sábado, 26 de fevereiro de 2011

Aborto

Não pretendo falar sobre o aborto, ou mesmo advogar em favor ou contra essa prática, tão pouco expressar as minhas opiniões pessoais sobre esse tema. O que me motiva a escrever sobre o aborto é tentar esclarecer os motivos dessa discussão ser tão espinhosa e difícil quando a religião dá a sua colherada. Normalmente aqueles que são radicalmente contrários ao aborto pertencem a alguma designação religiosa, sejam cristãos católicos ou protestantes ou mesmo alguma outra. Há um motivo para isso ser dessa maneira, mas creio que poucas pessoas atentam para esse motivo.

Para utilizar a definição de Campbell, religião é mitologia mal compreendida, tendo isso em mente, é preciso lembrar que a mitologia possui quatro funções: a mística, a cosmológica, a sociológica e a psicológica. Para compreendermos toda a confusão causada pela discussão do aborto em nossa sociedade laica quando os religiosos resolvem expor seus pontos de vista é preciso compreender com clareza a função sociológica do mito.

Em nossa sociedade moderna, o mito perdeu (para a maioria) as funções cosmológica e sociológica. Hoje a moralidade é encarada como algo pertencente à esfera humana, algo que nós meros mortais podemos julgar, e não mais como uma verdade imutável revelada por alguma divindade. Nossa sociedade passa por tremendas mudanças em curtos períodos de tempo, e quando mudam as circunstâncias a ordem moral se modifica. Não é preciso recuar muito no tempo, basta que qualquer um de nós tente se recordar de como eram as coisas dez anos atrás e de como são hoje. A moral sexual, por exemplo, sofreu mudanças radicais em um tempo muito curto. Muita coisa que tínhamos como certas há alguns anos hoje são vistas como erradas. Me recordo com clareza de, ainda menino, ter ouvido um senhor que era ascensorista em um elevador que estava tomando se queixar de como quando ele era jovem pratos como mão de vaca e outras coisas bem gordurosas eram tidas como saudáveis e agora eram vistos como verdadeiros venenos para o coração.

Todavia, as coisas nem sempre foram assim, na verdade, por quase toda a história da humanidade as coisas foram bem diferentes. A função cosmológica e a função sociológica estão vinculadas, a primeira permite que, através do mito, formulemos uma imagem do próprio universo, que é a ordem da matemática do cosmos com seus ciclos inalteráveis. A função sociológica do mito visa vincular a sociedade a esses ciclos eternos e vincular o indivíduo a sociedade. Essa idéia, de uma grande ordem cósmica impessoal, da qual mesmo os deuses não passam de meras manifestações, não está presente nos mitos das sociedades primitivas. Essa idéia surge na cidade hierática mesopotâmica, quando algumas pessoas passaram a olhar para os céus e perceber um padrão, sejam os ciclos lunares, a distribuição das estações, a sucessão dos dias e das noites, as estrelas fixas e tudo isso que podemos perceber ao olhar para o céu com tempo e paciência o bastante.

Uma imagem cosmológica permite ao indivíduo reconciliar sua vida com a própria consciência e com a expectativa de que haja um significado para o cosmos que nos rodeia, que haja algum sentido para toda a luta, sofrimento e problemas que é a vida em meio esse nosso mundo tão complicado. Quando o mito proporciona uma imagem como essa do cosmos, ele também passa a vincular a sociedade a essa imagem significativa do universo. A função sociológica visa preservar e validar um certo sistema social, ou seja, um conjunto de valores, de moral, que nos diz com clareza que para determinada sociedade algo é certo ou errado. Numa sociedade tradicional essas noções de ordenação social, lei, ética e moral, pertencem ao âmbito da ordem cosmológica. Assim como as leis do cosmos são primordiais, universais e inquestionáveis, assim também é a ordem social primordial, universal e inquestionável. As leis sociais, amparadas pelo mito, têm a mesma validade que as leis do universo.

Um dos exemplos mais bem acabados disso pode ser encontrado na tradição judaica, com Moisés descendo do Monte Sinai com as tábuas das leias, um presente vindo diretamente de Deus. É muito significativo que essas leis tenham sido escritas em pedras, quando queremos nos referir a algo que pode mudar dizemos “não está escrito em pedra”, pois bem, as leis de Deus estão. As leis do universo e as leis sociais provêm ambas da mesma fonte. Assim como Deus ordenou o universo e fez os dias seguirem as noites e colocou a lua e seus ciclos no céu, também ordenou a sociedade humana. Essas leis não podem ser refutadas, elas são isentas de críticas, da mesma maneira que as leis do cosmo. Ninguém pode um dia pensar “nossa, é chato que as coisas arremessadas para o alto sempre voltem para a terra aqui em baixo, devíamos mudar isso!”, numa ordem social tradicional baseada num mito é igualmente impossível pensar “sabe, as coisas mudaram, devíamos tratar as mulheres de maneira diferente”, bem, não pode ser, pois a moral é algo dado, revelado, e a não ser que Deus se manifestasse novamente sobre o cume de alguma montanha as coisas permanecem como estão.

Eis o nosso dilema, em nossa sociedade o mito perdeu essas duas funções, a cosmológica e a sociológica, temos leis que podem ser mudadas quando a sociedade muda. Basta ver, por exemplo, o caso do divórcio. Todavia, a igreja está presa as noções de moralidade e ética de três mil anos atrás, e isso leva a todo tipo de confusão. É claro que não se pode simplesmente descartar a bíblia, não é esse o caso, pois existem aspectos da existência humana que realmente são bastante estáveis, é o que concerne a função psicológica do mito, mas nossa sociedade e suas leis são muito diferentes daquelas dos levantinos de milhares de anos atrás, bem como nossa imagem do cosmos, fornecida hoje não mais pelo mito, mas pela ciência. Mas aqueles que são realmente vinculados a essas velhas e grandiosas imagens, não podem simplesmente acreditar apenas naquilo que lhes é conveniente, principalmente quando se cai no erro de insistir na historicidade desses símbolos.

Isso leva a um impasse terrível, não apenas quanto ao aborto, mesmo algo razoavelmente banal, como o uso de contraceptivos, acaba caindo nessa situação em que tudo fica empacado. Creio que o aborto seja o exemplo atual mais dramático dessa situação paradoxal. Mesmo grandes nomes da tradição filosófica ocidental, como Kant, se aperceberam de que uma ordem moral precisa de uma justificativa metafísica para se manter, sem isso é preciso um estado que exerça forte coerção sobre o indivíduo ou uma capacidade incomum de reflexão e autoconsciência por parte das pessoas. Logo, para os representantes das igrejas, nenhum argumento atual é válido para justificar o aborto, não importa o quão atuais e coerentes sejam esses argumentos, pois eles provêm dos homens, enquanto que seus argumentos, por mais que nos soem anacrônicos, são tão inquestionáveis e universais quanto os ciclos lunares.

Nenhum comentário:

Postar um comentário