segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A influência de Charcot sobre a obra de Freud

Freud inicia sua carreira no laboratório de fisiologia de Ernest Brücke, a princípio comungando das crenças fisicalistas de seu professor. Palmer diz:
[...] ele ter tido seu primeiro treinamento científico em companhia dos materialistas médicos da chamada ‘escola de HelmHoltz’ (...). Seus objetivos foram notoriamente resumidos numa carta escrita por Bois-Reymond em 1842: ‘Brücke e eu fizemos o juramento solene de pôr em prática essa verdade: nenhuma força além das forças físico-químicas comuns age no organismo’. Freud, naturalmente se afastaria muito dessa tentativa de reduzir todos os fenômenos a categorias explicativas da física e da química. (2001, p.18).
É por influência de Brücke que Freud realiza a viagem que mudaria radicalmente sua vida e o curso de seus estudos, a viagem a Salpêtrière. Por essa época Charcot estava envolvido no debate acerca de uma série de querelas sobre os estudos psiquiátricos e, apesar de seu ponto de vista ser similar ao de Brücke, já diferia em pontos importantes. Por essa época, o último quartel do século dezenove, vários ramos da Psiquiatria defendiam que a histeria (entendida como “ataques histéricos” agudos com paroxismos de gestos involuntários, contorções do corpo, exclamações; ou sintomas crônicos como cegueira histérica mutismo e paralisia), decorria uma alteração anatômica no sistema nervoso, especialmente o cérebro, que seria a causa de toda essa sintomatologia aparentemente tão diversa. Charcot possuía uma tese que divergia da hipótese anatomopatológica, ele concordava que a histeria deveria estar associada a algum tipo de anomalia do sistema nervoso, não obstante, insistia que não havia qualquer tipo de alteração anatômica envolvida, portanto, estudos autópticos não levariam a qualquer descoberta nova nem elucidariam a natureza de tais distúrbios. (LEVIN, 1980).
Por todo o século XIX, debateu-se acaloradamente na medicina acadêmica acerca da utilidade relativa da Anatomia Patológica, que consistia em acompanhar os pacientes até a necropsia a fim de correlacionar os sintomas aos dados e alterações anatômicas. Em contrapartida a essa perspectiva, havia a Fisiologia que colocava um maior acento na experimentação laboratorial com cobaias animais com o fim de investigar os modos de funcionamento em vez da estrutura. Chegando-se mesmo a debates escolásticos como, por exemplo, o que seria mais próximo de um ser humano vivo: um ser humano morto ou um animal vivo? Em Paris, desde a revolução francesa, colocava-se maior acento à Anatomia Patológica. Foi em Paris que pela primeira vez a Psiquiatria se estabeleceu como especialidade separada, ipso facto, de Paris saíram os mais importantes compêndios acadêmicos de Psiquiatria, e sua ênfase na Anatomia Patológica dominou o cenário da Psiquiatria acadêmica européia durante a primeira metade dos anos oitocentos. (LEVIN, 1980).
A partir de 1840, a universidade de Viena, em claro contraste com as demais instituições de peso de língua germânica, adotou a tendência anatômica e também ficou estabelecida a Psiquiatria como disciplina universitária. Viena logo suplantou a importância de Paris e tornou-se o principal centro europeu de uma Psiquiatria de orientação ainda predominantemente anatômica. (LEVIN, 1980).
Durante essas décadas, o método patológico-anatômico logrou, de fato, esclarecer a natureza de numerosas doenças neurológicas e psiquiátricas, e sua eficácia justificou, em grande parte, a sua contínua hegemonia. Mas o seu próprio êxito acarretou, inevitavelmente, desafios e contestações a tal abordagem, pois na medida em que os estudos anatômicos removeram efetivamente síndromes da lista de doenças de patologia desconhecida, eles deixavam ficar nessa lista aquelas doenças que eram menos acessíveis à abordagem anatômica e que recebiam uma atenção crescente como enigmas ainda por resolver (LEVIN, 1980, p.13).
Em princípios da década de 1880, numerosos pesquisadores passaram a contestar a ênfase na pesquisa das estruturas anatômicas e a buscar outros tipos de enfoques. A histeria e as neuroses afins haviam resolutamente desafiado a pesquisa anatômica, o que resultou em inúmeras controvérsias e tentativas de ambos os lados de obter respostas satisfatórias. A teoria de Charcot caminhava nesse sentido, para ele a histeria tinha como etiologia anormalidades fisiológicas difusas no sistema nervoso central, e esses fatos não acarretavam mudanças estruturais. Charcot também propôs explicações psicológicas para diversos fenômenos histéricos.
