segunda-feira, 21 de maio de 2018

Os Amantes, Magritte


Os Amantes, Magritte

O quadro de René Magritte, sugestivamente intitulado “os amantes”, mostra duas pessoas com os rostos cobertos com panos brancos no ato de se beijar. Meu intuito aqui é analisar psicologicamente o quadro, sem enveredar por debates estéticos ou históricos, nem mesmo fazer remissão ao solo de onde à obra brotou o seu contexto, o que, a rigor, seria importante. Como meu estilo é franca e abertamente impressionista, creio que posso me dar ao luxo de deixar essas coisas em suspenso neste ensaio.
O quadro parece representar, em um instante, uma característica comum do enlace amoroso, os dois se beijam, um gesto íntimo que antecede o ato sexual, porém não são capazes de se enxergar, nem mesmo de se tocar, pois suas cabeças se encontram envolta em um tecido branco. O branco em termos simbólicos possui uma conotação de pureza, de algo imaculado, sendo igualmente na China o no Japão a cor do luto e não o preto. A pureza extrema representada pelo branco também possui a tendência de atrair o seu oposto, justamente aquilo que deseja maculá-la, como nas diversas fábulas do encontro do cordeirinho com o lobo, pois a pureza é uma situação irreal e raramente sustentável por um período prolongado. Assim, me parece que há uma ausência de contato que não seja mediado pelo tecido que os encobre, uma ingenuidade acerca do outro, uma cegueira mais ou menos proposital, ainda mais, pois as bocas mal se roçam, o que eu beijo, na verdade é o tecido diante dos meus lábios, aquilo que está diante dos meus olhos de maneira imediata e que entra em contato direto e íntimo com a minha pele não é a pele do outro, mas o pano alvo. Não se trata sequer de uma máscara que busca esconder, ou dissimular, com o rosto totalmente cobertos, ambos estão às escuras, são duas pessoas que se tornaram cegas em virtude do estranho “véu” que lhes impede o contato, e, mesmo que um deles pudesse remover o tecido que lhe cobre toda a cabeça, restaria aquele que recai sobre o outro. Porém, qual dos dois nos é dada a possibilidade de remover, o nosso pano ou o que está sobre o objeto amado?
A cabeça também possui um curioso simbolismo, especialmente na alquimia, pois é redonda, a forma perfeita e assemelhada assim no microcosmos a abóboda celeste. A cabeça é igualmente a sede do pensar, da ponderação e o local onde se localizam os órgãos dos sentidos, sendo importantes aqui os olhos e a boca, creio eu. Os olhos por seu formato redondo são igualmente comparados na simbologia as esferas celestes, na mitologia japonesa dos olhos de Izanami nasceram os espíritos do sol e da lua, tendo eles uma clara vinculação com a luz. Com a cabeça coberta completamente, não podem ver, e sua capacidade de pensar se encontra reduzida, são cegos em relação um ao outro e com relação a si mesmos, aquilo que os conecta ao infinito, ao se pensar nos chacras indianos que se localizam na cabeça, sendo o último fora dela e que conectam o humano a experiência mística mais elevada também se encontram bloqueados, não permitindo a união apenas em seu plano físico, mas igualmente espiritual. Não me enxergo e também não enxergo o outro.
