um conceito empírico como o da “anima”. Contrariando o preconceito frequentemente exteriorizado de que se trata de uma invenção teórica ou – pior ainda – de pua mitologia ressalto que o conceito de anima é experimental. Este tem por único objetivo nomear um grupo de fenômenos análogos e afins. O conceito não significa mais do que o de “artrópodes” que inclui todos os animais de membros articulados, designando assim um grupo fenomenológico. (Jung, 2003, pp. 113 e 114, grifo meu).
A
longa citação foi necessária para exemplificar nas palavras do próprio Jung o
sentido de seus conceitos e as consequências de seu uso tão peculiar do método
descritivo das ciências naturais. Esse ponto
foi abordado por Jung igualmente em texto anterior (de 1929), onde ele afirma
que “A ciência depende da precisão dos conceitos verbais”, isso significa que
uma das tarefas primeiras do psicólogo é estabelecer conceitos-limites e conferir nomes bem definidos a determinado
conjuntos de fatos psíquicos, considerando como fundamental se o termo
empregado concorda ou não com o conjunto de fatos por ele designados. Esses conceitos-limites devem utilizar nomes
tomados ao máximo da linguagem usual, mas com a preocupação de escapar o máximo
possível ao preconceito geral de que o nome determina a natureza das coisas (Jung,
1986).
Como
vimos antes, ele mesmo afirma a impossibilidade de um método experimental em
psicologia, e mesmo, a possibilidade de uma quantificação exata do fenômeno
anímico, todavia, a descrição empírico fenomenológica ainda mantém, cum grano
salis, a psicologia na seara das
ciências e no campo das ciências naturais. Temos aqui, contudo, uma sutil
inflexão apontada com clareza por Jung em sua palestra sobre educação proferida
em 1924 em Londres, retornemos, pois a ela. A psicologia faz uso do ignotium per ignotius, ela explica
o desconhecido por algo mais desconhecido ainda, já que apenas pode reconstruir
o processo observado recorrendo ao próprio meio. Todo o processo psíquico na
medida em que pode ser observado já constitui em si uma teoria, isto é uma concepção (Anschauung), pois a reconstrução desse processo não passa de uma
variante da mesma concepção. Ora, se
uma teoria é justamente a reconstrução psíquica de um processo de outra ordem
(físico, por exemplo, como a teoria da relatividade ou da gravitação de Newton)
e não é possível existir um conhecimento a cerca do psíquico em virtude da
impossibilidade de reconstruir o fenômeno em outro meio, a própria descrição,
como aponta Jung já constitui “teoria”.
Surge
nesse ponto, ex exposistis, uma decorrência metodológica dessa reflexão
epistemológica que marca uma diferença fundamental entre Freud e Jung e que
explica o abandono por parte de Jung da associação livre como método de
interpretação (lembremo-nos que o método da Psicanálise consiste em associação livre e atenção flutuante). A interpretação deve ser uma variação da mesma concepção (em outras
palavras amplificação) do contrário ela é uma compensação ou polêmica, ou seja,
uma eliminação do processo que deve ser reconstruído. A interpretação, nessa
perspectiva deve estar precavida contra ao emprego de quaisquer outros pontos
de vista que não sejam manifestamente indicados pelo conteúdo. É nesse sentido
que Jung gostava de citar o ditado árabe “o sonho é a sua própria
interpretação”, Jung utiliza-se do exemplo de um leão (não um elefante): se
sonho com um leão a interpretação correta só pode ser orientada para o leão,
pois a imagem do leão constitui por si só “uma concepção inequívoca e
suficientemente positiva”. A interpretação que se justifica cientificamente não
é apenas uma tautologia, mas uma ampliação (algo que amplia o sentido para
formar uma concepção mais geral). Nesse ponto é que a psicologia está situada
além da ciência natural, apesar de partilhar com ela o mesmo método de
observação e averiguação empírica dos fatos. Como a psicologia carece de um
ponto arquimediano, da possibilidade de uma medição objetiva, está em
desvantagem com relação à ciência natural. Por outro lado, a psicologia é também
uma ciência do espírito, pois todas as ciências do espírito têm seu campo
dentro do psíquico.
A psicologia moderna e empírica pertence às ciências da natureza, quando considerada do ponto de vista do objeto e do método; mas faz parte das ciências do espírito, quando considerada do ponto de vista de seu modo explicativo. (Jung, 2011a, p.102).