 Existiram ainda, nos anos oitocentos, diversas concepções sobre a histeria. Para o fundador da Psiquiatria alemã, Wilhelm Griesinger (1817-1868) a histeria era uma “doença detestável”, que mesmo em seus casos mais suaves levaria a um grave comprometimento psíquico e que as pessoas acometidas desse mal seriam “seres insuportáveis para o meio em que vivem”. Benedict-Augustin Morel (1809-1873), médico francês, retoma em 1853 a descrição do caráter histérico na linha da desqualificação aberta por Griesinger, dizia ele sobre as histéricas: “se afogam nas mais bizarras suposições, as mais falsas, as mais ridículas e as mais injustas. Como o amor pela verdade não é uma virtude predominante de seu caráter, (...) enganam seus maridos, seus pais, seus amigos assim como seus padres confessores e seus médicos”. Para Charles Lasègue (1816-1883), alienista francês, os sintomas histéricos seriam completamente anômicos, sendo a histeria um fenômeno impalpável e caótico por natureza, seria impossível referir-se a uma tipificação do fenômeno, mesmo que meramente descritiva. Para Jules Falret (1824-1902), haveria cinco traços principais do caráter histérico: grande mobilidade dos estados psíquicos; o espírito de contradição e controvérsia; a duplicidade e a mentira; rapidez na produção de idéias, impulsos e atos; e o espírito sonhador e romanesco que levaria a fantasia a predominar sobre a vida real. Para Lasègue as histéricas seriam mais vaidosas e coquetes do que verdadeiramente ardentes e passionais, podendo chegar à “loucura raciocinante dos histéricos”: ninfomania, ciúme malsão e tirânico, sendo perversas na vingança. Paul Briquet (1796-1881), médico francês, confere dignidade à histeria e a considera uma doença a ser encarada com seriedade, seria uma doença das paixões devida “à existência, na mulher, dos sentimentos mais nobres e mais dignos de admiração. Sentimentos que somente ela é capaz de experimentar”. James Braid (1795-1860) criou o termo hipnose, e percebeu que através dela se podia reproduzir sintomas histéricos. Deve-se a ele a descoberta dos efeitos de sugestão no tratamento da histeria. Hyppolite Bernheim (1837-1919), da Escola de Nancy, era um ferrenho opositor de Charcot e afirmava que todas as manifestações de histeria não passavam de produto de sugestão. Joseph Babinsk (1857-1933), aluno de Charcot, sugere a mudança do nome histeria por pitiatismo, a histeria seria um mero “piti” curável pela persuasão. Em sua concepção a histeria não passaria de simulação, assim todo sujeito histérico não passaria de um simulador. (QUINET, 2005). Freud endossava o modelo fisiológico de Charcot, mas com ressalvas.
Acreditava que a anormalidade fisiológica era a fonte da vulnerabilidade da pessoa à neurose, e que essa anormalidade era também causa direta de certos sintomas histéricos específicos. Mas acreditava também que, em virtude do estado rudimentar da Neurofisiologia da época, a tentativa de realização de modelos orgânicos só poderia resultar em hipóteses altamente especulativas e inúteis. Portanto, preferiu concentrar-se na explicação daqueles sintomas que pareciam ser o produto de fatores psicológicos. Também se concentrou na resolução terapêutica dos sintomas histéricos. (LEVIN, 1980, p.14).
Por essa época Freud em concordância com Charcot e Brücke também não era partidário da perspectiva da Anatomia Patológica e planejou junto de Charcot suas pesquisas futuras baseada nessa crença, e já no limiar de uma pesquisa psicológica propriamente dita.
Antes de partir de Paris, examinei com o grande homem um plano para um estudo comparativo das paralisias histéricas e orgânicas. Desejava estabelecer a tese de que na histeria as paralisias e anestesias das várias partes do corpo se acham demarcadas de acordo com a idéia popular dos seus limites e não em conformidade com fatos anatômicos. Ele concordou com esse ponto de vista, mas foi fácil ver que na realidade não teve qualquer interesse especial em penetrar mais profundamente na psicologia das neuroses. Quando tudo já havia sido dito e feito, foi a partir da anatomia patológica que seu trabalho havia começado. (FREUD, 1976b, v.XX p.25)
Tratarei da relação entre Freud e Charcot, a quem o pai da Psicanálise freqüentemente se refere como “o grande homem”, de maneira mais detalhada adiante, por hora basta salientar que Freud impressionou-se sobremaneira com as teatrais apresentações de hipnose de Charcot, sua indução de fenômenos histéricos através do hipnotismo em pessoas sadias e a desconcertante afirmação de que havia homens histéricos.