Jung ao tratar do enlace erótico salientou a possibilidade de existir uma relação apenas entre indivíduos. Um indivíduo é alguém que conseguiu em alguma medida não ser tão dividido no que concerne a si mesmo e seus instintos mais básicos e saudáveis, mas igualmente alguém que se diferenciou da multidão, tarefa ingrata e difícil. Como ele mesmo afiançou, cada uma de nossas ideias e opiniões é determinada historicamente em seus mínimos detalhes, somos em larga medida aquilo que nossa família é e nem suspeita ser, aquilo que nossos amigos são e nem sequer sabem que são, aquilo que nossa escola é e que em nós penetra insidiosamente por meio de nossas inferioridades psíquicas. Somos aquilo que medra no coração das pessoas de nossa sociedade, mas que eles silenciosamente desconhecem, mas que ainda assim age com suprema força sobre suas vidas e seus destinos. Somente entre indivíduos, que em primeiro lugar conhecem a trave em seus próprios olhos, é que essa mortalha pode ser levantada, ao menos um pouco. Nossa equação pessoal, nossa constelação subjetiva de complexos é algo inalienável e inescapável, não há objetividade possível, pois tudo o que percebemos é filtrado pelo que somos, quer saibamos ou não. Como Jung salientou em seu Tipos, só podemos ver o cisco no olho de nosso próximo devido a trave no nosso, mas se não conhecemos a trave em nosso olho fatalmente pensaremos que todos os ciscos são traves. Dito de outra forma, só podemos compreender e perceber nos outros aquilo que existe em nosso psiquismo, assim, a possibilidade de algum grau de objetividade só vem por meio do autoconhecimento. O que Jung compreende por autoconhecimento não é o conhecimento do eu e de seus conteúdos, mas do inconsciente, é justamente aí que somos idênticos a todos os demais e que urge reconhecer e se diferenciar, sem conhecer sua própria equação pessoal não é possível distinguir entre si mesmos e todos os demais.
Aqui entram diversas sutilezas a se considerar, se quisermos compreender a mensagem do quadro de Magritte no que concerne aos descaminhos eróticos. Nossa vida em sociedade nos impele a fazermos uma série de compromissos com a sociedade e suas exigências, algo que fazemos ao custo de nós mesmos, sendo uma identidade total com as expectativas sociais impossível, surge uma estrutura coletiva de um compromisso que assumimos com a sociedade que Jung denominou de persona, uma máscara, que existem em nítido contraste com a atitude inconsciente de nossa alma e é compensada por ela. Em muitos casos a máscara e o rosto se confundem, e passamos a crer que possuímos de forma pessoal a dignidade que nos vem de fora pela participação, mais ou menos voluntária na sociedade, isso leva a uma revolta por parte da alma inconsciente que tende a se personificar e a se projetar. Noutros casos, nos identificamos com a natureza luminosa e clara, porém unilateral de nossa atitude consciente, bem como da função psíquica que a caracteriza, desprezando tudo aquilo que não condiz e é excluído pela ação selecionadora da atitude. Tudo aquilo que é real produz uma sombra, somente coisas bidimensionais e irreais não projetam uma sombra, e a qualidade dessa sombra vai depender da qualidade daquilo que a produz.
A maioria de nós vai viver acreditando possuir qualidades ilusórias e que determinadas coisas negativas não acontecem e nem podem acontecer conosco ou nosso meio mais imediato, somos movidos por renhidos preconceitos afetivos e quimeras de toda sorte. Assim, ao não reconhecermos aquilo que julgamos não ser, mas secretamente o somos, encontramos sempre e de novo isso no outro, em nosso semelhante por meio da projeção. Não raro em mitos de contos de fadas a projeção, positiva ou negativa, é compreendida e simbolizada como um tecido ou rede jogado sobre alguém. Como no conto de fadas em que a princesa precisava trançar um tecido de flores para cobrir seus irmãos transformados em cisnes e assim os libertar. Nem toda projeção é ruim, a projeção passiva representa o princípio do Eros, que secretamente une e enlaça, sem ela não haveria interesse por nenhum objeto. Só podemos compreender algo ao projetarmos sobre ele, mesma a empatia e a compreensão seria impossível sem isso. Todavia, tudo o que é genuinamente anímico é ambivalente, e há um lado terrivelmente negativo da projeção. No caso da sombra, como afiança Jung, se não a conhecemos o mundo passa a ser um construto subjetivo, porém desconhecido, não somos capazes de lidar com o mundo e as pessoas, mas apenas a nossa própria inferioridade projetada. Von Franz, ao se referir a função inferior, aquela que vive aparentemente, apenas aparentemente, adormecida nas trevas da inconsciência, nos lembra que muitas vezes a escolha amorosa se pauta por isso, procuramos aquilo que nos falta e nos compensa, mas ao preço de permanecermos inconscientes, ao preço de termos para sempre nossas cabeças cobertas por um espesso véu. Não ter uma boa relação com a função inferior causa igualmente um problema erótico e um social, pois sem isso enxergaremos projetivamente essa inferioridade, onde somos lentos, infantis, negativos e arcaicos nas camadas inferiores da pirâmide social, secretamente odiando neles aquilo que medra em nossos próprios corações. Ali onde há essa inferioridade nos tornamos inseguros e, por isso, melindrosos e tirânicos, propensos a explosões emocionais que caracterizam tantos relacionamentos amorosos.