Passando
a comparação entre a física e a psicologia, que nos ajudará a compreender a
inovadora posição epistêmica que Jung imprime a Psicologia Complexa, é preciso
primeiro dar um passo atrás e entender a posição do opus junguiano em relação à filosofia. Jung costumeiramente citava
a posição de Nietzsche de que a filosofia um dia se tornaria ancilla psychologiae. Ex exposistis,
fica mais do que claro que na perspectiva de Jung o pesquisador, cientista ou filósofo
não pode “subir em suas próprias costas para ver mais longe”, para usar suas próprias
palavras, nenhum filósofo pode se abstrair de seus próprios complexos ou privá-los
de sua autonomia, o uso da razão não permite que o filósofo (sendo ele um
homem, e, desconfio que o mesmo se dá com leões e elefantes) escape aos seus próprios
condicionamentos e transportar-se para um estado racional e suprapsíquico “subir
nas próprias costas”. Isso é impossível, pois, nolens volens, estamos
sujeitos todos (mesmo os filósofos, leões e elefantes) ao fato psíquico real,
ao dado existencial irracional inalienável, ao confronto com a objetividade psíquica.
Não bastasse isso, todas as doutrinas filosóficas nada mais são do que fenômenos
psíquicos, só não o seriam se fosse possível alçar esse estado racional suprapsíquico.
Jung assume a radicalidade de seu empreendimento ao afirmar que qualquer
observação psicológica para ser válida pressupõe a equação pessoal do
observador, o que acontece na filosofia (e na ciência) é que a “decência” que
existe nesses campos insidiosamente nega essa premissa, afirmando o seu oposto “qualquer
observação filosófica (científica) para ser válida deve prescindir da equação
pessoal do observador”. Nietzsche ao atacar a filosofia de Kant atacava,
igualmente, a Kant chamando-o de “cristão insidioso”. Fica claro que a
Filosofia depende de premissas psicológicas. Em ensaio de 1946 chamado “Considerações
Teóricas Sobre a Natureza do Psíquico” fala das mudanças ocorridas no
desenvolvimento da psicologia enquanto ciência que se liberta da Filosofia e da
Teologia e assume para si o método das ciências da natureza. A libertação da
Filosofia se faz premente pela adoção de uma perspectiva Kantiana não apenas
pelo que aponta Pena “Na perspectiva Kantiana, o eu, sujeito de todo
julgamento, é uma função de organização da experiência mas do qual não pode
haver uma ciência, de vez que ele é a condição de toda ciência”. (1991, p.36).
Mas igualmente pela negação Kantiana da metafísica, da impossibilidade de se
conhecer a alma como substância, de se chegar ao que ele chamou de das Ding
an sich.
Ela (a psicologia) teve de desvencilhar-se da definição racional de verdade dos filósofos, porque se tornava cada vez mais claro que nenhuma filosofia possuía aquela validade universal que faça uniformemente justiça à diversidade dos indivíduos. Como nas questões de princípio era possível também um número indefinidamente grande de enunciados subjetivamente diferentes, cuja validade, por sua vez, só podia ser confessada subjetivamente, tornou-se naturalmente necessário abandonar o argumento filosófico e substituí-lo pela experiência. Com isto a psicologia se tornou uma ciência natural. (Jung, 1986, p.101, grifo meu).
Nesse
ponto a comparação com a física pode ser trazida a baila com maior propriedade,
ela se articula em dois níveis, ambos ligados a mesma argumentação que Jung fez
para compreender a desvinculação da psicologia da filosofia que finalmente leva
a radicalização do vaticínio de Nietzsche de que a filosofia será “ancilla psychologiae”. Um dos níveis da comparação com a física diz
respeito à similaridade entre alguns achados da física quântica e certos
aspectos da Psicologia Complexa, notadamente a incerteza de Heisenberg. Para Jung
qualquer ciência é função da psique, e qualquer conhecimento nela se radica. Ex exposistis, para Jung a psicologia se
encontra em desvantagem com relação as ciências naturais por não possuir um
ponto arquimediano externo, em situação análoga a essa, entre as ciências
naturais está apenas a física atômica, em cujos domínios o processo de observar
é modificado pela observação. Isso parece constituir uma grande vantagem para a
psicologia, por fornecer “ao menos uma leve esperança de existir para ela o tal
ponto de apoio reclamado por Arquimedes”. O mundo microscópico, a intimidade da
matéria, apresenta traços de afinidade com o psíquico, disso decorre, a leve
insinuação de que talvez no futuro seja possível a reconstrução do processo psíquico em outro meio: a microfísica da
matéria (Jung, 2011). Além disso, uma das fronteiras de conhecimento para Jung
era a relação entre a psique e a matéria, que o leva a pensar na hipótese da sincronicidade e que se beneficia do
profícuo diálogo que ele manteve com eminentes físicos.
