domingo, 7 de outubro de 2012

Esquecimento


Estava eu distraído a ler um livro chamado História e Memória, lia justamente o ensaio que tinha esse mesmo título, sobre a memória quando ao virar uma das páginas me deparei com um fragmento esquecido de mim mesmo. Um pedaço banal de papel, branco, perfeitamente quadrado, com algo escrito. Demorei a reconhecer a minha própria letra, começava com a letra de forma feia com que escrevo quando resolvo ser destro e findava com caligrafia caprichada que tenho quando escrevo com a mão esquerda, ali estava algo de estranho inusitado e que congelou por alguns instantes o tempo do relógio e me desconstruiu.

Começava, ironicamente com um pos-script entre parênteses com a poderosa frase “eu te amo”, seguia-se a esse início deslocado e estranho uma lista:

Fábrica de Brinquedos
A Maldição da Flor de Ouro
Gênio Indomável
Jornada de (ilegível)
Coisas que perdemos pelo caminho

Não lia esse livro há anos, eu o emprestara a um amigo antes dele ir morar no Japão e comprara uma versão mais luxuosa dele para figurar em minhas prateleiras. Ele estava jogado em uma das muitas pilhas de livro que existem espalhadas pela minha casa a espera que eu compre mais prateleiras ou estantes. Eu o achei com facilidade, apesar da bagunça na minha biblioteca e o coloquei na minha pasta de livros. Estava interessado em ler sobre a memória, não as tolices de metafísica da matéria que a neurociência tem a dizer sobre o tema, mas algo realmente interessante, e quis o destino que me deparasse com pedaços meus a muito esquecidos.

Não sei a quem essa nota se dirigia, assim que li os nomes na insólita lista demorei a me dar conta de que se tratava de uma lista de filmes, meu choque ao ler as palavras ali contidas teve o condão de suspender meu julgamento racional e me lançar num estado quase onírico, sonâmbulo. Só posso, depois de recuperado do impacto afetivo de uma tal leitura, tão breve e tão dolorosa como um soco, tentar criar alguma ficção qualquer para suprir essa lacuna. Mas isso eu não desejo.

Ao perceber de maneira tão chocante o quanto eu esqueci, o quanto de mim já não é mais, me fez sentir, após o choque inicial, como se o peso dos anos que se acumulam sobre mim fosse repentinamente tornado mais leve. Amei e não me recordo nem mesmo de ter amado, assim como erros e acertos que jazem para sempre nas trevas espessas do esquecimento, tormentos passados que se foram, pedaços de mim jogados ao léu e que não me prendem mais como grilhões a me ligar a um passado fantasmagórico. Diferente de erros e pecados que eu possa ter me perdoado com o passar do tempo, seja lá o que represente o enigmático pedaço da minha história que contemplei por breves instantes, é algo que eu esqueci. O esquecimento é mais poderoso que o perdão.

Há, ao que me parece, um gozo sinistro no esquecimento, um prazer indizível de não ser. Ou de não ser mais, de não estar mais sólido, de ser vaporoso como os meandros da memória e do encanto particular de nossas ficções cotidianas de amores e rancores, derrotas e vitórias, rochas em perpetua colisão a nos barrar o caminho. Dédalos de nossa alma cujos recantos sombrios já não visitamos mais e por isso não nos assombram. Os mortos estão por fim enterrados e genuinamente mortos quando estão esquecidos. Como os fantasmas das lendas que persistem em sua labuta na terra dos vivos quando algo ainda os mantêm aqui, e quando esse elo se vai eles também desaparecem e nos deixam em paz. Há paz no esquecimento, uma paz que me faz pensar na ideia de Freud de que todos nós lutamos contra uma vontade de autodestruição. O fardo da vida seria por demais pesado se essa força de aniquilação não tivesse suas vitórias sobre a nossa alma de tempos em tempos.

Sou abençoado com uma memória extraordinária, e sempre me ressenti do esquecimento, sempre o encarei como um inimigo a ser combatido. Esse fragmento de esquecimento que segurei entre meus dedos me trouxe uma trégua contra a guerra particular que travava contra o oblivion. O rio que corre na terra dos mortos e de cujas águas todos beberemos para esquecer nossos dias de tormento sobre esta terra, onde vivemos sob a sombra da morte, é mais do que necessário. Tomamos desse cálice mesmo em vida sem o sabermos, e o que ele traz é a eternidade. A eternidade é o aqui e o agora, do qual nos privamos ao estarmos presos ao que já foi ou ao que ainda será. O futuro não existe e o passado é uma ilusão, diriam os mestres Zen, esse pedaço de papel rabiscado foi meu pequeno satori.

Dias depois, caminhando de madrugada eu fui roubado. Um assaltante armado com um revólver levou meu telefone celular, e com ele uma parte artificial de minha memória. Centenas de números, alguns úteis, outros tantos inúteis, agora não os possuo mais. Ou talvez, eles não me possuam mais. Estou livre do fardo que eles representavam. Talvez nunca mais possa, mesmo que precise, ligar para alguma daquelas pessoas, e isso me traz uma sensação como de um vento fresco que sopra das montanhas. Ali havia números que não me diziam mais nada, sem sentido, esquecidos e sem importância, mas ali gravados como um lembrete do que foi e não mais será. Eles se foram, e com eles muito de mim e do meu passado, ou do futuro em que eles poderiam ser úteis novamente, estou livre para a eternidade. Para o único momento que realmente importa: o agora.

Quanto ao pedaço de papel que habitava as páginas do meu livro, ele será queimado assim que eu colocar um ponto final nesse texto. Holocausto oferecido aos deuses esquecidos e sem nome que viveram em eras tão longínquas que se perdem na aurora do tempo. Presenças invisíveis que talvez nem mesmo tivessem nomes no despertar da raça humana para o milagre cósmico que é a consciência. A fumaça irá se elevar até os Deuses e com ele um pedaço de mim, que eu já nem sabia mais que existia e que não me fará falta. Essa ausência me constitui mais do que muitas de minhas mais queridas lembranças.

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