No que concerne especificamente ao enlace amoroso, os dois grandes demônios em nós que são o fator criador de projeções são a anima e o animus. A anima é uma fantasia de relacionamento erótico, uma espécie de sistemas de expectativas do homem em relação à mulher. O Animus é o logos inconsciente feminino, o espírito masculino que compensa no inconsciente a feminilidade consciente, e produz opiniões irrefletidas assim como a anima produz nos homens humores e melindres. Ambos podem causar, quando extrovertidos, ou seja, projetados, o que Jung chamou de ofuscamento animoso, uma escalada de emoções irracionais e cada vez mais intensas que impedem uma real comunicação e relacionamento. O lugar desses espíritos é o de psicopompo, não entre a consciência e as pessoas amadas, mas regulando a relação daquela com o inconsciente. A anima é a proverbial Maia, que recobre tudo com mil véus de ilusão, mas é igualmente o arquétipo da vida. O animus aprisiona a mulher com certezas e pensamentos vingativos e rancorosos, a confinando num casulo de opiniões e cortando as relações mais vitais que ela possuir, mas em seu aspecto positivo é o espírito da verdade interior. Esses elementos estruturais numinosos da psique, desde tempos imemoriais lançam seus teias sobre o mundo, cobrindo nossos rostos e nos impedindo de ter contato intimo real, nos cegando para o outro e nos impedindo de realmente amar. O véu, que recobre o rosto de nossos amantes foi colocado aí por algo em nós que nos ultrapassa, mas que podemos ao menos nos relacionar e que por eras sem fim foram compreendidos, com justiça, como deuses e demônios.
O véu não passa de um encanto, que nos enleva, mas nos prende em algo autoerótico e narcísico, e nos priva daquilo que nos é tão importante para sermos capazes de perceber nossos próprios sentimentos: o outro. Para Jung o amor é uma atividade, ele só acontece quando somos senhores de nossos sentimentos, ou seja, quando temos consciência deles, ao termos consciência de nossas sombra, de nossa inferioridade, somos devolvidos ao seio da humanidade, não permanecemos inflados com pretensões impossíveis e quiméricas sobre nós mesmos, somos tornados humildes. Somente quando conscientizamos nossos sentimentos podemos avaliar o que nos acontece, podemos saber o quanto os eventos de nossa vida são importantes subjetivamente para nós, e isso além de dar colorido ao mundo, nos torna humanos. Como podemos nos tornar conscientes de nossos sentimentos? Apenas na tentativa de remover de nós mesmos esse tecido que recobre o rosto dos amantes de Magritte, esse esforço, repleto de erros, de tropeços e sofrimento profundo é o que nos torna quem somos, é o que lentamente nos devolve a nossa humanidade. Não se enganem, haverão tropeços, e haverão lamentáveis mal entendidos, e, nesse caso, a única coisa a fazer é assumir a responsabilidade por esses tropeços, o que significa assumir plena responsabilidade pela nossa sombra e as nossas inferioridades, e assim carregar o peso do compromisso moral com nossos sentimentos e com o outro.