O que mais me impressionou enquanto privei com Charcot foram suas últimas investigações acerca da histeria, algumas delas levadas a efeito sob meus próprios olhos. Ele provara, por exemplo, a autenticidade das manifestações histéricas e de sua obediência a leis (‘introite et hic dii sunt’) a ocorrência freqüente de histeria em homens, a produção de paralisias e contraturas histéricas por sugestão hipnótica e o fato de que tais produtos artificiais revelam, até em seus menores detalhes, as mesmas características que os acessos espontâneos, que eram muitas vezes provocados traumaticamente. (FREUD, 1976b, v.XX, p.24).
Esta última descoberta de Charcot, transmitida a Viena através de Freud, chocou sobremaneira o público médico, que por nenhum meio se deixou convencer da veracidade dessa descoberta francesa. De fato Freud queixou-se de “má recepção”.
Pessoas de autoridade, como o presidente (Bamberger, o médico), declararam que o que eu disse era inacreditável. Meynert desafiou-me a encontrar alguns casos em Viena semelhantes àqueles que eu descrevera e a apresentá-los perante a sociedade. Tentei fazê-lo; mas os médicos mais antigos, em cujos departamentos encontrei casos dessa natureza, recusaram-se a permitir-me observá-los ou a trabalhar neles. Um deles, velho cirurgião, na realidade irrompeu com a exclamação: ‘Mas, meu caro senhor, como pode dizer tal tolice? Hysteron (sic) significa o útero. Assim como pode um homem ser histérico?’ (FREUD, 1976b, v.XX, p.26).
Poucas das pessoas que travaram contato com Freud exerceram sobre ele uma influência tão profunda e duradoura quanto Jean Martin Charcot. Freud havia conseguido graças à intervenção de Brüke uma modesta bolsa de estudos para passar seis meses em Paris, sob a tutela de Charcot. Nesse período, Freud estava interessado em conseguir um meio de prover a sua subsistência para, finalmente, casar-se com sua noiva Martha Bernays. Apenas seis semanas após noivar Freud entrou para o hospital Geral de Viena, onde permaneceu por três anos. Foi em 1885 que ele requereu à faculdade a bolsa de viagem, por essa época, ainda esperava por sua indicação de Privatdozent no hospital. (GAY, 2004).
Charcot nascido em Paris e falecido em Morvan, França, alcançou fama no terreno da psiquiatria na França, na segunda metade do século XIX. Foi um dos maiores clínicos e professores de medicina da França e juntamente, com Guillaume Duchenne, o fundador da moderna neurologia. Era professor de Neuropatologia da Universidade de Paris, e diretor clínico do Salpêtrière. O nome desse hospital vem do fato de ter sido construído no local de uma antiga fábrica de pólvora, cujo componente principal é o salitre, em francês, salpêtre. O hospital foi primitivamente um albergue e orfanato, criado por édito real de 1656, para os mendigos da cidade, no qual as loucas mais agitadas ficavam acorrentadas até morrer. Somente no início do século XIX, a situação da seção de alienados mudou por obra do psiquiatra Philippe Pinel. Na segunda metade do século XIX, quando o Jean-Martin Charcot assumiu a responsabilidade por essa seção, Salpêtrière tornou-se um centro de estudos psiquiátricos mundialmente famoso.
Freud legou para a posteridade várias de suas impressões sobre Paris e o caráter dos franceses em sua abundante correspondência para sua noiva Martha. Era uma época de penúria para o jovem Freud, que dispunha de parcos recursos. Mesmo assim ele logo tratou de explorar a cidade e conhecer seus parques, jardins, praças e teatros. Encantou-se particularmente pelo Louvre e sua coleção de artefatos da antiguidade: estátuas gregas e egípcias, bustos de imperadores, baixos relevos egípcios (GAY, 2004).
