quinta-feira, 5 de março de 2015

A Opinião do Outro

Imaginem a seguinte conversa hipotética:
– Você é a favor da marcha da maconha?
– Não, sou contra. Aqueles caras são uns idiotas de fazerem uma marcha tão estúpida.
O seguinte diálogo hipotético:
– Você concorda com a marcha da maconha?
– Lógico! Infelizmente um monte de gente idiota discorda e não percebe que a guerra às drogas causa um genocídio entre os pobres e negros jovens da periferia. O mundo ficaria melhor sem essas pessoas que reclamam da marcha.

Os dois diálogos são bastante verossímeis, a despeito de eu pessoalmente nunca ter presenciado nenhum debate sobre esse tema, seja real ou virtual, o ponto aqui, compreendam, não é a marcha da maconha. O ponto, senhores, é que é possível discordar de coisas perfeitamente válidas e lógicas com argumentos igualmente válidos e lógicos e, pasmem, é possível respeitar o ponto de vista das outras pessoas.

Como Jung disse certa vez, verdades são coisas raras e preciosas e qualquer pedacinho de verdade que as pessoas creem possuir elas o defendem com unhas e dentes. Acontece que há uma incompreensão terrível de que por eu ter bons argumentos, ou mesmo, simplesmente por não simpatizar com uma ideia, ela é necessariamente errada, ou pior, quem a professa é um idiota.

A desconsideração do interlocutor, mesmo que por essa lógica enviesada “eu não concordo com uma ideia, essa ideia é ruim, se alguém concorda é ruim ou burro”, é uma falácia. Chama-se Ad Hominem, mas aqui temos uma versão bem interessante desse fenômeno, pois não se trata de uma jogada pensada para desestabilizar o debate e vencer um oponente por meio de retórica, como explicou Schopenhauer, trata-se de algo bem mais irrefletido.

Há uma incompreensão, que se baseia numa larga dose de inconsciência, de que não é possível ter opiniões divergentes, e que há única explicação é a má fé ou a burrice. Certas ideias são extremamente fascinantes, ideias parecem e podem ter vida própria em nossa alma, mais ainda, nossa visão de mundo em larga medida não é simplesmente a maneira como vemos o mundo, para nós, que vivemos prisioneiros de nossas almas – o grande prisma que traduz para nós o mundo “material” em imagens – ela é o mundo. Logo a maneira como o encaramos é crucial, pois, novamente recorrendo a Jung, em determinadas condições, que se baseiam na inconsciência, o mundo pode se tornar uma imagem subjetiva porém desconhecida. Essa imagem possui uma força coercitiva imensa e uma autonomia maquiavélica e se impõem como verdade, possui algo de universal e me impede de reconhecer a minha própria individualidade e, sem isso, não sou capaz de reconhecer e nem de admitir a individualidade de outrem.

Em termos meramente lógicos, muitas ideias podem ser defendidas ou atacadas indefinidamente. Um dos grandes méritos de Kant foi mostrar que os grandes debates metafísicos eram debalde justamente porque se podia tanto provar quanto mostrar a falsidade deles de maneira lógica (como, por exemplo, a existência de Deus). A lógica nos prendia numa armadilha sem saída, um debate infindável e que não apresentava esperança de progresso.

O que algumas vezes é impossível de se perceber é que pessoas diferentes, por motivos justos e lógicos, podem discordar de você. Existem muitas dificuldades em ser capaz de perceber isso. Se eu não sou capaz de ver a trave no meu olho, para usar a expressão das escrituras, eu vou ver essa trave apenas no cisco do olho do meu irmão, e julgar sempre e sempre, que o problema é dele e não meu. Quando somos inconscientes de nossa individualidade, nos tornamos presas de afetos e paixões inauditas, desejos quiméricos e preconceitos afetivos sem nem mesmo nos darmos conta de que estamos sob o encanto dessas coisas. Em termos práticos é ainda mais difícil, pois a maioria de nós está enfeitiçada e sabemos apontar o dedo direitinho para as outras pessoas que também estão amaldiçoadas por esse encanto terrível. A maioria das pessoas que discorda de nós não possui bons argumentos, mas, ao contrário, é possuída por esses argumentos e os defende com fanatismo religioso, ansiosas para nos convencer para assim aplacar sua secreta dúvida interior, e, como bem sabemos, nenhum diálogo racional pode subsistir quando se eleva a temperatura dos afetos e tudo caí a um nível lamentável. Sendo assim, é fácil encontrar idiotas rematados em ambos os lados da contenda e, mesmo pessoas inteligentes – “o dom da razão e da reflexão crítica não constitui uma propriedade incondicional do homem” – podem agir como idiotas quando esses afetos se inflamam.

Fundamentalmente, quando possuímos o precioso e fugaz dom da reflexão crítica, não é a lógica que é decisiva para a nossa escolha, mas um julgamento de valor que é altamente subjetivo, dificilmente pode ser universalizado, que decido por que vereda do pensamento racional eu vou seguir. James, em sua maravilhosa filosofia pragmática, afirmou logo no início do seu livro Pragmatism algo de um brilhantismo irretocável, que a história da filosofia era, em larga medida, a história do choque de temperamentos. Para qualquer filósofo, o seu temperamento desempenha um papel reduzido em suas articulações teóricas e busca por argumentos objetivos, todavia, o temperamento oferece ao filósofo o seu mais poderoso e mais inconfessável argumento, “aí emerge uma certa insinceridade em nossas discussões filosóficas. A mais potente de todas as nossas premissas nunca é mencionada” (eu traduzo). Fundamentalmente, nos filiamos a uma corrente de pensamento, ou ideologia, de acordo com o nosso temperamento sentimos que um dos lados da questão está correto e o outro errado.