O quadro de Magritte traz dois amantes inconscientes, que amam apenas a si mesmos no outro, amam o capuz que colocaram em seu objeto de amor, ali revelado de maneira plástica, como é do feitio dos surrealistas está o inconsciente a nos encarar, ali vemos o abismo no qual estamos em queda livre, mas nem o percebemos. Os amantes serão amantes apenas quando chegar o momento de remover o véu e ver, pela primeira vez o rosto resplandecente do ser amado.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Sobre Eros


Os seres humanos são extremamente diversificados, nossas condições e acidentes de nosso nascimento, bem como nossa genética e constituição psíquica tendem a apresentar uma estonteante diversidade, em tudo e por tudo somos diferentes, apesar de restar nessa diferença uma semelhança fundamental que nos permite enxergar algo de nós mesmos nos outros, e de tentarmos o esforço, muitas vezes vão, de compreender outros seres humanos, apesar de sabermos que, em última instancia, aquele outro ser permanecerá um mistério. Tanto é maior esse mistério quanto menos for nossa compreensão de quem realmente somos, num nível profundo. Quanto mais inconscientes nós formos de nossa própria equação pessoal, menor será nosso poder de enxergar a diferença, e, de maneira imperceptível, tenderemos a supor sempre uma semelhança insidiosa, abolindo à diferença em nome das trevas de inconsciência em que nos achamos mergulhados, e supondo sempre encontrar no outro a nós mesmos.
Assim como somos diferentes, nossas emoções tendem a ser diferentes e individuais, dentre essas poderosas forças que nos movem desde tempos imemoriais, nenhuma parece ser tão terrível, poderosa, misteriosa e diversa quanto o amor. Sócrates acreditava que em toda a Grécia apenas a sábia Diotima realmente compreendia o amor, ela não era um filósofa, mas poetisa. Diotima acreditava que Eros, o amor, era um grande daimon, um espírito poderoso ou deus que serve de mensageiro entre deuses e mortais, e refuta a ideia de Sócrates de que se o amor deseja o bom e o belo ele não deve possuir nenhuma dessas qualidades, mas como poderia um deus não possuir as qualidades da beleza e da bondade?
Para Diotima o amor nasce da união entre a abundância e a pobreza, como filho dessas duas entidades o amor possui suas qualidades. Ele é sempre pobre, severo, e difícil, descalço e sem morada certa. Mas ao mesmo tempo ele é bom e belo e responsável por aquilo que é bom e belo, que encontra no ser amado. Assim, para a poetisa de Lesbos, o amor se movimenta sempre entre os polos opostos representados por seus pais e caminha entre satisfação e desejo, sem jamais se deter em um deles apenas, pois essa é a sua herança. Para Diotima, o amor, Eros, é um filósofo que deseja a sabedoria, algo que soa estranho a filósofos acostumados a lógica fria e implacável do pensar, mas como ensinou Jung, apenas ao sofrermos o fogo dos afetos que nos queima até que resta apenas aquilo que não pode ser queimado, nenhuma mudança genuína pode surgir, apenas o amor nos permite a busca pela sabedoria. O amor, ela acrescenta busca a beleza, e a união da beleza do corpo e da alma.
Sócrates o mais sábio dentre os gregos não compreendia o amor, que esperança podemos ter? Em outro mito, Eros, esse grande demônio, é filho de Afrodite a deusa do amor e da beleza e Áries o deus da guerra. Assim como na fábula de Diotima, ele carrega as qualidades de seus pais a beleza e a discórdia, pois ao tratar-se da ligação entre pessoas diferentes, mesmo o mais belo dos amores não está isento da guerra, e se assim não fosse, não permitiria a busca pela sabedoria, como nos ensinou o velho Heráclito a guerra é o “pai” de tudo. Uma harmonia tépida não nos leva além de nos mesmos, não nos transforma, só a guerra transforma, mas ela sozinha não passa de violência e estupidez, apenas o amor consegue unir esses pares tão díspares e fazer de nós filósofos.
Entre aqueles que seguem a religião de Vishnu, uma religião do amor, há a crença na existência de 5 tipos diferentes de amor. Na verdade 5 diferentes estágios ou graus do amor, e por esses graus pode-se atingir a iluminação. O primeiro é o amor do servo pelo seu senhor, o caminho da obediência, o grau mais baixo, o caminho da religião da lei e seus mandamentos, como ensina Campbell, aqui não se despertou ainda para a presença divina.