Mas o mais importante é que, desde o começo, Freud ficou deslumbrado com Jean Martin Charcot. Por cerca de seis semanas, ele trabalhou no estudo microscópico de cérebros infantis no Laboratório Patológico de Charcot, na Salpêtrière (...) Mas a presença poderosa de Charcot afastou-o do microscópio e impeli-o a uma direção para a qual, conforme alguns sinais visíveis, já vinha se encaminhando: a psicologia. (GAY, 2004, p.60).
Charcot era um conferencista brilhante, sempre claro, teatral, tratando com grande seriedade os problemas que se propunha a discutir, mas, algumas vezes, apelando para o humor em seus argumentos. Charcot era muito franco em suas conferências, apresentando seu raciocínio com riqueza de detalhes e sem tentar escamotear suas dúvidas e incertezas. Pelo contrário, suas hesitações eram habilmente utilizadas em suas argumentações “como conferencista e defensor, Freud, que explorava habilmente suas próprias incertezas, procederia da mesma forma” (GAY, 2004). Freud também se impressionara vivamente com as demonstrações clínicas de Charcot ao diagnosticar doenças mentais. Esse aspecto do trabalho de Charcot lembrava a Freud o mito de Adão, que havia nomeado todos os animais. “Freud, o insuperável nomenclador que se comportaria como o Adão da psicanálise, neste e em muitos outros aspectos foi discípulo de Charcot.” (GAY, 2004). Não obstante, a maior das ousadias de Charcot e que causara viva impressão no espírito do jovem Freud, sem dúvida era o uso de que fazia da hipnose. Charcot a tinha resgatado das mãos dos curandeiros e charlatões, e com seus modos teatrais, demonstrava a cura ou indução de paralisias histéricas através de seu uso.
Segundo a escola de Charcot, a hipnose era definida como “uma condição mórbida artificialmente produzida – uma neurose”, com inegáveis componentes somáticos. Charcot também era defensor da idéia de que o estado hipnótico só poderia ser induzido em histéricos. Não obstante, havia na própria França, posicionamentos contrários ao de Charcot e seus seguidores, por exemplo, Hippolyte Bernheim advogava que a hipnose era uma mera questão de sugestão; ergo, qualquer um poderia ser eventualmente susceptível a ela (GAY, 2004). Freud, durante um certo tempo, inclinou-se a acreditar que a posição de Charcot acerca da hipnose era a mais acertada, mas em 1889, quando visitou Bernheim em Nancy para aprender mais sobre hipnose, considerou essa uma das experiências mais proveitosas de sua vida. Poder-se-ia dizer que o antigo ditado se aplicava a Freud: amicus Plato, sed magis amica veritas; bastaria trocar o nome Platão por Charcot.
Outros aspectos da postura de Charcot no que diz respeito à histeria assomam como influeências de fundamental importância para os desenvolvimentos posteriores a que as pesquisas e elucubrações de Freud o levariam.
Charcot era muito mais que um ator. Ao mesmo tempo luminar da medicina e celebridade social, gozando de um prestígio sem par, ele havia diagnosticado a histeria como uma verdadeira enfermidade, ao invés do refúgio de doentes imaginários. E mais, havia reconhecido que a histeria – ao contrário de todas as idéias tradicionais – aflige tanto os homens quanto as mulheres. (GAY, 2004, p.61).
A hipnose não era uma novidade para Freud, no ano de 1885, ainda estudante de medicina, já havia se convencido de que o estado hipnótico era um fenômeno autêntico, apesar da crença generalizada em contrário. Todavia, deveria ser alentador ver sua convicção respaldada pelo “grande homem”, epíteto que com freqüência utilizava para designar Charcot. Ex positis, fica claro o papel de relevo desempenhado pela hipnose nas pesquisas de Freud. Os aspectos dinâmicos do inconsciente encontraram comprovação através dos fenômenos induzidos através da sugestão hipnótica, os fatores etiológicos das neuroses também haviam sido prospectados por Freud através da recordação de lembranças esquecidas provocada artificialmente com o uso da hipnose; mesmo a práxis clínica de Freud, como propriamente psicanalítica, surge quando ele se emancipa da hipnose e, como vimos acima no caso de Frau Moser, ele chega à técnica de associação livre. Não apenas isso, mas o rapport hipnótico, a capacidade do magnetismo do hipnotizador de estabelecer uma relação com seu paciente a fim de colocá-lo em transe, foi posteriormente identificado por Freud como o fenômeno da transferência (Übertragung), que viria a se tornar uma poderosa ferramenta terapêutica no arsenal psicanalítico. Freud pôde presenciar isso em primeira mão através das reações dos pacientes de Charcot, ocorridas durante e depois da hipnose.