Em
outro nível, para Jung a física é uma ciência basilar, e, assim como a física,
a psicologia ocupa essa posição em virtude de que qualquer conhecimento se
radica na psique. A psicologia possui, nesse sentido uma dignidade epistemológica
especial, um estatuto próprio que Jung denominou de esse in anima. Em artigo de 1926, denominado “Espírito e Vida” Jung
dá um passo para além da ciência natural e estabelece um “ponto de vista psicológico”.
Nesse artigo Jung argumenta que é possível duvidar seriamente da legitimidade
exclusiva do ponto de vista realista do pensamento científico, pois “(...) aquela
certeza sumamente real que chamamos de experiência é um aglomerado complicadíssimo
de imagens psíquicas mesmo em sua forma mais simples. Assim, em certo sentido,
da experiência imediata só nos resta a psique mesma” (Jung, 1986). Tão espessa é a névoa que nos cerca que foi
preciso inventar uma ciência exata para termos apenas um mero vislumbre da “natureza
real” das coisas, tal ciência é a física, e aqui vemos a importância da
comparação. Tudo o que sabemos a respeito do mundo e que temos uma consciência
imediata são os conteúdos inconscientes que fluem de fontes obscuras. Na perspectiva
de Jung, o ponto de vista realista esse
in re (ser do real) e o ponto de vista idealista esse in intellectu solo (ser apenas do intelecto) possuem validez
relativa, mas esses dois opostos extremos podem ser unidos pelo ponto de vista
psicológico esse in anima (ser na alma), pois vivemos imediatamente
apenas no mundo das imagens. Temos novamente a percepção de que não é possível
um conhecimento acerca do psíquico,
mas no psíquico, ergo não é possível submeter a validade dos fatos nem a crítica
epistemológica e nem a verificação científica, importa apenas se existe ou não
um conteúdo consciente, se existe então ele é válido em si mesmo. Isso se liga
diretamente a afirmação de Jung de que tudo aquilo que age, que atua é real, além
disso, engendra tanto uma postura clínica quanto uma postura metodológica. Em certo
sentido essa noção está intimamente ligada à postura kantiana de negar a metafísica
e de impor um limite ao conhecimento.
Finda
a longa digressão, e o passeio pela epistemologia de Freud, Lacan e Jung,
devemos nos perguntar seriamente qual o lugar da psicologia? Seria uma ciência
humana ou da natureza? Lembrando que todos os três eram médicos. Creio que dos
três, Freud seria o mais propenso a concordar com a mudança do curso de
psicologia para o Centro de Ciências da Saúde, todavia, ele certamente ficaria
de cabelo em pé ao se dar conta do lugar ignomioso que se costuma assestar a
psicologia na “saúde”. Jung, apesar de sempre se autodenominar médico, de
chamar, em seus escritos seu opus de uma “psicologia médica”, no sentido em que
hoje diríamos uma “psicologia clínica”, muitas vezes expressou a opinião de que
a formação médica era extremamente lacunar e insuficiente para os que se
dedicavam a psicologia e de que, na verdade, os médicos é que se beneficiariam
grandemente de um maior conhecimento psicológico. Jung não cansou de criticar
nosso atroz materialismo, e certa feita sobre as tentativas reducionismo biológico
no campo da psicologia (ainda tão em voga hoje) afirmou:
As relações causais dos acontecimentos psíquicos entre si, que podemos observar a qualquer momento, contradizem o ponto de vista epifenomenológico que possui uma semelhança fatal com a concepção materialista segundo a qual a psique é uma secreção do cérebro, tal como a bílis, que é uma secreção do fígado. Uma psicologia para a qual o fato psíquico é um epifenômeno melhor faria se se denominasse fisiologia do cérebro, contentando-se com o magro resultado que uma tal psicologia oferece. O fato psíquico merece ser considerado como um fenômeno em si, pois não há motivo nenhum para concebê-lo como um mero epifenômeno, embora esteja ligado à função cerebral, do mesmo modo como não se pode considerar a vida como um epifenômeno da química do carbono. (Jung, 2002, p.10).
Lacan
certa feita afirmou que a psicanálise o salvara da medicina, mesmo assim creio
que talvez ele fosse indiferente a essa pequena querela, visto a psicanálise não
ser psicologia, mas talvez se importasse ao menos um pouco ao perceber o quanto
da psicanálise foi apropriado pelo curso de psicologia. Mas, no frigir dos
ovos, creio que todos eles teriam, no mínimo, reservas teóricas, éticas e
epistemológicas em denominar tudo o que passa pelo nome de “psicologia” como ciência
da natureza, e, com certeza, não aceitariam para suas próprias obras um rótulo
tão apressado. Em entrevista sobre Lacan um ano após sua morte Foucault disse
ao ser perguntado se Lacan fora um revolucionário:
Acho que Lacan teria recusado este termo "revolucionário" e a própria ideia de uma "revolução em psicanálise". Ele queria apenas ser "psicanalista". Isso supunha, aos seus olhos, uma ruptura com tudo o que tendia a fazer depender a psicanálise da psiquiatria, ou a fazer dela um capítulo sofisticado da psicologia. Ele queria subtrair a psicanálise da proximidade da medicina e das instituições médicas, que considerava perigosa. Ele buscava na psicanálise, não um processo de normalização dos comportamentos, mas uma aparência de discurso extremamente especulativo, seu pensamento não é estranho a todos os esforços que forma feitos para recolocar em questão as práticas da medicina mental.