Jung asseverou que, se fizermos como James acusa os filósofos de fazerem, ocultar seus temperamentos, se colocar numa posição impossível de objetividade, nosso temperamento, nossa personalidade vai aparecer de maneira insidiosa. Mas para anunciarmos uma verdade – não a verdade – é preciso que tenhamos sentido em nós o problema que se afigura a coletividade e isso garante a possibilidade de afirmar algo válido. Lacan, tempos depois ao pensar sobre o discurso científico, asseverou algo similar.

Assim, se formos capazes de nos darmos conta de nossa individualidade, o que ocorre, paradoxalmente, ao percebermos o quanto somos coletivos, o quanto carregamos em nós de nossa família, professores, e daquilo que são os grandes símbolos de nossa sociedade, seremos capazes de reconhecer o outro como diferente de nós. Sem isso o que vemos é sempre um espelho distorcido de nós mesmos e da validade universal de nossas premissas inconscientes. Jung, que era leitor de James, foi ainda mais longe ao propor dois tipos fundamentais: a extroversão e a introversão. Um se orienta pelo objeto e o outro pelo sujeito, o que é valor para um é desvalor para o outro. Falta-nos, como sociedade, começarmos a nos dar conta disso.

O fenômeno das pessoas no Sul, acusando os nordestinos de serem burros, ignorantes, ou “comprados” com o bolsa família é um exemplo desse fenômeno que aqui tento descrever (o reverso desse discurso é igualmente um exemplo da mesmíssima inconsciência), a não percepção da existência de diferentes interesses, diferentes visões de mundo, igualmente válidas. Não bastasse isso, estamos ainda mesmerizados pela possibilidade de gritar a plenos pulmões nas redes sociais e sermos ouvidos por dezenas ou centenas de pessoas, privilégio antes reservado a poucos. Antes nossa mesquinharia e estupidez estava reservada apenas aos nossos familiares, vizinhos e nosso círculo mais próximo, agora podemos compartilhá-la, esquecendo que se trata de opinião e, mesmo uma opinião válida e bem fundamentada, não é A Verdade. Mas o reverso disso é que também podemos compartilhar aquilo que somos em nível mais profundo, a nossa experiência única e irrepetível de ser e estar no mundo. Podemos participar da aventura de nosso tempo como nunca antes, porém, se permanecermos a atacar quimeras e a nos batermos sempre e sempre com nossos próprios fantasmas e demônios essa aventura nos escapará, e em seu lugar ficará um amargo ressentimento com o mundo que parece não enxergar a obviedade das nossas verdades.

segunda-feira, 2 de março de 2015

BIG HERO 6

Finalmente assisti ao filme Big Hero 6 (operação Big Hero), e, a despeito de estar chateado com o fato do estúdio Gibli ter perdido o Oscar uma vez mais, pude ver qualidades no filme laureado esse ano.

Como todos sabem – mas não custa relembrar – animação não é um gênero narrativo, você pode fazer um filme de qualquer gênero usando animação. Big Hero é um filme que mistura ação, super heróis e ficção científica. Ele é baseado em um quadrinho da Marvel, mas é uma adaptação tão diferente do original que seria melhor dizer que foi “inspirado” nessa HQ (ainda assim a expressão é uma hipérbole).

A película é muito boa, a animação é impecável, e o roteiro é muito bom. É bem verdade que muitos dos mais importantes clichês dos heróis dos quadrinhos americanos estão lá, de maneira clara, mas estão de uma maneira que não é repetitiva, ao contrário, esses velhos clichês quando utilizados de maneira tão criativa insuflam vida as velhas histórias e, não se enganem, Big Hero 6 é uma velha história.


Hiro é um jovem gênio cientista (como Peter Parker e Tony Stark, Batman etc), mas que está perdido e sem ruma desde a morte de seus pais e vive com a tia e o irmão mais velho (como o velho spidey) e, quando finalmente resolve colocar sua mente brilhante para funcionar em prol da humanidade, uma tragédia, e perda pessoal o lança em uma depressão e, depois, o levam a agir para ajudar as pessoas (como nosso velho amigo Peter). Todos os heróis são “science heros” , assim como Hiro, relutam em se tornar heróis e são nerds.

As cenas de ação são muito boas, muito boas mesmo, os conflitos dos personagens, especialmente os conflitos do protagonista e do vilão são bem explorados. O roteiro é inteligente o bastante para tentar nos ludibriar e levar a um plot twist razoavelmente inesperado. Hiro tem momentos de dúvida, raiva, confusão e é um personagem bastante humano e verossímil, é fácil se identificar com ele e compreender sua motivação e, assim como Peter, ele possui um tio Bem que, mesmo morto, continua agindo como bússola moral nos momentos decisivos.

O robô balão, cujo principal objetivo é o de cuidar e curar, é uma imensa lição ambulante para psicólogos e médicos, pois ele também é um personagem que evolui e muda sutilmente, mesmo se mantendo firmemente preso a esses princípios. No fim das contas ele compreende que a saída para a tristeza e sofrimento de Hiro é encontrar um sentido para essa dor e viver a vida plenamente e encontrar algo pelo qual valha a pena lutar, ou, em outras palavras, engendrar um sentido para a existência – mesmo que isso envolva risco e lutas com supervilões.

Há um aspecto metalinguístico no filme que é interessante, pois um dos personagens é leitor de quadrinhos e consegue enxergar a “trama” que subjaz as suas aventuras e percebe que eles estão bem no meio de uma “origin story” de super herói. No fim das contas é um filme bacana, divertido e inteligente. Vale o ingresso.