Nas palavras de Pierre Janet, o aluno mais famoso de Charcot, eles desenvolviam uma “paixão magnética” pelo hipnotizador – um sentimento de amor, seja de caráter filial, maternal ou puramente erótico. Freud descobriu não muito tempo depois que essa paixão tinha seu lado inconveniente; num dia surpreendente em Viena, uma de suas primeiras pacientes, tendo se libertado das dores histéricas depois de uma sessão de hipnótica, lançou seus braços ao pescoço de quem a curara. Essa experiência embaraçosa, rememorou Freud, deu-lhe a pista para o “elemento místico” oculto na hipnose. Mais tarde, ele identificaria esse elemento como um exemplo de transferência e viria a empregá-lo como poderoso instrumento de técnica psicanalítica. (GAY, 2004, p.61).
Charcot fora para Freud, assim como Bürke antes dele, um modelo, uma importante figura paterna que reunia em si qualidades que seriam absorvidas por ele de diversas maneiras. Com o tempo, Charcot passou a devotar a ele uma atenção particular, e Freud passou a freqüentar seu círculo mais próximo no Salpêtrière, e a freqüentar eventos sociais em sua mansão. Tamanha foi a impressão deixada por Charcot em Freud, que um de seus filhos foi batizado com o nome de Jean Martin, assim como anos antes, havia batizado um de seus filhos de Ernst em homenagem a Brüke.
O que mais interessava a Freud era que seu modelo se dispunha claramente a levar a sério o comportamento bizarro de seus pacientes, aprestando-se também a alimentar estranhas hipóteses. Ao dar a mais cuidadosa e percuciente atenção a seu material humano, Charcot era um artista e, segundo ele mesmo, um visuel – “um homem que vê”. Confiando no que via, ele defendia a prática acima da teoria; uma observação que fez em dada ocasião imprimiu-se com ferro ardente na mente de Freud: La théorie, c’est bom, mais ça n’empêche pás d’exister. (GAY, 2004, p.62).
Em sua viagem a França, Freud aprendeu algo extremamente valioso, e que poucos de seus pares sabiam: devia-se levar a sério os sintomas das histéricas! Eis a fabulosa lição de Charcot, aprendida por Freud, não tanto pela força dos argumentos de Charcot, mas pela força de sua personalidade, pela influência de sua grandeza como pesquisador, seu carisma, seu rapport para com o jovem Freud. Charcot também lhe mostrou mais algumas coisas bem úteis, reforçou em seu espírito o valor da hipnose, algo que Breuer já lhe mostrara. Seus pares médicos de língua alemã, a exemplo de Maynert, desconfiavam da hipnose e a relegavam ao rol das atrações circenses e à prática dos embusteiros. Outra barreira foi rompida com o encontro com Charcot: também homens podiam apresentar os sintomas de histeria. O primeiro passo para aquilo que Freud formularia anos depois.
Se acreditamos que as neuroses não diferem, em qualquer aspecto essencial, do normal, o seu estudo promete render valiosas contribuições para o conhecimento do normal. (Freud, 1975, v.XXIII, p.212).
O rigor com que Charcot tratava os dados empíricos advindos de seus pacientes levou Freud a logo se afastar ligeiramente das concepções do grande homem, para se manter fiel ao seu exemplo. Para Charcot, apenas os histéricos poderiam sob a influência da hipnose desenvolver os sintomas característicos dessa doença, para ele a sugestão possuía um papel pequeno. Freud logo veio a seguir uma senda um pouco diferente, cum grano salis qualquer um podia, sob o efeito da hipnose, desenvolver as anestesias e paralisias típicas da histeria. Em seu retorno a Viena, e ao convívio com Breuer, ele não tardou em experimentar por si mesmo a “talking cure”, como havia Anna O., batizado o método catártico. Palavras proféticas da jovem histérica. Com o tempo Freud “transformaria” o método de Breuer numa genuína “cura pela fala”. Ainda tendo como principal ferramenta de seu arsenal terapêutico, a hipnose, Freud a utilizou de maneira inusitada. Ao invés de apenas utilizar de sugestão para suprimir os sintomas, ele prospectava as reminiscências de suas pacientes para saciar sua curiosidade de pesquisador. Em meio às águas barrentas e turvas que eram as almas atormentadas de suas pacientes ele achou ouro.



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