Creio
que é preciso refletir que devemos refletir que a mítica “psicologia” no
singular, que supostamente se ensina nas faculdades de psicologia onde se
aprende um pouco de tudo e muito de nada, no fundo não é nada, é uma quimera no máximo. De nada para passar a ser qualquer
coisa é fácil, dificilmente estaríamos nos perguntando a mesma pergunta
para cursos como história, ciências sociais, filosofia, ou mesmo jornalismo e,
certamente, tal desmando seria plenamente injustificado. Nem a psicanálise (de Freud
e Lacan) é parte dessa quimera, nem tão pouco o opus de Jung, o refinamento teórico e epistêmico desses autores,
seu rigor, seu gênio, seu compromisso ético, não combina com qualquer coisa.
A
proximidade da saúde pode condenar a “psicologia” a ser mera coadjuvante, “ciência
auxiliar”, ou “tecnologia leve”. Ou a se preocupar com tolices como a tão
propagada “humanização”, termo estranho e que supõe um “humano” dos mais
inverossímeis. Só faria sentido se os médicos fossem vacas (ou elefantes), mas
sendo eles pessoas me parece uma sandice, além disso, o termo revela miopia e
unilateralidade, pois do humano também fazem parte grandes horrores, não apenas
o que é sublime e belo. Jung, Freud e Lacan, com suas vidas e suas obras se
afastaram da medicina e de visões unilaterais e reducionistas do psiquismo,
eram pesquisadores sérios e dedicados e aqueles que se dedicam a estudar suas
obras deveriam, ao menos, parar e refletir criticamente sobre que tipo de
ideologia insidiosa se revela nessa escolha, nesse desmando.
Há
que se pensar também nas consequências, da maneira como as coisas estão já se constituía
enorme desafio estudar na academia as obras desses autores, ou o que Lacan
chamaria de psicanálise em extensão apenas
um dos tripés da formação do analista. Psicanálise e Psicologia Complexa visam
formar analistas, não se forma analistas na faculdade de “psicologia” formam-se
“psicólogos” que depois de conseguirem seu diploma se veem obrigados a tentar
aprender alguma coisa (os que são sérios). Para os três médicos que discuti
aqui, a formação do psicólogo/psicanalista depende em larga medida do
conhecimento e do estudo com afinco e dedicado, mas não apenas isso. Foi Jung
quem primeiro sugeriu a Freud que todos aqueles que praticam a arte da análise
em outrem devem eles mesmos se submeter a ela por dever de ofício, afirmou ele
certa feita que só podemos levar o paciente até onde fomos nós mesmos. A tal humanização
parece ainda mais tola diante desse imperativo ético, como pode um aprendizado
superficial sobre “empatia”, ou como segurar na mão do paciente e os passos
para parecer mais simpático ao transmitir uma má notícia se comparar ao
trabalho árduo sobre si mesmo que a análise representa? Podem mesmo alguns
manuais e um pouco de conversa fiada anular a autonomia dos complexos? Trazer o
autoconhecimento necessário para suportar as agruras das profissões que lidam
constantemente com vida, morte e sofrimento? O papel da psicologia genuína,
seja ela qual for, e não essa quimera é o de problematizar e questionar esse
tipo de coisa e não o de simplesmente se converter numa “técnica” capaz
justamente de fornecer uma “mentira piedosa” que vá justamente poupar os
profissionais de saúde de seus dilemas morais e de seu dever ético de encarar
seus próprios demônios.
Qual
é o lugar da psicologia afinal de contas? Meu dileto amigo Filipe Jesuíno gosta
sempre de citar algo que Jung falou em seu aniversário de 80 anos, disse ele
que aqueles que realmente poderiam continuar sua obra não eram os grandes
luminares que tinham vindo lhe render homenagem, mas as pessoas simples que
sofrem e em silêncio labutam para conseguir a difícil meta da completude para
poder ajudar os outros. Assim como Jung, creio que o lugar da psicologia é com
essas pessoas, sejam elas quem forem, estejam onde estiverem.