sábado, 30 de outubro de 2010

Sasuke






Passei alguns dias matutando sobre como escrever  a respeito de Uchiha Sasuke, um dos protagonistas de Naruto, e um personagem que é mais popular entre os fãs do que o próprio Naruto. Eles são opostos em quase tudo, Sasuke é um gênio, vindo de um clã de ninjas temido e poderoso pelos poderes de seus olhos, o sharingan, enquanto Naruto é um parvo. Sasuke é um sujeito indiferente, apesar disso, ou talvez por causa disso, todas as garotas o idolatram, enquanto Naruto não é nada popular e luta para chamar a atenção. Ambos são órfãos, mas Naruto jamais conheceu seus pais, enquanto Sasuke viu todo o seu clã ser massacrado pelo seu irmão mais velho Uchiha Itachi, que era a “elite da elite”. Naruto luta para se tornar a personificação do espírito de fogo de Konoha, o Hokage, e possui algo que faz com que as pessoas se sintam bem próximo a ele, já Sasuke é movido por um único objetivo, a vingança. Sua vida é orientada por esse objetivo, tornar-se mais forte para matar seu irmão Itachi e vingar seu clã. Sasuke é um vingador, e apenas sua vingança importa, mais nada.




Sasuke termina por ser seduzido por Orochimaru, outro personagem sumamente interessante, um ninja que almeja o poder supremo, o conhecimento de todas as técnicas e poderes ninjas, e para tanto deseja a imortalidade. Orochimaru possui como principal arma o uso de serpentes e poderes similares aos das cobras e para se manter sempre jovem, a cada três anos troca de corpo, como uma cobra troca de pele. Ele almeja obter o sharingan, e por isso seduz o jovem Sasuke com promessas de poder. Poder, eis outros dos aspectos fundamentais desse personagem, Sasuke é um “demônio do poder”, não há espaço nele para o amor, pois onde impera o poder o amor fenece.




Sasuke derrota Orochimaru e rouba para si os poderes relativos às serpentes que haviam sido dele outrora, e soma esses poderes a sua técnica ocular o sharingan. A serpente, em muitos mitos, é o símbolo do espírito aprisionado a terra, as exigências cinéticas, meramente físicas e instintivas. Num mito indígena narrado por Campbell, dois caçadores estavam no deserto quando viram se aproximar uma mulher de estranha beleza, um deles a desejou carnalemente, ao se aproximarem uma névoa os engolfou e quando ela se dissipou aquele que a olhara de modo impróprio havia sido reduzido a um esqueleto devorado por serpentes, destino similar ao de Acteon que contemplou a nudez da casta Artemis e foi transformado em um cervo e devorado por seus próprios cães de caça. A serpente, com sua capacidade de mudar de pele, também é freqüentemente mostrada nos mitos como símbolo de imortalidade, na epopéia de Gilgamesh, ela rouba dele o elixir da vida eterna, e no mito Indiano, o rei das serpentes Vasuki concorda em se enrodilhar no monte Meru, a montanha cósmica e ser a corda puxada por deuses e titãs para bater o oceano primordial e obter a manteiga da imortalidade. Em muitas mitologias, a base do mundo é sustentada pela cabeça de uma serpente, segundo Campbell “serpente do mundo inferior, cuja cabeça sustenta a terra e que representa os poderes demiúrgicos e geradores de vida do abismo”, ainda segundo Campbell:

As torrentes se precipitam a partir de uma fonte invisível. Seu ponto de entrada é o centro do círculo simbólico do universo, o Ponto Imóvel da lenda do Buda, em torno do qual, pode-se dizer, o mundo gira. Sob esse ponto, encontra-se a cabeça — suporte da terra — da serpente cósmica, o dragão, que simboliza as águas do abismo — a energia e a substância divinas, criadoras de vida, do demiurgo, o aspecto gerador do mundo do ser imortal47. A árvore da vida, isto é, o próprio universo, cresce nesse ponto. Está enraizada na escuridão e sustentada por ela; o pássaro dourado do sol está empoleirado em sua copa; uma fonte, poço inexaurível, borbulha a seus pés.

A serpente representa a profunda camada inconsciente onde estão guardados todos os fatores da existência que foram rejeitados, subdesenvolvidos, ou simplesmente desconhecidos. O poder dos Uchiha, que se manifesta em seus olhos, pode sofrer uma transformação e radical aumento de poder, através de um ritual horrendo de morte. Com o sacrifício do melhor amigo, que deve ser assassinado se consegue o segundo nível de poder, o Mangekeyo Sharingan, mas esse nível ainda não é perfeito, pois ele lentamente perde a luz, o terceiro estágio requer que o próprio irmão seja morto e seus olhos implantados, tornado perfeito o poder ocular dos Uchiha. Temos nesse horrendo ciclo de assassínios do clã Uchiha um eco das mitologias das plantas e dos povos agricultores, onde surge a idéia de que vida e morte estão intimamente relacionadas e que quanto mais morte mais vida. Os caçadores de cabeça matam e decepam a cabeça de uma vítima para celebrar o ritual do casamento, a geração de uma nova vida é propiciada apenas através do sacrifício de outra. Muitos outros são os exemplos dos tétricos rituais de morte relacionados a essa concepção mítica.




Os poderes oculares dos Uchiha são nomeados a partir de divindades Xintoístas, cada olho emana um dos poderes. A idéia não é original, ela está presente nas narrativas fabulosas dos Kamis japoneses. Amaterasu, a encarnação feminina do sol nasceu do olho esquerdo de Izanagi, e Tsukuyomi, e kami da lua, nasceu de seu olho direito. Susano-o, o nome de uma das outras técnicas oculares, é o kami das tempestades. Todas as técnicas Uchiha estão intimamente relacionadas a religião folclórica japonesa. Uma das mais importantes narrativas míticas da religião folclórica japonesa diz respeito a Amaterasu e seu irmão Susano-o.







Amaterasu (天照 com o significado de “ilumina o paraíso”), ou Amaterasu-ōmikami (天照大神 ou 天照大御神 com significado de “grande deusa/espírito/kami que ilumina o paraíso”) ou ainda Ōhiru-menomuchi-no-kami (大日孁貴神). O termo deusa/deus, na religião xintoísta possui conotações razoavelmente distintas das que utilizamos usualmente nas tradições oriundas de um pano de fundo judaico/cristão o que faz com que seu uso seja problemático em referencia as personagens míticas do Xintô, sendo o termo original para esses personagens kami (, que dependendo do kanji  também pode significar cabelo ou papel e que em algumas histórias populares leva a certos jogos de palavras). A maioria das histórias referentes à Amaterasu são provenientes de duas fontes principais: o Kokiji e o Nihongi . 

Amaterasu nasceu do olho esquerdo de Izanagi (イザナギ em kanas, ou como se encontra no Kokiji 伊弉諾, e no Nihongi como 伊邪那岐 ou ainda 伊弉諾尊, normalmente traduz-se como “fêmea que convida”). A parte da lenda que vai interessar ao escopo desse trabalho diz respeito à rusga entre Amaterasu e seu turbulento e desrespeitoso irmão Susa-no-O-no-Mikoto (須佐之男命, normalmente traduzido como “macho impetuoso”). Amaterasu vivia em Takama-ga-hara (高天原, literalmente “alta planície do paraíso”) onde possuía vastos arrozais, seu irmão, Susa-no-O-no-Mikoto, (que é descrito em detalhes no Nihongi como uma divindade turbulenta, de péssima índole que freqüentemente resultava em atos de crueldade extrema e que, apesar de suas longas barbas, tinha o hábito de chorar e gritar como uma criança pequena, capaz de atos extremos de destruição apenas por manha) estava em visita às terras de sua augusta irmã no paraíso. Na realidade essa visita não passava de um ardil do grande kami, pois devido ao seu terrível humor e péssimo comportamento, seus pais o haviam banido para as terras inferiores de Yomi (黄泉, ou Yomi-no-Kuni 黄泉の国, literalmente “país das fontes amarelas” em uma referência a um texto chinês mais antigo), todavia, antes de partir como um filho obediente e temente a seus pais, ele suplicou que eles deixassem que ao menos se despedisse de sua amada irmã, somente depois disso, partiria ele para todo o sempre (a viagem a Yomi era sem retorno). Nas terras celestiais o turbulento e caótico kami das tempestades não tardou a causar sérios transtornos, como veremos. Amaterasu foi avisada da chegada de seu irmão pelos gritos transtornados dos mares, montanhas e colinas que presenciaram a ascensão de Susa-no-O-no-Mikoto, desconfiada das intenções dele, a divindade solar preparou-se para a guerra adornando-se com os símbolos de sua majestade e armando-se de espada e arco e escondendo-se em um buraco. Susa-no-O-no-Mikoto, entretanto, agiu de maneira recatada, humilde e penitente. Obviamente Amaterasu ficou desconfiada e testou sua sinceridade, e por fim, acabou convencida da boa-fé de seu irmão. 

Como era de se esperar, a boa conduta do grande kami teve vida curta, e em um ato de vandalismo ele destruiu os campos de arroz que eram orgulho de Amaterasu. Não satisfeito, um dia ao ver sua irmã, em seu salão sagrado, tecendo os ornamentos para os grandes kamis junto de suas duas servas, fez um buraco no teto por onde jogou o cadáver de um cavalo que ele havia previamente removido a pele. Devido ao susto, Amaterasu se feriu e uma de suas servas morreu, ferida com a agulha de fiar (que teria perfurado sua genitália em algumas versões). Irritada o kami solar decidiu abandonar o mundo e se escondeu em uma caverna que selou com uma enorme pedra, deixando tudo e todos, kamis e humanos, privados de sua luz e imersos em espessas trevas. Devido a essa catástrofe nefasta as oito mil miríades de kamis se reuniram as margens do rio do paraíso para elaborar um plano que os permitisse persuadir Amaterasu a retornar ao mundo e livra-lo das trevas eternas.  Os kamis elaboraram um plano após consultarem vários oráculos, e com estrelas forjaram um espelho e vários instrumentos musicais e jóias. Na verdadeira árvore Sakaki eles penduraram as jóias e dispuseram miríades de aves celestiais, depois para executar o plano apelaram para Ame-no-Uzume-no-mikoto (天宇受売命 “alarmante fêmea celestial”) a divindade do poente, da alegria e contentamento, ela devia despertar a curiosidade de Amaterasu, para tanto ela começou a dançar de forma muito imodesta, exibindo seus seios e genitália. Os demais kamis aplaudiram, gritaram e riram vivamente da exibição da divindade. Ao ouvir todo esse estardalhaço Amaterasu espiou por uma fresta para ver o que acontecia, movida pela curiosidade ela perguntou ao kami mais próximo o que era a fonte de tal estardalhaço, como parte do plano, ele disse que se tratava de uma bela divindade e apontou para um espelho onde Amaterasu se viu refletida, encantada com sua própria aparência ela teria dito “omoshiroi” que significa: “faces brancas” e “fascinante”, dessa forma ela saiu da caverna e foi convencida pelos demais kamis a voltar a fornecer luz e calor a todos.

domingo, 24 de outubro de 2010

Naruto





Já há algum tempo vinha pensando em escrever algo sobre o anime e mangá Naruto, na realidade já escrevi um livro todo sobre as relações do mangá com a mitologia japonesa, chinesa e indiana, mas esse livro foi lido por apenas uma pessoa, meu dileto amigo Filipe Jesuíno, que corriqueiramente lê as coisas que escrevo. Todavia, o intuito do blog foi justamente escrever para um público maior do que o Filipe – não que eu esteja reclamando do meu amigo que por tantos anos tem lido o que eu escrevo – mas em algum momento seria bacana se mais alguém lesse as coisas que eu escrevo. O tal livro é divido com um capitulo por personagem, mas depois que terminei, comecei a reler todos os livros de Joseph Campbell, e percebi que além das referências diretas (como os nomes de técnicas batizadas a partir de Kamis Xintoístas, referências ao teatro Kabuki e contos folclóricos) a própria narrativa do mangá se aproxima muito da maneira como as lendas, contos de fadas e contos folclóricos de muitas partes do mundo descrevem a jornada do herói. Por isso resolvi realizar uma análise desse aspecto em particular.

