terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Freud e Jung, sobre a interpretação da literatura


O intuito deste ensaio é mostrar as perspectivas de interpretação e compreensão da literatura, de um modo mais restrito e, mais amplamente, da fantasia e da arte, por parte de Freud e Jung, bem como contrastar essas duas perspectivas. Inicio essa empreitada por Freud, isso por dois motivos. Freud possui uma precedência histórica sobre Jung. Sua ciência dos sonhos, inaugurada com o Traumdeutung em 1900, como consta da primeira edição, apresentava ao mundo a nova perspectiva que surgia de compreensão da alma. Os sonhos, resgatados da poeira das eras, passavam a fazer parte dos objetos de estudo da ciência, não mais relegados à mera supertição ou ao interesse do ocultismo, ao invés disso, tornavam-se a “via régia de acesso ao inconsciente”. O inconsciente (Unbewusst) é outra novidade que Freud trouxe a ciência, pois não era nenhuma novidade na seara filosófica, vide a Filosofia do Inconsciente de Edward Von Hartman, e os trabalhos de Kant e Schopenhauer, ou a Hermenêutica filosófica de schleiermacher. A psicologia complexa de Jung, por seu lado, tem seu nascedouro com a publicação, em 1913, de seu Wandlungen und Symbole der Libido, que passou por exaustiva reelaboração até estar completo e substancialmente modificado na década de cinquenta do século passado. Nesse longo e fundamental ensaio, são feitas duas críticas a Freud que delimitam de maneira decisiva um campo próprio do saber sobre a alma, ou, como é mais correto afirmar, de acordo com a elegante epistemologia de Jung, um saber na alma. Para o autor suíço, o inconsciente não sabe apenas desejar, ele pode, também, cancelar seus próprios desejos. Não fosse isso o suficiente, Jung despertou a ira de Freud ao questionar sua noção de libido, apesar de manter o mesmo nome, e, com isso, a teoria sexual das neuroses. Para Jung, com o trabalho relacionado à psicopatologia, a princípio puramente médico, o conceito de inconsciente adquiriu uma coloração característica das ciências naturais, e na escola de Freud o conceito estacionou sob essa forma. Para Freud, Jung desexualizou seu conceito de libido – o que pode ser verdadeiro para a primeira versão do Wandlungen und Symbole der Lybido, mas não para suas elaborações subsequentes. No opus Junguiano a Libido é uma forma de energia, que pode se manifestar também, como libido sexual, mas jamais pode ser reduzida apenas a essa qualidade, mas para o psiquiatra suíço, Freud ampliou as fronteiras do conceito de sexualidade para muito além dos limites permitidos.

Melhor seria dar àquilo que ele tem em mente o nome de “eros”, recorrendo às antigas concepções filosóficas de um “pan-eros” que impregna toda a natureza viva como criador e fecundador. “Sexualidade” é uma expressão muito infeliz para isso. O conceito de sexualidade é cunhado e delimitado com tal precisão que mesmo a palavra “amor” se nega a valer como sinônimo. E, no entanto, como se pode facilmente verificar a partir de exemplos extraídos de seus escritos, Freud frequentemente quer dizer “amor” quando fala exclusivamente de “sexualidade”. (Jung, 2007, p.12).

Jung usa o termo libido em seu sentido clássico, de desejo impetuoso, ele argumenta, com sólido fundamento histórico e epistemológico, que não se pode provar ser a sexualidade o instinto fundamental e a essência do psiquismo, mas que a psique é uma estrutura extremamente complexa, que pode ser abordada pelo viés da biologia, mas que apresenta enigmas que a biologia não pode resolver, quaisquer instintos que a biologia possa apontar como existentes é impossível apontar um único instinto qualitativamente bem definido, como a sexualidade, como explicação última. Em termos históricos, a ciência natural já ultrapassou essa fase, como na malfadada teoria do flogisto. Jung faz uso de um conceito mais modesto de energia como princípio que explica todas as modificações quantitativas. Ao se falar em energia não se faz menção, no opus junguiano a sua substancialidade, mas trata-se de uma grandeza que facilmente explica os processos dinâmicos, sem a necessidade de se basear num princípio concreto. Jung utiliza interessante alegoria para exemplificar seu ponto de vista. Afirmar que a toda a esfera espiritual é um “nada mais que” que no fundo não passa de sexualidade corresponderia, na física a se afirmar, que a eletricidade nada mais é que uma queda d’água culturalmente deformada, o que não condiz com um raciocínio científico. “Nesse sentido poderíamos dizer que a eletricidade ‘nada mais’ é que uma queda d’água conduzida por fios”.