O segundo grau é o do relacionamento entre amigos, aqui já existe o que no ocidente chamaríamos de amor, onde se abandona a lei e se pensa mais no amigo, e há a experiência do amor como ato espontâneo e não como obediência a uma ordem. Montaigne ao refletir sobre a perda de seu querido amigo Etiene de la Boétie nos legou uma das mais tocantes reflexões sobre a amizade,
Na verdadeira amizade, em que sou experimentado, dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim. Não só prefiro fazer-lhe bem a que ele mo faça, mas ainda que ele o faça a si próprio a que mo faça; faz-me ele, então, o maior bem possível quando a si o faz. E se a sua ausência lhe for quer prazenteira quer útil, torna-se-me ela bem mais agradável que a sua presença; e de resto não é propriamente ausência se há meios de comunicarmos um com o outro. Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento. Em nos separando, melhor e mais amplamente entrávamos em posse da vida: ele vivia, fruía e via para mim, e eu para ele, mais plenamente que se ele estivesse presente. Uma parte de cada um de nós permanecia desocupada quando estávamos juntos: fundíamo-nos num só. A separação espacial tornava mais rica a união das nossas vontades. A insaciável fome da presença física denuncia uma certa fraqueza na fruição mútua das almas.
Ao explicar as razões de amar seu amigo Etiene, ele nos presenteia com a bela resposta possível: “Porque era ele, porque era eu”.
O terceiro estágio é do pai ou mãe para com seus filhos, mais intimo e poderoso do que o amor entre amigos. Em japonês a palavras gostar (usada normalmente como amar) é formada por dois outros caracteres: o caractere para mulher o de criança.No cristianismo vemos o nascimento do bebê Jesus e suas representações no colo de Maria, a chegada dessa criança divina simboliza o despertar em nós a consciência de que o poder divino reside em nós, aqui há o despertar da verdadeira vida religiosa.
O quarto estágio do amor na religião de Vishnu é o que existe entre os casais, aqui cria-se o andrógino, a identificação com o outro. Depois de descobrir deus em seu coração, e nunca antes, você pode agora descobrir deus no coração de outra pessoa. Aqui há a reunião dos poderes divinos primordiais, anteriores a consciência do eu, quando macho e fêmea não estavam separado, quando logos e Eros viviam em um abraço amoroso, indiferenciados, onde toda a potência de vida pulsava ainda intocada e o mundo estava repleto de vida e vida em abundância. Com essa reunião, podemos experimentar conscientemente, esse estado místico, a união alquímica, que, por isso mesmo é entendida como eterna.
A mais elevada ordem do amor é aquele da paixão compulsiva e incontrolável, nada existe senão o amor, neste estágio tudo se esvai e só nos resta o amor. Como nos ensinou Campbell, estamos aqui diante do amor cortês, do coração gentil, onde o homem fica alucinado, capaz de feitos incríveis, mas percorre uma trilha estreita, pois ao seguir a sua paixão você está sozinho e não conta mais com o apoio da sociedade. Trata-se de algo divino, sem relação com as agruras da vida, mas é preciso sempre retornar a vida e redescobrir o valor que nela existe. Essa experiência maravilhosa em algum momento precisa ser interrompida e deve-se descobrir qual o tipo de relacionamento possível.
O casamento é antes de tudo um ordálio, pois o entrelaçamento de duas psiques deve levar em conta sempre o que surge dessa relação como algo mais importante do que as minhas tendências egoístas. Se você serve ao outro ainda está no primeiro estágio, mas se segue a transformação que esse contato entre duas almas gesta, mesmo que algumas vezes seja doloroso, então tem-se o casamento alquímico, uma experiência religiosa, um sacramento, onde algo de belo e terrível acontece a ambos, juntos. Uma experiência de transformação, que como nos mistérios dos Eleusis, queima-se no fogo tudo o que há de mortal e supérfluo. Algo que vai além do mero casamento biológico, ou seja, uma instituição sancionada pela sociedade para se ter filhos. No casamento que se afigura como um sacramento, não há um programa a ser seguido, ele é sempre algo de original, uma obra de arte que nasce da conjunção de dois corpos e duas almas, como nas lendas do Graal, onde os cavaleiros em busca de aventura adentram na floresta escura lá onde não há trilha. Sempre que você segue uma trilha trata-se do caminho de outra pessoa. Temos aqui a ideia medieval do coração gentil, de que antes da consumação carnal é preciso haver a comunhão espiritual.