É preciso que se diga que Naruto é um mangá genial, seu autor Masashi Kishimoto além de excelente roteirista, é um gênio da arte seqüencial, com uma grande capacidade de criar quadros que quase se mexem, com perspectivas as mais inusitadas e um poder de criar suspense com seus roteiros de fazer inveja a qualquer autor de novelas televisivas. Não bastasse tudo isso, seus personagens possuem motivações e biografias tão detalhadas e interessantes que fascinam e cativam os leitores. Para aqueles que não conhecem o mangá, a história é o seguinte: treze anos antes de começar a história, o quarto Hokage (literalmente “sombra do fogo”, o líder da vila de ninjas chamada Konoha gakure no Sato “vila oculta da folha”) derrotou um monstro titânico e malévolo, uma raposa demônio de nove caudas que atacava a vila. Para derrotá-la ele se sacrificou e a selou no estômago de um recém nascido, nosso herói Naruto. Naruto era órfão, e sempre foi ostracizado e francamente hostilizado por todos na vila, que viam nele a reencarnação do monstro. Para piorar tudo, ele também era um fracassado sem talento que só causava tumulto por onde passava. Após a morte do quarto Hokage, o velho Hokage retornou ao seu cargo, e tratou de criar regras severas para proteger Naruto do ódio dos ninjas da vila e para que ele não descobrisse que era o hospedeiro do espírito raposa.

Logo no primeiro episódio ele descobre que a raposa está selada no seu estômago, e muito depois – na verdade quase depois de dez anos de mangá – é confirmado que ele é, na realidade, o filho do quarto Hokage Namikaze Minato, o ninja mais poderoso de todos os tempos. Naruto, apesar de ser um fracassado sem talento, possuiu desde o começo uma forte crença em si mesmo, e uma fibra inacreditável, nunca desistindo e almejando se tornar Hokage. Mesmo sonhando em ser Hokage, Naruto age com grande independência, não se deixando guiar pelas normas rígidas, vazias e antiquadas do mundo ninja (um dos motivos para ele ser visto como um parvo), ao contrário, ele nunca vacila diante da “tirania das vozes razoáveis” ou como chama Campbell “o dragão que possui escrito em cada uma de suas escamas: tu deves”, diante desse tipo de coisas ele sempre exclama “esse é o meu jeito ninja!”.

Pois bem, logo de cara surgem em Naruto três temas típicos dos contos de fadas e lendas: o exílio do herói na infância, o velho rei, e o herói como tolo. Além desses três, surge de maneira sutil, mas perceptível, o tema da busca pelo pai, que ocorre sempre cercada por inúmeros e difíceis testes, até que o pai – um deus, ou o sol, ou algum grande herói – reconhece finalmente seu filho. O exílio de Naruto é simbólico, apesar de viver na vila, ele não sabe que é filho do grande herói Namikaze Minato, na realidade, ninguém na vila sequer suspeita disso, apenas o Hokage e um punhado de ninjas de elite sabem do fato. E, mesmo vivendo na vila, no local onde nasceu, e não em alguma paragem distante, ele não é aceito, todos o rejeitam e odeiam. Talvez o exemplo mais conhecido desse tema mítico seja o do rei Arthur, que até o momento em que retirou a espada da pedra, viveu sem sequer suspeitar de sua linhagem nobre e seu grande destino, como filho adotivo de um nobre, tratado com desdém e desprezo por seu irmão adotivo e vivendo uma vida miserável. Posso citar ainda outros dois exemplos mais contemporâneos, Harry Potter viveu até os onze anos com seus detestáveis tios trouxas, uma vida miserável, sem suspeitar que fosse na verdade um bruxo, e mais do que isso, o bruxo mais famoso de todos e que seus pais haviam lhe deixado uma grande fortuna em ouro. Assim como Luke Skywalker, que vivia com seus tios, uma vidinha pacata e enfadonha, sem jamais suspeitar que seu pai fora um general das guerras clônicas, o maior piloto de caças da galáxia, e o mais poderoso Jedi de todos os tempos, além do grande traidor da ordem Jedi. Nos nossos três exemplos, os heróis foram deixados as escuras sobre suas origens para sua própria proteção.

Campbell cita ainda diversos outros exemplos do exílio do herói na infância, O rei Sargão de Acad nasceu de uma mulher inferior e seu pai era desconhecido, ao nascer foi colocado numa cesta de junco no rio Eufrates e encontrado e criado por um agricultor. Chandragupta, fundador da dinastia hindu Maurya, foi abandonado num pote de barro na frente de um estábulo. Carlos Magno, foi perseguido por seus irmãos mais velhos e durante a sua infância teve que se refugiar em Sarracena na Espanha. Devido à implacável perseguição do rei Nimrod as crianças nascidas do sexo masculino – devido à profecia do nascimento do patriarca Abraão que ele lera nos astros – a mãe de Abraão deu a luz numa caverna e ali o deixou a própria sorte, e o criador enviou o anjo Gabriel para cuidar da criança. Os índios pés negros de Montana contam a história de Kut-o-yis, encontrado numa panela por um casal de idosos. Podemos somar a esses exemplos fornecidos por Campbell em seu herói de mil faces  vários outros, como Perseu e sua mãe sendo atirados ao mar em um esquife de madeira por seu avô Acrísio, e resgatado pelo humilde pescador Dictis da ilha de Sefiro. Ou o último filho de Kripton, Kal El, o Super Homem dos quadrinhos, lançado ao espaço momentos antes da destruição de seu planeta natal e criado pelo casal Martha e Jonathan Kent em Pequenópolis. Ou Moisés, lançado as águas no Nilo e criado pela família do faraó, sem saber da sua verdadeira origem ou do destino que lhe aguardava. Ou o jovem Krishna, que na infância também viveu em exílio, assim, os exemplos podem se estender ad infinutum. Bom, já está meio tarde, amanhã explico mais sobre o sentido do exílio do herói na infância...




Bom, continuando – não sei se é uma boa idéia ficar completando assim os posts, mas que seja – juntamente ao recorrente tema do exílio do herói na infância surge outro tema a ele relacionado, o do herói como tolo, segundo anota Campbell “Os contos folclóricos costumam apoiar ou suplantar esse tema do exílio com o tema do desprezado ou deficiente: o filho ou filha mais novos discriminados, o (a) órfão(ã), o enteado, o patinho feio ou a criança de grau inferior.”. Os contos dos irmãos Grimm estão repletos dessa figura de patinho feio, do tolo e desprezado que acaba realizando a grande proeza que traz a mudança vivificadora. Como veremos adiante, esse tema, em termos psicológicos, também está intimamente associado ao sempre recorrente tema do velho rei. Em Naruto surgem vários órfãos, o próprio Naruto, assim como Harry Potter, é órfão e seus dois pais se sacrificaram tanto para salvá-lo das garras das forças de dissolução quanto para trazer um bem maior a comunidade. Na história do mangá, a mãe de Naruto Uzumaki Kushina, era a antiga hospedeira da raposa demônio, que foi libertada pelo grande vilão Uchiha Madara, Minato e Kushina se sacrificaram para selar a raposa em seu filho recém nascido, tendo em mente igualmente o bem da vila, pois o poder da raposa poderia ser usado por Naruto para comabter Madara no futuro. De modo similar, os pais de Harry, Lily e James Potter, se sacrificaram para protegê-lo e conseguiram derrotar – ao menos temporariamente – Voldemort, que assim como Madara, é um tipo de imortal. O mais ineteressante é notar que, a menos que eu muito me engane, não existe influência recíproca entre essas duas histórias tão similares.

Ainda em se tratando de Naruto, seu melhor amigo e eterno rival, o jovem vingador, Uchiha Sasuke, também é órfão, na verdade um dos últimos sobreviventes do temido clã Uchiha. Todavia, a tristeza e a solidão por que passam na infância são encaradas por ambos de maneiras totalmente distintas. Naruto encarna a perfeição o ideal Mahayana de “escolher viver alegremente em meio as tristezas do mundo”, já Sasuke, que é um gênio vindo do clã mais temido e poderoso do mundo ninja, é lentamente envenenado pelo seu desejo de vingança contra seu irmão Uchiha Itachi, que assassinou todo o seu clã de maneira (aparentemente) impiedosa.




Campbell explica esse tema, o do “patinho feio” apelando para a metafísica do mito, em referência as fases do ciclo cosmogônico, pois ao herói cabe a tarefa de terminar o trabalho dos deuses e construir o que falta ser construído no mundo, ou como herói cultural trazer, ou roubar dos deuses o elemento vivificador de que sua sociedade carece, ou, no período em que o princípio vital se acha já envelhecido, ou corrompido, ser a personificação das forças de renovação que permitirão que a força da vida volte a circular pela sociedade, ser um “transformador humano”.  “Em suma: a criança do destino tem de enfrentar um longo período de obscuridade. Trata-se de uma época de perigo, de impedimento ou desgraça extremos. Ela é jogada para dentro, em suas próprias profundezas, ou para fora, no desconhecido; de ambas as formas, ela toca as trevas inexploradas. E essa é uma zona de presenças insuspeitadas, benignas e malignas: aparecem um anjo, um animal solícito, um pescador, um caçador, uma anciã ou um camponês. Criado na escola animal ou, como Siegfried, debaixo da terra, entre os gnomos que nutrem as raízes da árvore da vida, bem com sozinho em algum pequeno cômodo (essa história já foi contada de mil formas), o jovem aprendiz do mundo aprende a lição das forças-semente, que residem precisamente além da esfera do mensurável e do nomeado.”.

No caso de Naruto, ele se vê privado do contato social, só conseguindo atenção ao fazer travessuras, em seu isolamento ele passa por um período de profunda introversão, jogado “em suas próprias profundezas”, e se tiver a força extraordinária para suportar esse período de provação extrema, cumprirá o seu destino. Em Naruto temos o exemplo positivo e negativo, Sasuke, ao contrário de Naruto, sucumbe ao demônio do poder. Quando ele finalmente consegue estabelecer relações humanas que o retiram de seu isolamento e solidão e se vê colocado no dilema de ter uma vida humana plena ou seguir com sua vingança, à custa de sua vida, de seus amigos e de toda a vila, ele escolhe a vingança. Os dois heróis de Naruto, o protagonista do título e Sasuke, encontram-se em posições extremadas e opostas.

