Estava
eu distraído a ler um livro chamado História e Memória, lia justamente o ensaio
que tinha esse mesmo título, sobre a memória quando ao virar uma das páginas me
deparei com um fragmento esquecido de mim mesmo. Um pedaço banal de papel,
branco, perfeitamente quadrado, com algo escrito. Demorei a reconhecer a minha
própria letra, começava com a letra de forma feia com que escrevo quando
resolvo ser destro e findava com caligrafia caprichada que tenho quando escrevo
com a mão esquerda, ali estava algo de estranho inusitado e que congelou por
alguns instantes o tempo do relógio e me desconstruiu.
Começava,
ironicamente com um pos-script entre parênteses com a poderosa frase “eu te amo”,
seguia-se a esse início deslocado e estranho uma lista:
Fábrica
de Brinquedos
A
Maldição da Flor de Ouro
Gênio
Indomável
Jornada
de (ilegível)
Coisas
que perdemos pelo caminho
Não
lia esse livro há anos, eu o emprestara a um amigo antes dele ir morar no Japão
e comprara uma versão mais luxuosa dele para figurar em minhas prateleiras. Ele
estava jogado em uma das muitas pilhas de livro que existem espalhadas pela
minha casa a espera que eu compre mais prateleiras ou estantes. Eu o achei com
facilidade, apesar da bagunça na minha biblioteca e o coloquei na minha pasta
de livros. Estava interessado em ler sobre a memória, não as tolices de metafísica
da matéria que a neurociência tem a dizer sobre o tema, mas algo realmente interessante,
e quis o destino que me deparasse com pedaços meus a muito esquecidos.
Não
sei a quem essa nota se dirigia, assim que li os nomes na insólita lista
demorei a me dar conta de que se tratava de uma lista de filmes, meu choque ao
ler as palavras ali contidas teve o condão de suspender meu julgamento racional
e me lançar num estado quase onírico, sonâmbulo. Só posso, depois de recuperado
do impacto afetivo de uma tal leitura, tão breve e tão dolorosa como um soco,
tentar criar alguma ficção qualquer para suprir essa lacuna. Mas isso eu não
desejo.
Ao
perceber de maneira tão chocante o quanto eu esqueci, o quanto de mim já não é
mais, me fez sentir, após o choque inicial, como se o peso dos anos que se
acumulam sobre mim fosse repentinamente tornado mais leve. Amei e não me
recordo nem mesmo de ter amado, assim como erros e acertos que jazem para
sempre nas trevas espessas do esquecimento, tormentos passados que se foram,
pedaços de mim jogados ao léu e que não me prendem mais como grilhões a me ligar
a um passado fantasmagórico. Diferente de erros e pecados que eu possa ter me
perdoado com o passar do tempo, seja lá o que represente o enigmático pedaço da
minha história que contemplei por breves instantes, é algo que eu esqueci. O esquecimento
é mais poderoso que o perdão.
Há,
ao que me parece, um gozo sinistro no esquecimento, um prazer indizível de não
ser. Ou de não ser mais, de não estar mais sólido, de ser vaporoso como os
meandros da memória e do encanto particular de nossas ficções cotidianas de
amores e rancores, derrotas e vitórias, rochas em perpetua colisão a nos barrar
o caminho. Dédalos de nossa alma cujos recantos sombrios já não visitamos mais
e por isso não nos assombram. Os mortos estão por fim enterrados e genuinamente
mortos quando estão esquecidos. Como os fantasmas das lendas que persistem em
sua labuta na terra dos vivos quando algo ainda os mantêm aqui, e quando esse
elo se vai eles também desaparecem e nos deixam em paz. Há paz no esquecimento,
uma paz que me faz pensar na ideia de Freud de que todos nós lutamos contra uma
vontade de autodestruição. O fardo da vida seria por demais pesado se essa
força de aniquilação não tivesse suas vitórias sobre a nossa alma de tempos em
tempos.
Sou
abençoado com uma memória extraordinária, e sempre me ressenti do esquecimento,
sempre o encarei como um inimigo a ser combatido. Esse fragmento de
esquecimento que segurei entre meus dedos me trouxe uma trégua contra a guerra
particular que travava contra o oblivion. O rio que corre na terra dos mortos e de cujas águas todos beberemos para
esquecer nossos dias de tormento sobre esta terra, onde vivemos sob a sombra da
morte, é mais do que necessário. Tomamos desse cálice mesmo em vida sem o
sabermos, e o que ele traz é a eternidade. A eternidade é o aqui e o agora, do
qual nos privamos ao estarmos presos ao que já foi ou ao que ainda será. O futuro
não existe e o passado é uma ilusão, diriam os mestres Zen, esse pedaço de
papel rabiscado foi meu pequeno satori.
Dias
depois, caminhando de madrugada eu fui roubado. Um assaltante armado com um revólver
levou meu telefone celular, e com ele uma parte artificial de minha memória. Centenas
de números, alguns úteis, outros tantos inúteis, agora não os possuo mais. Ou talvez,
eles não me possuam mais. Estou livre do fardo que eles representavam. Talvez nunca
mais possa, mesmo que precise, ligar para alguma daquelas pessoas, e isso me
traz uma sensação como de um vento fresco que sopra das montanhas. Ali havia números
que não me diziam mais nada, sem sentido, esquecidos e sem importância, mas ali
gravados como um lembrete do que foi e não mais será. Eles se foram, e com eles
muito de mim e do meu passado, ou do futuro em que eles poderiam ser úteis
novamente, estou livre para a eternidade. Para o único momento que realmente
importa: o agora.
Quanto
ao pedaço de papel que habitava as páginas do meu livro, ele será queimado
assim que eu colocar um ponto final nesse texto. Holocausto oferecido aos
deuses esquecidos e sem nome que viveram em eras tão longínquas que se perdem
na aurora do tempo. Presenças invisíveis que talvez nem mesmo tivessem nomes no
despertar da raça humana para o milagre cósmico que é a consciência. A fumaça
irá se elevar até os Deuses e com ele um pedaço de mim, que eu já nem sabia
mais que existia e que não me fará falta. Essa ausência me constitui mais do
que muitas de minhas mais queridas lembranças.
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