Em Jung encontramos uma psicologia do amor ao pensarmos na problemática da Anima do homem e do Animus na mulher. A masculinidade consciente do homem é compensada pelo feminino em seu inconsciente e na mulher acontece o inverso. A masculinidade é regida pelo princípio do logos, que é discriminador e analítico e a tudo separa e divide, e, em termos psicológicos, masculinidade é saber o que se quer e como alcançar isso. O problema amoroso do homem, representado pela anima, uma imagem coletiva do feminino e da mulher que permite a ele se relacionar com as mulheres, é o de saber o que ele realmente sente. Nas mulheres, cuja consciência é regida pelo grande daimon Eros, que a tudo une e conecta, o problema que o seu espírito, o animus lhe propõe é: o que você realmente pensa? Qual é a sua cosmovisão? A anima, quando personificada envia ao homem humores terríveis, e o animus, quando personificado produz opiniões insensatas e bombásticas de tipo salvacionista que isolam a mulher dos objetos realmente amados num “casulo de opiniões”. Quando as projeções criadas por esses dois demônios são recolhidas, e eles não mais se interpõem entre os homens e mulheres e sua relação com o mundo, passam a agir como daimons, mensageiros divinos, pois a real função da anima é ser uma função de relação entre a consciência e o inconsciente e a do animus ser uma função de diferenciação entre a consciência e o inconsciente. Nada disso pode ser alcançado sem o fascínio e os problemas causados pelos dois daimons, que nos lançam a vida, a anima é o arquétipo da vida e faz o homem sentir a plenitude de sua vida como uma aventura, e nos enredam nas relações que nos libertarão desse mesmo fascínio e nos abrirão ao verdadeiro amor.
Para Jung, e isso foi algo que demorei quase duas décadas para entender, O amor é diferente do fascínio, ele é uma atividade, é algo consciente, depende de termos consciência de nossos verdadeiros sentimentos. O fascínio é algo que acontece devido ao inconsciente, e só terar um valor se eu puder extrair conscientemente disso o ouro alquímico, ou seja, descobrir por trás desse fascínio o pedaço da minha alma que se afastou de mim e foi passear pelo mundo, como a sombra de Peter Pan, não é à toa que quem costura ela de volta no lugar é Wendy. Se eu não consigo ampliar a minha consciência o fascínio não passa de um logro moral, já amor é algo que depende da consciência, de termos a posse de nossos sentimentos, e como vocês sabem, nada perturba mais o pensamento do que os sentimentos, e nada perturba mais os sentimentos do que o pensar. Todavia o amor, consciente e não mero fascínio, deve suportar esses opostos sem contradição e agir com o intelecto e a compaixão, para cavalgar as ondas de um relacionamento amoroso genuíno. Sendo uma atividade, algo consciente, o amor pode ser cultivado, crescer e se modificar, florescer.
Todas essas belas descrições de homens tão sábios falham sempre me capturar a essência do amor, nenhuma descrição intelectual e meramente racional poderia, pois o amor é razão e desrazão em igual medida. No fundo, a compaixão é um guia, especialmente quando entendemos que aquilo que é um valor para nós, pode ser um desvalor para o outro, que somos diversos, e que amar, amar genuinamente, pode se manifestar de diversas formas criativas e jamais pode ser confinado as experiências passadas que tivemos, as ideias que formamos sobre ele, aquilo que nos diz a sociedade, a igreja e a família sobre o amor. O amor é um menino de asas, brincalhão, irrequieto e que não tem a menor consideração pelo que os mortais acham justo ou correto, suas setas envenenadas uma vez lançadas são irrevogáveis.