Em termos psicológicos, os temas do velho rei e do herói como tolo estão intimamente relacionados, o rei representa a atitude psicológica que orienta a vida do indivíduo ou da sociedade, além do princípio vital. Nossa vida passa sempre e sempre por mudanças, passamos da puerilidade a maturidade, da maturidade a velhice. Ou menos por mudanças outras, como uma aposentadoria, ou a perda de um cônjuge, ou a repentina perda da riqueza ou o seu oposto igualmente difícil e traumático, a riqueza repentina, para citar apenas alguns exemplos. Cada um de nós, ao longo de sua vida, desenvolve uma estratégia de adaptação ao mundo, nos especializamos numa maneira peculiar de agir. Nossa consciência, segundo Jung, se caracteriza pelo circuito energético de seleção, direção e exclusão, em outras palavras, ela é focal. Devido a isso, há todo um aspecto de nossa vida que jaz em nosso inconsciente, possibilidades de vida que deixamos de lado, consciente ou inconscientemente, mas essa nossa atitude envelhece. A consciência tende quase inevitavelmente para a unilateralidade, quanto mais se especializa e se torna efetiva em lidar com as circunstâncias de nossa vida, mais se aproxima de seu ocaso, pois essas circunstâncias estão em perpétua mudança. Como o crocodilo que persegue o capitão gancho, em seu estômago o relógio faz tic tac incessantemente,  o tempo que a tudo engole nunca para.

Devido a isso ocorre um colapso adaptativo, de repente nos vemos em meio a um deserto portando a melhor das varas de pescar, ou tentando saltar de para quedas com uma roupa de mergulho. O tolo, representa, em termo psicológicos, justamente essas possibilidades inauditas de vida e adaptação. As forças inconscientes normalmente se apresentam de maneira negativa, dependendo da forma como as encaramos ou sentimos, podem ser deuses benfazejos ou demônios terríveis. Mas justamente aquilo que parece vil e tosco, a lapisexilis, é o que contém a chave para a renovação de vida. Naruto é visto como um monstro, algo a ser odiado e temido, mas acaba por ser o herói salvador da vila, finalmente reconhecido por todos. O futuro Hokage, o velho Hokage não havia se tornado mau, apenas envelhecido, assim como o mundo ninja que ele havia ajudado a criar. Tratei do tema do velho rei em um texto sobre o mito de Perseu (no prelo), mas reproduzo aqui a discussão, apesar de hoje em dia não apreciar tanto o estilo de escrita que tina a época.




Antes de prosseguir, será interessante nos determos no simbolismo do rei. Segundo Von Franz,

Nas sociedades primitivas, geralmente o rei ou o chefe da tribo tem qualidades mágicas – ele tem mana. Certos chefes, por exemplo, são tão sagrados que não podem mesmo tocar a terra e por isso são carregados pelo seu povo. Em outras tribos, as vasilhas onde o rei come e bebe são jogadas fora e ninguém pode tocá-las – elas são tabu. Alguns chefes e reis também nunca são vistos por causa de um tabu – quem olhar a face do rei morrerá. (Franz, 1990, p.61)

É interessante salientar que este contexto do rei como um representante ou portador de mana não é estranho ao pensamento grego arcaico.

Reis são Nobres locais que guardavam fórmulas não-escritas (dikai) consagradas pela tradição como normativas da vida pública e social. Estes senhores, por seu poderio e riqueza, detinham a autoridade de dirimir litígios e querelas, mediante a aplicação das fórmulas corretas, i.e., itheíeisi díkeisin (v.86), cujo conhecimento e conservação era privilégio deles. A palavra Díke, que em grego veio a significar “Justiça”, é cognata do verbo latino dico, dicere (= dizer), e designava primitivamente estas fórmulas préjurídicas. Os reis, portanto, dependiam do patrocínio da Memória, para preservarem as Díkai, do de Zeus, para poder aplicá-las em cada caso, e do das Musas, para que esta aplicação fosse eficiente e bem sucedida, se não também para os fins anteriores. (Torrano, 2006, p.35)

(...) Na própria mitologia grega temos sobejos exemplos de outros reis que desempenham seus papéis devido ao seu patrocínio ou filiação por parte de alguma divindade. Minos, rei da ilha de Creta, era filho de Europa, que havia sido transportada até a famosa ilha por um touro (Zeus metamorfoseado) e de sua união com o deus, Minos veio ao mundo. O mesmo Minos, quando depois de prolongada luta com seus irmãos em uma disputa pelo trono de Creta, que ele clamava ser seu por direito divino, pediu a Possêidon que lhe enviasse um touro saído do mar como um sinal de seu direito de governar, com a promessa de que sacrificaria o animal imediatamente como uma oferenda e sinal de submissão ao deus. O touro apareceu e Minos tomou posse do trono. Midas obtém de Dionísio a benção/maldição de transformar tudo o que toca em ouro. O próprio Héracles (bisneto de Perseu) estava destinado por Zeus, seu pai, a ser o soberano de Argos, e o teria sido não fora por um estratagema da ciumenta Hera (em seu lugar subiu ao trono seu primo Euristeu). Hipólita, rainha das amazonas, possuía um cinturão que lhe fora presenteado por Ares e que simbolizava seu poder temporal sobre seu povo. Diomedes, rei da Trácia e proprietário das éguas carnívoras Podargo, Lâmpon, Xanto e Dino era filho de Ares e Pirene. O grande herói Teseu, que após a morte de Egeu assumiu o poder na Ática, era filho da princesa mortal Etra e do Deus Possêidon (irmão de Zeus e quase uma versão telúrica deste). Saindo um pouco do contexto estritamente grego, vemos na Eneida a origem divina dos irmãos Rômulo e Remo, fundadores da cidade de Roma, filhos de Marte. Na venerável tradição do Xintoísmo Japonês a família imperial nipônica é tida como descendente de Amaterasu, a “deusa” do sol. Os paralelos poderiam se estender ad infinitu.

Deve-se salientar ainda, e isto é da maior importância, que em diversas sociedades primitivas, a prosperidade de toda a nação depende da sanidade física e psíquica do rei. Tudo, desde a fertilidade das mulheres e do gado, a fecundidade da terra, a prosperidade e felicidade da tribo estão em relação direta com esse fator. Por isso, se em uma dessas sociedades o soberano se torna doente ou impotente é imperativo que ele seja morto ou, ao menos, substituído por um novo rei cuja saúde e potência preservarão a fecundidade e alegria do reino. Na Teogonia, vemos que a sucessão da soberania divina se dá através da castração. Urano é castrado com uma foice por seu filho caçula Cronos com a ajuda de sua mãe Geia, casando-se em seguida com a irmã Réia. Novamente, Zeus para assumir o lugar de soberano e substituir o pai, Cronos, o castra, dessa forma, ele o torna impotente, o que fatalmente o leva a ser afastado do poder, pois, sua função é a de fecundar e da fecundação da rainha depende a fertilidade de tudo o mais (mulheres, plantações e rebanhos). Sendo alijado pelo filho de sua potência, ele se torna impossibilitado de reinar e é também alijado do trono. Na antiga china imperial, a complexa burocracia estatal era controlada por eunucos, pelo fato de que um eunuco não poderia tramar para usurpar o trono, um homem privado de sua capacidade de fecundar não poderia também reinar. Sobre o significado psicológico do rei,

Pode-se dizer, em resumo, que o rei ou chefe incorpora um princípio divino, do qual depende o bem estar físico e psíquico de toda a nação. O rei representa o princípio divino na sua forma mais visível, é sua encarnação e sua moradia. No seu corpo vive o espírito do totem da tribo. Consequentemente, ele tem muitas características que nos levariam a considerá-lo o símbolo do Self, porque o Self, de acordo com a nossa definição, é o centro do sistema auto-regulador da psique, do qual depende o bem-estar do indivíduo. (Franz, 1990, p.62)

 Bom, finalizo a discussão mais tarde...




Continuando, o Si-mesmo não envelhece, ele é o vazio além de todo nome e de toda a forma de onde provêem as formas do mundo, para usar a linguagem do mito, e não a da psicologia moderna, ele é o atman, o Eu em maiúsculo da filosofia hindu. Na linguagem nativa do mito, que é a metáfora, o Si-mesmo pode surgir sob uma miríade infindável de símbolos, sendo que, em termos psicológicos, todas as imagens do mito são, em alguma medida, símbolos do Si-mesmo. Campbell aponta isso ao se referir ao ciclo cosmogónico. Quando a referência é o centro, o próprio deus, ou caos, ao ovo cósmico, ao se partir ou autogerar o mundo, se coloca harmoniosamente em seus devidos lugares, gerando o mundo fenomênico. Mas quando a referência é da periferia, surgem imagens de violência, onde esse princípio gerador de vida é visto como terrível, capaz de tragar novamente o mundo para o caos primevo, como o dragão primordial das águas Tiamat, que teve de ser morto e esquartejado por Marduk com o auxílio dos ventos para que o mundo fosse ordenado a partir de seu corpo, mas se voltarmos a referência ao centro, Marduk e os demais deuses são meras emanações transitórias desse mesmo princípio, e nesse sentido ele é vítima voluntária, assim como Wotan, que se sacrifica na árvore da vida a si mesmo, ou Cristo na cruz.

O Si-mesmo não envelhece, todavia, suas emanações transitórias, suas atualizações diacrônicas, estas sim envelhecem e é preciso que sejam renovadas, e apenas o nascimento pode vencer a morte. A antiga personalidade, ou a antiga orientação de uma sociedade, devem perecer para que aja o renascimento. O doloroso processo em que esse aspecto transitório morre, ou é deposto, para ser substituído por aquele que se aventurou no mundo dos deuses, no outro mundo, ou nas suas próprias profundezas, passando por terríveis provações, para trazer de volta o elixir da vida, ou o graal. Pois devemos lembrar da importante chave de compreensão dos mitos aludida por Campbell “Os dois mundos, divino e humano, só podem ser descritos como distintos entre si — diferentes como a vida e a morte, o dia e a noite. As aventuras do herói se passam fora da terra nossa conhecida, na região das trevas; ali ele completa sua jornada, ou apenas se perde para nós, aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como uma volta do além. Não obstante — e temos diante de nós uma grande chave da compreensão do mito e do símbolo —, os dois reinos são, na realidade, um só e único reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que conhecemos.".

Assim, Naruto, como os inúmeros heróis dos contos dos Grim,representa essa possibilidade de renovação, segundo Jung o herói é: "(...) The most ideal image whose qualities change from age to age, but it has always embodied the things people value the most. The hero embodies the transition we are seeking to trace, for it is as though in sexual stage man feels too much under the power of nature, a power which he is in no way able to manage. The hero is the very perfect man, he stands out as a human protest against nature. The unconscious makes the hero symbol, and therefore the hero means a change of attitude.".

Ainda haveria mais a falar sobre a narrativa de Naruto, e seus vários e maravilhosos personagens, mas encerro esse post por aqui.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A quarta função da mitologia

bem, como o post anterior acabou sendo muito longo, resolvi escrever especificamente sobre a função psicológica da mitologia segundo nos ensina Joseph Campbell. recapitulando, os símbolos míticos proporcionam um sentido de efetiva participação na transcendência, esses símbolos possuem a função de auxiliar o indivíduo a atravessar vários estágios e crises da vida de maneira significativa, isto é, a compreender a vida de maneira íntegra. a metáfora religiosa nos coloca em harmonia com nossa cultura, consigo mesmo, com o universo e com o mysterium tremedum da existência. muitos de nós, alienados das fontes profundas da vida, nos julgamos profundamente individuais e únicos, mas nossa vida transcorre, em larga medida, de maneira coletiva. todos nós, enquanto seres humanos, encaramos a dor, a perda, a morte, a dúvida, a doença e todo tipo de sentimento. além disso, nossa vida consiste - se enxergada de maneira simbólica - de várias mortes e renascimentos. passamos por várias crises de adaptação, um dia todos já fomos crianças e em algum momento (espera-se) nos tornamos adultos responsáveis e no momento certo, chega a hora de nos afastarmos dos afazeres cotidianos após termos servido o que os hindus chama de artha - conseguimos dinheiro e posição, criamos uma família, demos algo para a sociedade - e na velhice, nos voltamos para nós mesmos, para o grande mistério final que é a morte, sendo essa fase tão prenhe de significados e realizações quanto as demais, mas num outro âmbito.

é função do mito nos auxiliar a atravessar esses portais, a colocar nossas energias em harmonia com nossa cultura, o universo, o mistério da vida e nossa própria alma. é importante perceber que a ausência de uma simbólica efetiva, energizada pela metáfora, nos coloca numa queda livre em direção a um futuro que desconhecemos, todos nós, não apenas os heróis culturais ou poetas, todos nós. a maioria não está preparada para tal chamado a aventura, e acaba se perdendo de si mesmo. termina preso no estado que Joyce chama de terra devastada, quando o mundo não é capaz de se comunicar conosco, quando agimos baseados apenas no dever, desvinculados da voz em nosso coração que nos diz onde está nossa bem aventurança. dessa maneira, vive-se uma vida inautêntica, mesmo que se amealhe riqueza e poder, essas realizações apenas reforçam os muros que criam os labirintos que aprisionam nossas almas. muitos já escreveram e falaram sobre esse "vazio", esse "mal estar", pois ao abandonarmos os tesouros simbólicos de nossa tradição deixamos de lado de maneira arrogante as pontes que nos ligam a vida genuína, as possibilidades inauditas que dormitam em todos nós. como está escrito no evangélio gnóstico de tomé, ergue uma pedra e ali estará o reino dos céus, racha um cajado e estarei lá. nos ensina Campbell, em seu maravilhoso herói de mil faces, que o herói se aventura no reino misterioso dos deuses, ou no mundo inferior dos mortos. nosso mundo e o outro mundo, são na realidade um único reino. "Os dois mundos, divino e humano, só podem ser descritos como distintos entre si — diferentes como a vida e a morte, o dia e a noite. As aventuras do herói se passam fora da terra nossa conhecida, na região das trevas; ali ele completa sua jornada, ou apenas se perde para nós, aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como uma volta do além. Não obstante — e temos diante de nós uma grande chave da compreensão do mito e do símbolo —, os dois reinos são, na realidade, um só e único reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que conhecemos.".

quando estamos em harmonia com nosso próprio coração, conosco mesmo, com aquilo que jung demoninou de si-mesmo (selbst em alemão), podemos viver vidas autênticas. a metáfora religiosa têm sido em todas as épocas da humanidade, menos talvez na nossa, a maneira de nos relacionarmos com as profundezas abissais de nossas almas, caminhar pelas trilhas escuras e cheias de perigos contando com o fio de ariadne que nos levará de volta com o tesouro da reovação de vida, com o graal tão arduamente buscado, que representa o renascimento da personalidade, após sua morte e destruição que ocorre no processo. sem o mito, estamos presos nesse labirinto, onde sabemos que um monstro nos espreita, mas sem o novelo que serve de guia.

atualmente, essa é talvez a função mais importante do mito, nos guiar em nossa aventura, pois a função cosmológica foi amplamente substituída pela ciência moderna, assim como a função de dar esteio a uma moral e ética, vem sendo ocupada por outros aspectos de nossa cultura como as leis e a filosofia - se estão obtendo sucesso é outra discussão - sendo assim, a realidade da alma descrita nas metáforas do mito e da religião, é o tesouro buscado, mesmo que não se saiba disso. continuo mais tarde...


Continuando, a perspectiva psicológica não deve ser superestimada, do contrário acaba-se caindo em psicologismo, e a simbólica mítica é de tal maneira multifacetada que não cabe em formas estreitas. nesse ponto é interessante salientar certos aspectos da abordagem psicológica em relação ao mito. sem sombra de dúvida, a possibilidade de compreensão mais interessante é a de C. G. Jung. a psicologia junguiana possuia certas peculiariades ao tratar da metáfora religiosa, justamente para não incorrer no erro do psicologismo. a perspectiva da psicologia analítica (que é como se chama a psicologia fundada por Jung) se baseia em premissas Kantianas, que apesar de complexas, podem ser facilmente resumidas. Jung postula uma realidade psíquica "é real aquilo que atua", então ao se examinar uma imagem de deus, seja num sonho, sintoma, discurso consciente ou mito, ela é considerada um fato psicologicamente real, para Jung em termoa anímicos deus é um fato não uma hipótese ou suposição. todavia, a psicologia não invade o campo da filosofia e da teologia, não cabe ao psicólogo decidir se em termos metafísicos ou outros, deus é real, na verdade isso pouco importa. importa sim que suas imagens podem agir com força poderosa sobre as almas humanas, com aquilo que Jung chama - usando os termos de Rudolph Oto, um teólogo - de númem. dessa forma, ao psicólogo é igualmente aceitável quando um paciente em seu divã se diz crente ou ateu, ambas as crenças na existência de um ens metafísico ou em sua inexistência, são fatos psíquicos e atuam vivamente de maneira negativa ou positiva em sua alma.


para o estudo de mitologia comparada, a perspectiva psicológica ajuda a desvendar a relação das metáforas religiosas que aparecem nas narrativas míticas, nos rituais, arte sacra, contos de fada e mitologia criativa, com as funções psicológicas de nossa própria alma. o mito aparentemente descreve eventos fantásticos e fantasmagóricos, de um passado e terras disntantes, mas na realidade, ele nos fala daquilo que é "grave e constante no sofrimento humano". a trilogia Star Wars começava sempre com os dizeres "a long, long time ago, in galaxy far, far way", como o rito de entrada de certos contos de fadas, e em meio a planetas exóticos e inóspitos, cavaleiros jedis com poderes surpreendentes, somos surpreendidos pelo drama demasiado humano da busca de um filho por seu pai, que se vê redimido pelas ações do filho, quando Luke finalmente atinge a maturidade ao confrontá-lo, negá-lo e ao mesmo tempo, tornar-se como Anakin, um Jedi. mesmo em meio as imagens fantásticas e geniais do filme, nada mais humano. nada mais humano e punjante que o amor de Han Solo por Leia, que o redime e o faz reencontrar o herói que dormitava dentro do contrabandista, ou a amizade Chewbaca por Han. de maneira similar, em meio as imagens fantásticas, aos motivos infantis do mito, repousa um tesouro de sabedoria inestimável, que tem guiado os homens de todos os tempos e lugares.



segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Mito e Religião

Ontem, estava pensando no que escrever, pensava em evitar escrever sobre coisas óbvias, mas me ocorreu que óbvio é relativo. pensava em escrever sobre outra coisa que não mitologia e religião, mas esse tema é tudo menos óbvio. principalmente devido a grande multiplicidade de visões, preconceitos e lugares comuns sobre o tema. resta sempre muito a ser dito, mesmo após o muito que já se disse, e aos rios de tinta que já se gastou para tratar desse assunto. além disso, a tarefa se torna mais interessante por estar longe da mminha boblioteca e ter de recorrer a memória para escrever. isso torna a tarefa mais difícil e mais estimulante. tenho tido sempre a oportunidade de conversar com muitas pessoas diferentes sobre religião e mitologia, e sempre me pareceu um exercício interessante para perceber o quanto eu realmente "digeri" de tudo o que já li e experimentei sobre o assunto. pois bem, tento fazer o mesmo aqui, como se estivesse uma vez mais em meio a uma conversa sobre religião e mitologia e precisasse expor meus pontos de vistas e crenças.


a princípio creio que convém definir os termos, do contrário a coisa toda fica bem confusa. Campbell possui uma maneira das mais interessantes de definir mitologia, para ele, mitologia é a religião do outro. logo, as duas coisas se encontram separadas apenas pela perspectiva de quem as observa, se de dentro ou de fora. há uma história Iorubá interessante sobre Exú que pode nos auxiliar a compreender a "perspectiva" de Campbell. havia dois agricultores trabalhando no campo, um de cada lado, ao vê-los Exú resolveu lhes pregar uma peça, ele colocou sobre a cabeça um chapéu de quatro cores, que para quem o via de um lado era preto e do outro branco, com verde na frente e amarelo atrás, dessa maneira ele passou pelos dois lavradores e cada um o viu de uma maneira. ao falarem sobre o assunto, um deles disse ter visto um homem de chapéu preto, ao que o outro disse ter visto o mesmo homem, mas ele usava chapéu branco, e discutiram e brigaram até que o próprio Exú se revelou e lhes mostrou o chapéu que havia sido pomo da discórdia.

Da mesma maneira, tendemos a nos aferrar a nossa perspectiva sem levar em consideração o que outros podem pensar e sentir, mesmo que não seja tão diferentes de nós, no caso da religião, isso se torna mais grave, e mesmo semelhanças podem ser razão para debates e lutas. quando os primeiros missionários chegaram as américas, para propagar a fé Cristã, vista por eles como a única válida e verdadeira, se depararam com algo inusitado. já havia nas américas a crença em quetzalcoatl, a serpente emplumada, venerada pelos astecas. o deus quetzalcoatl havia nascido de uma virgem, era um salvador aguardado e sobre ele havia muitas profecias, e esse salvador fou crucificado e posteriormente ressuscitado e se aguardava um segundo retorno desse personagem. nas imagens de sua crucificação, vê-se que sua cruz está sobre uma caveira (cristo foi crucificado no gólgota, em latim calvarium, "caveira") e sobre a cruz estava um pássaro. as similaridades com as imagens da simbologia cristã são evidentes. todavia, para os missionários dos séculos quinze e dezesseis, apenas suas imagens e símbolos eram válidos, por isso precisavam imaginar uma explicação para esse fato insólito. logo eles imaginaram que o diabo, para dificultar o trabalho de evangelização, havia espalhado essas histórias que nada mais eram do que uma espécie de "paródia" da paixão de Cristo. assim, como sempre aconteceu antes deles, e como ocorre até hoje, em foro íntimo, no divã do psicanalista e publicamente nos púlpitos das nossa igrejas, os deuses dos outros são compreendidos como demônios. assim como, aqueles deuses, em nosso íntimo, que não são compreendidos são sentidos como demônios, entidades nefastas, essa energia atuará em nosso sistema psíquico de uma maneira ou de outra.

Para Jung, a mitologia e a religião, são funções naturais de nossa condição humana. disse ele certa vez que o mito está para nós como o ninho para o joão de barro. as imagens e símbolos, sublimes e terríveis, de todas as religiões e crenças, desde a aurora dos tempos, são produções espontâneas de nossa alma, daquilo que Jung denominou de "psique objetiva", a fantasia é uma forma de pensamento, que é espontânea em nós e que não demanda de nossa volição, ao contrário do pensamento dirigido, em palavras, que demanda considerável esforço de nossa parte e "gasta" nossa força de vontade. o mito, assim como o sonho, surge dessas camadas abissáis de nossa alma, sobre a qual pouco ou nada sabemos, e sobre a qual exercemos pouco ou nenhum controle. tudo o que sabemos sobre as regiões inauditas de nossa própria alma, de onde brotam espontaneamente essas imagens da fantasia, são indiretas. sabemos que não as criamos, elas independem de nossa consciência de vigília, e raramente podem ser controladas pela nossa vontade, ou seja, sabemos que se apresentam a consciência, mas que não foram criadas pela consciência. e que podem agir com diabólica autonomia.

os símbolos religiosos e míticos são os esteios sobre os quais se erigem nossas civilizações e culturas, eles promovem tanto o sentido da vida individual, quanto o da vida do grupo, seja uma tribo primitiva na oceania, ou as majestosas e monumentais civilizações da antiguidade clássica. muitos autores procuraram compreender o sentido vivo da experiência religiosa e explicá-lo. Frazer por exemplo, autor de uma obra monumental sobre imagens míticas, expressava a crença vitoriana na superação do anseio religioso. para ele, a humanidade caminharia em estágios sucessivos de evolução no que concerne a nossa visão de mundo e possibilidade de explicações sobre o universo que nos cerca. a humanidade a princípio teria compreendido o mundo através de explicações mágicas, depois religiosas e por fim, numa superação definitiva da religião, através de explicações científicas. Freud, que foi leitor de Frazer, também enxergava a religião com olhos nada favoráveis, nada mais que uma "ilusão", cujo destino era ser superada. a religião e seus muitos ritos, gestos e cânticos, seria o equivalente coletivo de uma neurose obsessiva individual. o pai da sociologia, durkheim reduzia a religião ao seu papel pedagógico, ela serviria para adequar os indivíduos a sua sociedade e seus ditames, reduziando assim a religião a "ideologia", o que ainda é uma opinião popular. mesmo a psicanálise de orientação Lacaniana parece reiterar essa opinião de durkheim (lembremos também de Marx, leitor de feuerbach, para quem a religião é "o ópio do povo"), me recordo de uma frase proferida pela excelente psicanalista Laéria Fontenele, em uma das aulas que tive de mestrado, ao se refirir a uma mulher e sua opção pela religião, ela assim definiu a filiação dela a um credo religioso "ela alienou o sentido de sua vida a uma religião".

Para Jung, a mitologia possui uma função de higiene psiquica, no seu "símbolos da transformação" ele explica essa função ao afirmar que essas imagens imorredouras sempre nos ensinaram os limites de nossa personalidade empírica "isso são os deuses, não são você, você deve lidar com eles, venerá-los e respeitá-los, mas você é uma outra coisa" se bem me recordo de suas palavras. nossa consciência, quer tenhamos ou não um credo religioso, é sempre e sempre, em sonhos, atos falhos, sintomas e visões, assolada por deuses e demnônios desconhecidos. símbolos de nossa psique objetiva sobre o qual não temos qualquer controle, mas com os quais temos de lidar, de maneira similar como temos de lidar com um professor chato, uma namorada exigente ou um assaltante violento. o fenômeno religioso genuíno é caracterizado justamente pelo que Rudolph Oto chamou de "numinoso", ou seja ele escapa a nossa volição consciente, possui uma energia própria que pode até mesmo subjulgar nossa vontade. certa feita Jung teria dito "que nós temos complexos isso todos sabem, o que poucos sabem é que esses complexos podem nos ter". até mesmo o surgimento da moderna psicologia estaria, para Jung relacionado no ocidente ao ocaso dos grandes símbolos de nossas religiões tradicionais, a psicologia surgiria como esquálido sucedâneo para uma sociedade que se vê obrigada a viver sem o amparo dos símblos e ritos que sempre proveram nosso alimento espiritual. triste substituto para o druida e o xamã é o psicólogo. mesmo a interpretação psicológica que fazemos hoje de nossos mitos, ritos e contos de fada, não seriam mais do que a nossa maneira de ter algum contato, mesmo que mínimo com a força de vida que eles fornecem, e essas interpretações são também um tipo de mitologia. bom vou comer agora e mais tarde continuo...


Continuando, é preciso que fique claro que o mito ou a religião, não são mentiras, ou invencionices, ao contrário, desempenham papel fundamental tanto no desenrolar da vida individual quanto na vida do grupo. para Campbell, o mito desempenha quantro funções, sendo a primeira o que ele denomina de função mística, ele visa preparar a consciência para assimilar a aceitar as pré-condições de sua existência. a vida é dura, e há um horror que lhe é inerente, vida se alimenta de vida, e toda vida caminha para a morte e desintegração. até onde sabemos, em nosso mundo, somos os únicos que temos consciência desses fatos, do horror da vida. os povos caçadores, como os índios do estados unidos, caçadores de búfalos, tinham de alguma forma de lidar com os efeitos psicológicos da matança que causavam para sua sobrevivência, ao matar centenas de animais todos os anos. e mesmo nas regiões tropicais, onde há vida em abundância e o acento mitológico recai sobre a agricultura, não escapou ao olhar arguto desses povos o mistério de que a semente precisa morrer na terra para que haja a nova vida, surgindo lógica de que "quanto mais morte, mais vida" representada de maneira dramática nos sangrentos rituais que surgiram dessa percepção fundamental. mesmo os aspectos cosmogônicos dessa mitologias, o surgimento de alimentos úteis ou  da humanidade, surgem da morte e desmembramento de algum herói culturam ou ancestral totêmico. nessa perspectiva existem três viéses possíveis seguidos pela simbólica mítica. o primeiro de aceitação incondicional do mundo e da vida como ela é, um outro de retirada do mundo, que obviamente é mau, pois tudo o que vive para se manter assim deve causar sofrimento e morte, e um terceiro que enxerga o mundo como mal, mas passível de reformulação e nos convida a tomar partido numa batalha entre luz e sombra pela redenção desse mundo horrendo e cruel. como nas imagens da crença persa formulada por Zoroastro, da luta entre os irmãos Ahura Mazda e Arimã, que se assenta nessa percepção do mundo como maligno, mas de uma possível redenção que necessita de um posicionamento moral dos seres humanos, ao lado da luz e contra a trevas. no caso do judaísmo, o acento recaiu sobre a sociedade, o elemento sagrado no mundo (que é entendido como mecanismo, ou seja algo que em sua substância é diferente de deus) é a sociedade, não uma sociedade qualquer, mas um povo escolhido que realizou um pacto com  deus.


Campbell narra uma história interessante da mitologia indiana sobre a percepção de que a vida vive de vida. Xiva, o dançarino cósmico, o destruidor ou o transformador, deus ioge que faz parte da trimurti hindu (os outros dois são Brhama e Vishnu) um dia foi ofendido pelos demais devas, de seu aborrecimento surgiu um monstro terrível, de corpo magérrimo e cabeça de leão. essa fera começou a devorar tudo, e nem mesmo Indra foi capaz de derrotá-lo, quando o monstro estava prestes a devorar até mesmo os deuses, eles se prostaram diante de Xiva e pediram clemência. Xiva então se dirigiu ao monstro e ordenou que ele parasse de devorar a criação, mas a criatura replicou "eu sou a fome eterna, se não posso devorar o mundo o que devorarei?" então Xiva ordenou que ele devorasse a si mesmo. imediatamente a criatura começou a se devorar pelos pés, até que apenas sua cabeça de leão restou. o deus observou o que havia restado de sua criação e exclamou "que grande maravilha! te colocarei na entrada de meus templos, só quem passar por ti poderá chegar a mim!". A fome eterna, a vida que se devora a si mesmo é o guardião do portal que leva a transcendência, a aceitação do mundo como ele é torna-se um requisito para que se enxergue a radiância transcendente que o mundo igualmente é, pois o mundo é o corpo do próprio Deus, é Brhama. ocorre aqui uma mudança de perspectiva, como o bodisatva, que escolhe "viver alegremente em meio as tristezas do mundo". me recordo igualmente de uma historieta budista sobre um bodisatva que ilustra bem esse aspecto da vida que é o aspecto místico do mitologia em sua função de preparar a consciência para as pre-condições de sua existência.


O Bodsatva estava caminhando por uma terra pura quando presenciou um pombo que estava sendo perseguido por um abutre. a ave já estava nos limites de suas forças e logo seria alcançada pelo abutre e devorada. tomado de compaixão ele abrigou o pombo para salvá-lo de sua sina de ser morto e devorado pelo predador. apesar do ato compassivo, o abutre se dirigiu ao Bodisatva e reclamou "eu também estou nos limites de minha força, se não devorar o pombo eu morrerei de fome!"; abalado o Bodsatva não sabia o que fazer, e ofereceu sua própria carne ao abutre em troca da vida do pombo. imediatamente surgiu miraculosamente uma balança. o abutre subiu em um dos pratos e seu peso fez a balança se inclinar. ao ver isso o Bodsatva começou a cortar a sua própria carne, tentando igualar o peso do abutre, mas por mais que colocasse de si no outro prato da balança não podia igualar o peso da ave. subitamente ele compreendeu e subiu no outro prato da balança e eles se moveram e se igualaram, uma vida por uma vida. imediatamente uma chuva de ambrosia surgiu e regenerou o ser iluminado e as aves revelaram serem ninguém menos que Indra em pessoa. mais uma vez surge de maneira punjante a realização de que a vida vive de vida, e aqui vemos a tomada de consciência desse fato como algo libertador, assim que o Bodsatva se apercebe desse fato, a cena de brutalidade predadora se converte em algo diferente, mas fundamentalmente o mesmo, como a revelação da divindade e transcedência, personificada aqui por Indra, e seu corpo é regenerado. é interessante esse elemento nessa história, pois o significado de Bodsatva é justamente aquele cujo próprio corpo é o despertar, a iluminação.


Eis então em linhas gerais a primeira função desempenhada pelas mitologias, alinhar a consciência ao mysterium tremendum do universo.  Podendo resultar daí, do despertar para o assombro do universo ,três posições distintas pode-se: aceitar e afirmar o universo tal como ele é; a negação do mundo como ele é, ou da restauração do mundo como ele deveria ser. daí resultam três formas de participar do mistério do universo por parte do indivíduo: exteriorizando, interiorizando, ou efetuando uma correção.


A segunda das quatro funções desempenhadas pelas metáforas da simbólica mítica, segundo aponta Campbell, é apresentar uma imagem consistente do universo, em certa medida, interpretá-lo. existe aqui a idéia de que há uma ordem cósmica, e de que essa ordem macrocósmica corresponde a uma ordem microcósmica, ou seja, a sociedade e o homem participam da harmonia do universo. assim é que na China da antiguidade os imperadores era considerados legítimos por terem recebido o "mandato do céu", e nas muitas imagens míticas chinesas do outro mundo ou do inferno, essas regiões espirituais são representadas como identicas a complexa burocracia chinesa. essa comcepção, do Tremendum do universo como uma ordem cósmica impessoal, que pode ser descoberta através das matemáticas ou dos movimentos cíclicos dos astros, dos quais os deuses são meros agentes, se afasta da concepção mais primitiva, nesse caso, em linhas gerais, é essa a concepção que surgiu provavelmente na cidade hierática mesopotâmica há três mil anos, e foi a concepção das grandes civilizações monumentais da antiguidade. assim, os aztecas realizavam sacrifícios sangrentos, arrancando o coração de guerreiros vivos num altar de quatro lados para garantir que o sol continuaria a se levantar, assim como sacrificavam crianças no alto de montanhas para garantir a chuva, nesses exemplos temos uma junção desses dois aspectos míticos, pois a morte garante a vida - o nascer do sol e a chuva - na lógica de quanto mais morte mais vida, mas agora numa escala cósmica, sem a participação da sociedade humana o cíclo cósmico dos dias e das chuvas cessaria.


Essa segunda função é, basicamente, a de fornecer uma cosmologia, como a que se encontra na bíblia, no gênesis, em que um deus personificado criou o mundo e tudo o que existe nele através da palavra em sete dias. ou do relato Hindu sobre a criação, oposto ao relato cristão, no sentindo de deus ser imamente e transcendente, pois seu corpo é a prórpria criação. nesse mito, o ser primordial adquire consciência de si, seu primeiro sentimento é medo por estar só, em seguida ele deseja uma companhia e se divide em dois e passa a desejar aquela parte de si mesmo, agora dois seres, ela foge e se transforma numa vaca e ele num touro e daí nascem todas as vacas, e assim sucessivamente, até que toda a criação surja. assim também no mito cosmogônico chinês um gigante primordial tem seu corpo despedaçado para a criação do universo, no mito mesopotâmico a deusa dragão das águas primordiais Tiamat é despedaçada por Marduk com a ajuda dos ventos e de seu corpo desmembrado ele cria o mundo, ou o mito nórdico em que um gigante primordial de cujo corpo igualmente despedaçado nasce o mundo, o sol a lua e as estrelas. ou a ordenação grega do caos feita pelo todo poderoso Zeus, trazendo harmonia a matéria disforme anterior a seu poder e majestade.


A terceira função da mitologia é a de justificar ou respaldar uma ordem moral, de maneira que a ordem social esteja de alguma maneira, estreitamente relacionada a ordem cósmica. esse é o sentido apontado por Durkheim, de que a religião tem um objetivo pedagógico, de adequar o individuo há uma ordem social pré-estabelecida, todavia ele reduz a religião a esse aspecto apenas. na atualidade há no âmbito da filosofia várias correntes que debatem a ética, tal fragmentação se justifica principalmente pela falta de um esteio metafísico para as afirmações éticas, sem o qual elas não se sustentam. não à toa, Kant, mesmo após demonstrar em sua crítica da razão pura, que o esforço metafísico era infrutífero, ao discutir ética e moral, repõe toda a metafísica. Como o post já se alonga em demasia, passo a quarta e última função, tida por Campbell como a mais importante, e só a menciono, posteriormente me deterei com mais detalhe a ela. essa quarta função é psicológica, a de auxiliar o individuo a passar pelos estágios e crises da vida, ajudando a compreender e dar um sentido a experiência da vida. Jung muitas vezes utilizou a metáfora da vida humana como o curso do sol, que nasce e ascende em direção ao seu ponto mais elevado no zênite, para em seguida dirigir-se ao seu ocaso e ao desaparecimento na noite. o sentido vivo de participação no mistério da vida humana e suas várias fases, crises e transformações, suas várias "mortes e renascimentos" sempre foi fornecido pelo mito, pela simbólica religiosa.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Tropa de Elite 2

Ontem assisti ao aguardado Tropa de Elite 2, fui a um shopping aqui em boa viagem e, mesmo com as filas enormes, consegui a muito custo assistir ao filme. valeu a pena. se alguém ainda não assistiu, não leia o que vou escrever, certamente muitas surpresas serão estragadas.

O filme é visceral, intenso, e genial em muitos aspectos. Ele parece começar pelo fim, logo de início você é levado a crer que haverá um final, um fechamento, um desfecho simples, tudo indica que isso acontecerá, mas as coisas, felizmente, não são tão simples. Você é levado a crer que está assistindo ao final, mas é surpreendido. O filme começa com um nível muito alto de tensão, ela não surge num crescendo, ela começa alta, muito alta, e somente depois da surpresa que nos aguarda ao "final" é que ela arrefece um pouco, mas quase todo o filme, ainda narrado pelo nascimento, desssa vez narrador personagem, já que essa é a história dele, ele é o protagonista, é uma overdose constante de adrenalina.

O discurso do Capitão, agora Coronel, continua o mesmo no início, sua fala e seus argumentos são familiares ao expectador, mas nesse filme ocorre o impensável, uma mudança drástica no Coronel Nascimento, uma morte e renascimento que é simbolizada de maneira tensa e dramática logo no início, pois somente o nascimento pode vencer a morte, e simbolicamente, ele morre e renasce durante a narrativa, e renasce transformado, apesar de manter uma integridade fundamental, e umas poucas certezas. Seu maior nêmesis nesse filme é um "intelectualzinho de esquerda", seu antípoda, Nascimento é ação sem reflexão, o tal intelectual, um historiador idealista, é reflexão sem ação. Ambos são íntegros, virtuosos, ambos ardem no altar da personalidade Ecce Homo intransigentes com aquilo que são, donos de bússolas morais invejáveis, mas mesmo assim, ambos mudam em contato um com o outro, ambos se modificam com esse contato, como substâncias químicas que em contato uma com a outra inevitavelmente reagem. Eles são oposto extremos, e como tal se assemelham.

Nascimento, numa clara brincadeira com a mitologia do filme, torna-se herói depois de um massacre, em que o tal histoirador, Fraga, também se envolveu. Matias, a máquina de matar treinada pessoalmente por Nascimento age como arma bem azeitada, eficiente e letal, e salva o Fraga, mas causa morte e carnificina. Matias é expulso do Bope, devido ao discurso inflamado de Fraga, e Nascimento cai "mas cai pra cima" vai para a secretaria. Eis o começo da jornada do herói, o começo da mudança, o guerreiro perfeito, a arma de matar que até então foi apontada para alvos destinado a morte, agora tem a tarefa de apontar a arma. Tudo muda. Matias, agora capitão, continua intransigentemente fiel ao Capitão Nascimento, mais até do que o Coronel Nascimento, isso os afasta, Matias vaticina, como oráculo, que Nascimento não vai mudar nada na secretaria de segurança pública, ele, e ele apenas vai ser mudado, esse é o destino anunciado, a morte anunciada de nascimento. O Coronel faz o Bope atingir o máximo do seu potencial, faz aquilo para o qual foi treinado, destroi impiedoso seus inimigos, tal qual um deus enfurecido, mas cuidado com aquilo que deseja.

Há um ditado francês que diz que "quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas" o filme não versa sobre a mudança na sociedade, mas numa mudança sutil de perspectiva, de uma transformação psicológica de seu lendário protagonista. Ele muda permanecendo fiel a sua força, não é mera enantiodromia, ele não reverte ao seu oposto, ele se torna mais completo, e essa completude é sofrida, árdua, e somente alguém com a fibra moral do Nascimento poderia passar pelo inferno que tal mudança representa. Com a hegemonia do Bope, surgem novos inimigos, as milícias, nascimento não as enxerga, elas são opacas para ele. Como muitas vezes na vida, outra pessoa faz as vezes de função inferior, a sombra de nascimento, Fraga, as vê com clareza, e através do filho de ambos, pois Fraga casou com a ex-mulher do Coronel e "adotou" seu filho, eles se encontram. Matias é usado pelos milicianos, volta ao Bope, e na batalha contra o último reduto do Tráfico ele tomba. Matias foi treinado por Nascimento, ele é o capitão nascimento, e na busca infrutífera por armas roubadas pelos milicianos e não pelo "movimento", ele peita os corruptos e é morto com um tiro nas costas. O Capitão Nascimento tomba, ele morre simbolicamente quando tomba seu sucessor, ele é obrigado a enxergar a realidade que o cerca, se adaptar a ela ou morrer, ou pior, morrer sem vingar seu pupilo. "matias não era qualquer um!" afirma ele em seu enterro, Matias era o próprio nascimento.

Logo ele percebe o destino proferido por Matias, ele está no âmago da baleia, engolido pelo monstro que estava tentando destruir, finalmente ele se dá conta da extensão do sistema, ele, que é ação, se vê obrigado a refletir ou morrer, ao invés de bom soldado, que não questiona, "missão dada, parcero é missão cumprida" ele se vê forçado a se tornar um ser humano. Nem mesmo sua esposa e filho puderam lhe obrigar a isso, apenas sua missão, seu chamado, sua vocação, teve força para catalizar essa mudança. Sua luta contra o sistema, sua luta contra esse monstro protéico, essa hidra de muitas cabeças e sangue venenoso.

No fim, Fraga se vê obrigado a agir, e o irrefletido nascimento, pura emoção, pura ação, pura adrenalina, é obrigado a pensar, a pesar seus atos, a ver com novos olhos e apenas seu mais odiado adversário, o "che Guevara" se torna seu aliado, o único em quem pode confiar, e que salva sua vida. Nascimento salva o Fraga de um atentado, mas é salvo por ele, em um sentido mais profundo, os dois se redimem. O sistema é maior, inclui os poderosos, os políticos, a comunidade, ele é um monstro titânico, leviatã de dimensões bíblicas, e Nascimento, com toda a sua força e integridade, finalmente se enxerga insignificante, mais eis o belo! eis o humano demasiado humano, eis o Amor Fati isso não o faz desistir, ele luta e luta, mesmo que seja uma luta sem esperanças, ele abraça esse destino de maneira trágica. Ele luta da maneira que sabe e pode, isso é tudo o que ele é, um guerreiro, mas aprende a lutar de outras formas, ele agora brande as armas de seu rival fraga, a palavra! E com mais coragem e integridade do que o próprio Fraga!

O filme é brutal! sangrento! mas paradoxalmente não é uma ode a morte a a violência, mas uma ode a vida, pois morte e vida são lados da mesma moeda. A vida é brutal, o destino de toda a vida é a desintegração e a morte, não há vida sem morte. Essa verdade punjante, do horror que é a vida, que devora a si mesma de maneira impiedosa, surge com rompantes impressionantes na tela. O efeito catártico é poderoso, algumas vezes sente-se seu julgamento suspenso, o que acontece na tela não é nem bom nem mau, nem barbárie nem civilização, não há como dizer ou pensar a respeito, apenas sentir, a Catharys é profunda. Nascimento, que morre e renasce, luta e espanca de maneira implacável um corrupto, o ato em si é fútil, ele mesmo o sabe, mas seu simbolismo é talvez o mais potente, o mais belo, o mais terrível de todo o filme, o ponto alto, o anti-clímax. Nascimento é, paradoxalmente, invencível e de antemão derrotado, o filme não termina, não há desfecho. As cortinas caem num outro momento de grande lirismo, o filho de nascimento recebe a bala que se dstinava a Fraga. O inocente pego em meio ao fogo cruzado, a bala se destinava a um dos dois heróis, os gêmeos arquetípicos de luz e sombra, Nascimento e Fraga, Apolo e Dionísio, mas atinge ao menino. Somos nós que somos baleados, o menino é cada um dos expectadores. E o filme termina, quando o menino abre os olhos na UTI, quando recobra a consciência e Nascimento o abraça. Quando ele abre os olhos, e as luzes se apagam, nós também estamos de olhos abertos, não mais inocentes, agora cientes do horror, nossa ignorância não nos desculpa mais. Mesmo com o didatismo que ainda há nesse filme, menos que no primeiro, ele é genial. Ao sair eu tentei falar a garota que me fez companhia durante o dia em Recife "que filme do caralho!", mas não consegui, estava sem fala, ainda tomado de assalto pela emoção. Mas digo agora, Que Filme do Caralho! Assistam!

sábado, 9 de outubro de 2010

Zen





Retomo o meu intuito de analizar algumas histórias Zen a luz da vacuidade, lembrando o ensinamento do prajnaparamita sutra de que "vazio é forma e forma é vazio, vazio é vazio e forma é forma", recordando também que todos os fenômenos compostos são impermanentes, pois dependem de uma série quase infinita de causas e condições para que possam existir, logo, são vazios de existência intrísica. Jamyang Khyentse possui um exemplo interessante para ilustrar esse fato: imagine que você está caminhando por um parque a noite e vê um homem segurando um bastão de madeira, esse homem amarra um pano a ponta desse bastão e depois o coloca em um balde com combustível, após retirá-lo, ele usa um isqueiro para acender o pano, ateando fogo a ele e, ato contínuo, começa a girá-lo, produzindo um belo círculo de fogo. se uma criança pequena chegar nesse exato instante, desconhendo o processo que você presenciou, talvez ao ver o círculo de fogo ele imagine que ele exista de maneira independente. todavia, após presenciar todo o processo que levou ao surgimento do círculo de fogo, você percebe que, se faltar apenas uma das causas e condições, como por exemplo a mão para girar o bastão ou o combustível, ele deixaria de existir imediatamente. o conhecimento dessas causas e condições cambiantes não nos impende de admirar o espetáculo, mas o vemos como ele realmente é, uma ilusão. essa lógica, da impermanencia e da vacuidade, se aplica a tudo, mesmo ao nosso corpo, que devido a sua continuidade, função e consenso pensamos que ele realmente existe. todavia, nosso corpo muda constantemente, e mesmo parecendo sólido, ele é composto de inúmeras partes, e basta apenas uma delas deixar de funcionar para termos sérios problemas.

Pois bem, com tudo isso em mente, apresento a primeira historieta Zen, um discípulo perguntou a um mestre Zen "qual o significado do Dharma Buda?" ao que o mestre respondeu apontando para uma árvore próxima "o ciprestre em frente", o discípulo contrariado retrucou "não use uma metáfora usando objetos concretos" ao que o mestre aquiesceu, voltando a carga ele indagou novamente "O que é o Dharma Buda?" e obteve a mesma resposta, "o cipreste em frente". pensando na vacuidade, que vazio é forma e forma é vazio, acreditar que o cipreste é algo sólido é real na verdade é ignorância, pois como sendo também o cipreste um fenômeno composto, dependente de inúmeras causas e condições cambiantes para a sua existência, ele é vazio de realidade intrísica, ele é Maya. logo, ao apontar para o ciprestre, o mestre enxergava para além dele e apontou para a vacuidade. 

É preciso também destacar que, essa é uma característica particular do budismo Mahayana, no início do budismo, com a compreensão do Hinayana, o pequeno veículo, Buda nunca era representado, normalmente ele era representado por meios indiretos, como pegadas, ou sandálias deixadas para trás, ou mesmo um assento vazio, pois Buda, o desperto, ao vencer Kama-Mara, venceu a ilusão do eu e a deixou para trás, logo ele era aquele que "não veio e nem se foi", todavia, a compreensão Mahayana de que não há difrença entre iluminação e ignorância, samsara e nirvana, e a noção do Bhodysatva como aquele que "participa alegremente das tristezas do mundo" passou a encarar toda a criação como uma manifestação da natureza búdica original, logo, toda a natureza, e qualquer objeto, por mais ordinário que seja, é Buda, é um veículo para a transcendência, e pode ser visto dessa maneira quando  nossa percepção encontra-se para além dos pares de opostos de medo e desejo, o que apermite repousar em sua natureza original e perceber a pura radiância que emana de tudo.

Campbell exemplifica isso com uma bela oração Hindu: "Bhrama é a energia da consciência viva, cósmica e universal da qual somos todos manifestações, Bhrama é o sacrifício, Bhrama é a comida que estamos ingerindo, Bhrama é o consumidor do sacrifício, Bhrama é a escada que leva o sacrifício ao fogo, Bhrama é o processo do sacrifício, todo aquele que é capaz de contemplar Bhrama em todas as coisas está prestes a realizar Bhrama em si mesmo".


Em outra história Zen, a natureza da vacuidade é exposta através da vacuidade de nosso próprio corpo, que também é um fenômeno composto, logo impermanente e vazio de realidade intrínseca. houve uma vez uma bela monja chamada Uptala, um homem se apaixonou perdidamente por ela e passou a perseguí-la. apesar de tentar evitá-lo, o homem era muito persistente e não dava a menor trégua. Um dia ela foi até ele e o confrontou, mesmo aturdido ele explicou que adorava os olhos dela, sem hesitar ela arrancou os próprios olhos e entregou a ele. Uma das causas da paixão desse homem por Uptala eram seus belos olhos, sem eles o fnômeno perdia uma de suas causas e deixava de existir, é claro que o ato drástico gerou nele choque e horror, mas passado o espanto inicial ele se tornou discípulo da monja. essa historieta mostra de maneira dramática e chocante uma realidade que é fundamental ao budismo e que é uma das verdades que mais ferrenhamente evitamos, nosso corpo, como fenômeno composto, também é alvo da impermanência. nosso corpo muda constantemente, de maneiras algumas vezes imperceptíveis. e o processo de decadência se inicia assim que nascemos, por isso, para o budismo todos estamos no estado paradoxal de estarmos vivos e mortos ao mesmo tempo.


Em outro exemplo, não tão chocante, Shigong perguntou a Xitang Zhicang se era possível agarrar o vazio, ao que ele respondeu afirmativamente. Shigong então o desafio a fazê-lo, em resposta Xitang Zhicang agarrou o espaço vazio a sua frente. Shigong retrucou que ele não havia agarrado nada, irritado este disse "então como você faria?" imediatamente Shigong agarrou o nariz dele com força. novamente nos deparamos com o ensinamento do sutra do coração da sabedoria de que "o vazio é forma e forma é vazio", exemplificado de maneira divertida.


Noutra história interessante, a natureza da vacuidade e da impermanência de nosso próprio corpo (que é um fenômeno composto) surge com uma rara plasticidade. O mestre Zen Juzhi, sempre que era questionado sobre o que era o Dharma Buda, mostrava o polegar e dizia "isto", várias pessoas atingiram a iluminação através desse gesto de Juzhi, seu jovem discípulo observou o mestre fazer isso inúmeras vezes, e quando ele não estava por perto, ao ser indagado pelas pessoas que buscavam Juzhi sobre o Dharma-Buda ele repetia o mesmo gesto com igual resultado. Impressionado consigo mesmo ele foi procurar seu professor e lhe disse "mestre, as pessoas perguntam sobre o Dharma, e como o senhor ergo o meu dedo em resposta" enfurecido o mestre gritou "você age como papagaio! isso não é Zen" e bruscamente lhe cortou o polegar. ainda em choque com a violência do mestre, o discípulo o ouviu indagar "o que é o Dharma-Buda", por reflexo ele tentou erguer o dedo inexistente, ao mesmo tempo em que seu mestre fez o mesmo gesto com o polegar. quando o jovem monge contemplou seu dedo cortado subitamente atingiu a iluminação.


O ensinamento da vacuidade não se aplica apenas as coisas sólidas, nossas idéias, valores, ideologias, moral, e hábitos todos são igualmente fenômenos compostos, impermanentes, e dependentes de uma miríade de causas e condições cambiantes que em larga medida desconhecemos e sobre as quais não temos nenhum controle. há uma história Zen famosa que ilustra a natureza de vacuidade de nossos conceitos, na realidade, a ignorância surge do apego a esses conceitos, ao percebermos a natureza ilusória de todos os fenômenos, que tudo é um perpétuo ciclo de mortes e renascimentos, nosso sofrimento e ignorância tem como raiz o nosso apego a algo que é tão imaterial e ilusório quanto o tecido do sonho. Um dia, quando o monge Zen Tanzan e um jovem monje estavam viajando, eles encontraram uma bela jovem em apuros a beira de um rio. Tanzan imediatamente se prontificou a ajudá-la a atravessar o rio, colocou-a nos braços e a levou até a outra margem. quase um dia de viagem depois o jovem monje exclamou "pensei que nós monges devíamos evitar as mulheres, por que fez aquilo?" ao que Tanzan replicou "Você se refere a mulher lá atrás? eu a coloquei no chão há muito tempo. ainda a está carregando?".


Em outro exemplo clássico, típico da tradição Mhayana, para quem o nirvana "a extinção do fogo tríplice do Desejo, da Hostilidade e da ilusão" é na realidade a superação da ilusão da diferenciação dualística da distinção entre nirvana e samsara, ilusão e ignorância, é o exemplo da cobra e da corda. Dzongsar Jamyang Khyentse o ilustra da seguinte maneira: "Digamos que há um homem medroso chamado joão, que tem fobia de cobra. ele entra num quarto mal iluminado, vê uma cobra enrolada num canto e entra em pânico. na verdade ele está olhando para uma gravata listada Giorgio Armani, mas, em seu terror, interpreta mal o que vê, a ponto de quase morrer de medo - morte causada por uma cobra que não existe de verdade. enquanto ele estiver sob a impressão de que se trata de cobra, a dor e a ansiedade que ele vivencia corresponde ao que os budistas chamam de samsara, que é uma espécie de armadilha mental. Para a sorte de João, sua amiga Maria entra no quarto. Maria é calma e equilibrada, e sabe que João imagina estar vendo uma cobra. ela pode acender a luz e explicar que não há cobra nenhuma, que se trata, na realidade, de uma gravata. quando João se convence de que de que não correu risco, seu alívio é justamente o que os budistas chamam de "nivarna" - libertação. todavia, o alívio de João tem por base a falácia de que o mal está sendo afastado, embora a cobra não existisse nem nunca tenha existido nada que pudesse ter feito João sofrer".


Na filosofia Mahayna, a dualidade entre nirvana e samsara deve ser superada, ignorância e iluminação são como uma lâmina e a pedra de amolar, as duas são desgastadas no processo até que nenhuma delas reste ao final. O exemplo da "corda e a cobra", ou nesse caso da gravata Giorgio Armani e a Cobra, expressa de maneira clara um aspecto da filosofia budista que é de difícil compreensão, ou talvez ainda melhor, de difícil aceitação. vivemos num mundo marcadamente materialista, a realidade supostamente objetiva da matéria reina suprema em nossa visão de mundo, e a realidade da alma é relegada, tida como mera fantasmagoria ou efeito de segunda categoria, epifenômeno de causas físicas e materiais. o amor e toda sorte de sentimento é reduzido a algum quimismo cerebral, "algo de saboroso" que exista em nossos cérebros como disse certa vez Jung. Todavia, na visão Budista, "qualquer coisa percebida pela mente, não existia antes de ser assim percebida; essa coisa depende da mente. Ela não existe de modo independente; portanto, não existe verdadeiramente", as coisas que percebemos existem em certa medida, mas são encaradas como Maya, ilusão. Em larga medida, o exemplo ilustra um fenômeno psicológico que Jung denominou de "realidade psíquica", para resumir, ele dizia de maneira suscinta "é real aquilo que atua", enquanto João estava convencido de estar em apuros com a cobra, essa ilusão agiu atl e qual uma cobra real e seu sofrimento e medo foi idêntico ao que ele sentiria diante de uma cobra "real" de carne e osso. obviamente, na filosofia Budista, há uma sutil inflexão, mesmo a cobra de carne é osso é real "apenas em certa medida", ele é um fenômeno composto, logo impermanente, e assim como os demais fenõmenos, exatamente como a cobra de João, depende da mente para existir.


No grupo de meditação do qual faço parte todos procuram diligentemente praticar e tentar "digerir" os ensinamentos, todavia, apesar de ser sempre enfatizado por muitos mestres que o Budismo é uma disciplina prática, ao nos depararmos com a vacuidade, o vazio, acaba-se sempre tentando chegar a algum consenso sobre a utilidade prática, cotidiana, desses ensinamentos. sobre isso, tudo o que posso fazer é dar o testemunho de minha própria experiência de parca compreensão desse ensinamento. mesmo carecendo de prática de meditação e de maior compreensaõ, o ensinamento do prajnaparamita tem tido um efeito prático muito grande em minha vida. ao perceber que as coisas são transitórias, que morte e vida são inseparáveis, ao invés de levar ao cinismo ou desespero, em meu caso, tem me feito cultivar um maior contentamento com o que se passa comigo agora, nesse momento "o passado não existe e o futuro é uma ilusão", e tem em afastado mais e mais de rótulo e expectativas. além disso, é mais fácil cultivar a esperança, mesmo situações terríveis e aparentemente sem solução como por exemplo o problema entre palestinos e judeus, também é impermanente, e como todo fenômeno vazio de realidade intrínsica, ele eventualmente mudará, ou desaparecerá. tem se tornado mais fácil aceitar a vida e as pessoas pelo que são, não pelo que eu gostaria que fossem, e aproveitar as dádivas e problemas que se apresentam com maior plenitude e tenho me enredado menos em venenos da mente como raiva e rancor. certamente, ainda me resta um longo caminho para uma maior realização, mas mesmo que não chegue um dia ao fim desse caminho, se é que há mesmo um caminho ou um fim, a caminhada tem sido das mais aprazíveis. a eternidade é agora. termino com as palavras de Joseph Campbell, em seu O Herói de Mil Faces, ao se referir ao caminho Mahayana:


"O Bodisatva, todavia, não abandona a vida. voltando os olhos da esfera interna da verdade que transcende o pensamento (que só pode ser descrita como 'vazio', já que ultrapassa a palavra) para observar mais uma vez o mundo fenomênico, ele percebe, fora de si, o mesmo oceano de existência que encontrou no seu íntimo. 'A forma é o vazio, o vazio é de fato forma. O vazio não difere da forma, a forma não difere do vazio. O que for forma é também o vazio; o que for vazio também é forma. e o mesmo se aplica ao nome, à percepção, e ao conhecimento'. tendo ultrapassado as delusões do seu antigo ego auto-afirmativo, auto defensivo e voltado para si mesmo, ele conhece dentro e fora, a mesma tranquilidade. fora ele observa o aspecto visual do magnífico vazio que transcende o pensamento, onde se encontram suas próprias experiências do ego, da forma, das percepções, da palavra, das concepções e do conhecimento. e ele fica cheio de compaixão pelos seres auto-aterrorizados que vivem no temor de seus próprios pesadelos. ele se eleva, retorna ao seu meio e habita entre eles como um centro desprovido de ego, por meio do qual o princípio do vazio é manifesto em sua própria simplicidade. e esse é seu grande 'ato compassivo'; pois, por meio dele, é revelada a verdade, segundo a qual, na compreensão daquele em quem o Fogo Tríplice do Desejo, da Hostilidade e da Ilusão se extinguiu, esse mundo é Nirvana. 'ondas de dádivas' fluem desse ser para a libertação de todos nós. 'nossa vida nesse mundo é uma atividade do próprio Nirvana, não existindo a mínima diferença entre este e aquela'.".

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Arte

Interrompo um pouco o meu objetivo de falar sobre minhas descobertas pessoais sobre a vacuidade e toco em outro assunto. hoje, após um prolongado e, prazeiroso, período lendo A Portrait Of the Artist As A Young Man, motivado pelo entusiasmo de Campbell por esse livro em particular, eu finalmente, hoje, cheguei a prate em que Dedalus, o protagonista, expõe sua concepção de estética, arte e belo.

Eu já a conhecia, pois Campbell se reporta a ela com grande frequência em seus textos, mas é uma emoção completamente diferente ler as palavras de Joyce no seu contexto nativo, realmente algo espetacular, mais interessante ainda, pois, estando em Recife, dormindo num colchãozinho no chão de um Albergue, eu me senti em casa enquanto lia emocionado as palavras que Joyce expunha através do discurso do jovem Stephem Dedalus. em alguma medida, eu estaria em casa em qualquer lugar que fosse ao sentir a emoção que senti enquanto absorvia aquelas palavras. há algo de muito belo e sagrado nisso.

A concepção de arte de Joyce, expressa nesse livro é sumamente interessante, especialmente para um historiador como eu, na verdade, é oposta ao que um historiador ou sociólogo esperaria de arte, pois creio, que esse tipo gente espera da arte, ou de qualquer coisa, engajamento social, discussão ética, apelo a moral, todavia, a arte para Joyce se pauta pelo que Campbell chama de "divinamente surpérfluo". ele começa falando sobre "Pity and Terror", definidas como emoções trágicas, piedade e terror. piedade é tudo aquilo que prende, sequestra a mente na presença de tudo aquilo que é grave e constante no sofrimento humano., e a une ao sofredor humano. O terror é tudo aquilo que prende a mente na presença de tudo aquilo que é grave e constante  no sofrimento humano e o une com a "causa secreta". Ao usar a palavra "prende" arrest, ele indica com clareza que a as emoções trágicas são estáticas, induzem ao arrebatamento da alma. o excitamento dos sentidos é algo meramente cinético, e gera apenas "desire and loathing", desejo e aversão. desejo e aversão criam meramente "artes impróprias", se a arte gera desejo ela é pornográfica, se gera aversão ela é didatica, mas não arte propriamente dita. "The esthetic emotion (...) is therefor static. the mind is arrested and raised above desire and Loathing". aquilo que é meramente cinético, gera apenas uma reação da nossa carne, de nosso sistema nervoso, elas não são mais do que sensações físicas, carecem do fator crucial para Joyce, o arrebatamento estático, a suspensão dos pares de opostos.


A arte, segundo definida por Joyce é a disposição do sensivel ou do inteligível para uma finalidade estética. compreendida como arrebatamento, onde há mente é aprisionada e os opostos são suspensos. Examinando as noções platônicas de beleza, que são associadas a noção de verdade, Joyce tece uma diferenciação, a verdade é sustentada pelo intelecto e estabelece relações com o que é inteligível, a belezaé sustentada pela imaginação que acalmada, saciada por suas relações com o que é sensível. para se compreender a verdade, é preciso em primeiro lugar compreender o intelecto, compreender "the act itself of intellection", compreender a intelecção. já para se compreender a beleza é preciso primeiro compreender o escopo da imaginação, ou seja compreender em si mesmo o ato de apreensão estética. Joyce aponta para uma compreensão estética apoiada numa compreensão psicológica, assim como afirma, na mesma passagem, que toda a filosofia de Aristóteles se sustenta sobre seu livro de psicologia "De Anima" bem como sobre sua afirmação lógica de que A não pode ser A e ser B ao mesmo tempo.


Ainda sobre a beleza, Stephen Dedalus em sua conversa com Lynch, reafirma sua compreensão psicológica com um exemplo dos mais interessantes. ele aponta que a beleza feminina, ou aquilo que é apreciado como beleza feminina varia grandemente em diferentes povos e localizações geográficas. são tão diferentes as concepções de beleza que parecem um "labirinto do qual não podemos escapar", mas existem dois caminhos de saída desse labirinto, o primeiro ele rejeita. a beleza feminina estaria diretamente relacionada a função da mulher com a propagação da espécie, o belo seria definido por uma disposição biológica. mas "isso leva a eugenia e não a estética". a segunda é uma hipótese psicológica, defendida por Dedalus, apesar de o conceito de beleza feminina variar grandemente, todos os que acham algo belo na mulher (mesmo que esse algo difira) encontram-se nessa admiração relações que coincidem com os estágios de toda compreensão estética. por mais que o objeto dessa apreensão estética varie, o processo psicológico de apreensão estética se manteria constante. algo muito próximo da abordagem cum grano salis funcionalista de Jung.


Joyce define ainda três categorias de arte, que são uma progressão, da mais elementar a mais elevada, uma surgindo como desdobramento da outra. a primeira a forma lírica, no qual o autor apresenta a imagem artística em relação consigo mesmo. a forma lírica é a mais simples das três, ela representa um instante de emoção, em que o autor está mais consciente desse instante de emoção do que dele mesmo como aquele que a sente. a segunda forma de arte é a épica, que emerge da primeira, em que o artista apresenta sua imagem de arte em imediatana relação a si mesmo a aos outros. a narrativa épica já não é mais puramente pessoal, o centro de gravidade da emoção se expande a partir do artista até se tornar equidistante entre o autor e os outros.  a terceira é a forma dramática, em que a imagem artística está apresentada em relação aos outros. a vitalidade que se sente surgindo e fluindo da expressão épica se expande de tal forma que preenche cada pessoa com tal energia vital que se estabelece nelas uma apropriada e intangível "vida estética". a personalidade do artista se refina para fora da existência, se impersonaliza, "a imagem estética na forma dramática é vida purificada, e reprojetada da imaginação humana, o mistério da criação estética, assim como dacriação material é alcançado.". o artista, como o deus da criação, em seu ato comogônico se situa atrás, além ou acima, de sua criação Ex Machina.

Nuca havia realmente absorvido isso apenas com a leitura de Campbell, interessante, ontem tentei escrever sobre uma banalidade qualquer e não me senti a vontade para escrever aqui, longe do meu "Museu", mas agora, escrevendo sobre o arrebtamento estético, sobre Joyce e sobre a arte divinamente supérflua, me sinto em casa.