Jung já possuía formulações próprias em virtude de seu trabalho com pacientes esquizofrênicos, e seus estudos com o experimento de associação de palavras, mas o elo que faltava em suas pesquisas ele o descobre em Freud, ao ler no Traumdeutung sobre o inconsciente, e, suas pesquisas retomam de maneira definitiva o caráter autoral e criativo ao estabelecer uma crítica às concepções e métodos freudianos, entretanto, naquilo que há de mais basilar e fundamental em sua teoria dos complexos, o inconsciente, Freud tem a precedência histórica.

O segundo motivo é que Freud, como veremos, é bem mais simples que Jung, em alguns momentos chega mesmo a ser monótona sua redução a uma única causa e seus métodos, logo, iniciar pela perspectiva mais simples torna o caminho de compreensão mais intuitivo e, mutatis mutandis, um tantinho mais simples para o leitor.

Freud, em conferência pronunciada em 6 de Dezembro de 1907, intitulada der Dichter und das Phantasieren, título traduzido para a língua inglesa como The Relation of the Poet to Day-Dreaming, e em português nas obras completas como Escritores criativos e devaneio trata do tema da criação literária. A palavra alemã Dichter é mais bem traduzida como poeta (apesar de poder admitir o sentido de autor ou escritor), a palavra alemã para escritor é Schriftsteller, e a palavra Phantasieren como fantasiar, podendo ser melhor traduzida para o vernáculo português como Poetas e o fantasiar.

Nessa conferência Freud parece retirar sua motivação da curiosidade que o leigo nutre sobre o ofício do poeta, de onde ele retira o seu material? Como ele consegue nos impressionar e despertar emoções inauditas? Sendo sublinhado por ele dois pontos importantes que, de início, revelam a relação do metier do poeta e o inconsciente. Ao ser questionado o poeta não sabe responder ao certo de onde provém sua inspiração, mesmo para ele é algo misterioso e, o que resalta ainda mais que a produção artística não se trata meramente de um arbítrio, de uma acrobacia da vontade, Freud realça que, mesmo que ele fosse capaz de nos fornecer uma resposta clara e satisfatória, essas respostam em nada contribuiriam para nos tornar poetas. De início Freud ressalta de maneira sutil dois aspectos fundamentais da produção artística e do fantasiar que, como algo basilar, Jung também concorda, como veremos. A produção artística possui uma intrínseca relação com o inconsciente, ergo é algo misterioso mesmo para o poeta, ou seja, não depende exclusivamente de sua volição consciente.

O método de investigação utilizado aqui por Freud é seu conhecido método redutivo, nesse caso em particular, ele dirige sua atenção à busca de uma atividade psíquica similar, e de cunho mais geral, que exista no psiquismo e seja mais acessível do que a caprichosa e esquiva inspiração das filhas de Zeus, as Musas. Freud retorna as origens para encontrar essa explicação, lembremo-nos das palavras de Assoum sobre o paradoxo do Deutung freudiano, no sentido de uma interpretação e a relação com seu método analítico redutivo, cuja alegoria fundamental é a química de Lavoisier, sendo resolvido pela compreensão de que a interpretação freudiana explica reduzindo a causa. Nesse sentido, Freud nos leva de volta a infância, assim como o faz com frequência em sua vasta obra, poderíamos até mesmo nos aventurar a afirmar, como o faz quase que o tempo inteiro em sua vasta obra. Ele nos conduz, nessa busca, até a infância, na procura por essa atividade afim à criação literária. A hipótese inicial do pai da Psicanálise é que essa atividade é o brincar, e que ao brincar a criança se comporta exatamente como o poeta. A criança reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrada, o oposto do brincar não é o que é sério, pois a criança leva a sério seu brincar, mas o que é real. A diferença entre a brincadeira infantil e o fantasiar do poeta é que aquele gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas do mundo real, além do fato do brinquedo ser abandonado pelo adulto, que precisa encarar a vida com seriedade. O que o poeta faz é criar um mundo de fantasia que ele leva muito a sério e no qual investe bastante emoção, enquanto mantém uma separação clara entre esse mundo de fantasia e a realidade. Uma das importantes consequências da irrealidade do mundo de fantasia do poeta é que isso lhe permite causar prazer em seus leitores, por meio da imaginação, mesmo com situações que de outra forma seriam penosas.

Novamente podemos perceber o viés redutivo do pensamento de Freud em sua análise do brincar infantil, pois para ele, a criança brinca sempre de ser adulto, e não precisa esconder esse aspecto de suas fantasias lúdicas. O adulto que fantasia normalmente não relata suas fantasias a ninguém, pois, somente fantasia quem se encontra insatisfeito, e o que se revela nesse processo da fantasia são desejos inconscientes, normalmente incompatíveis com o eu e infantis e, que se fossem relatados a outrem, causariam repulsa. O segredo do poeta é que ele nos revela o seu segredo mais íntimo do fantasiar e nos causa prazer ao invés de nos horrorizar.

Quando crescemos paramos de brincar, mas, segundo Freud “[..]quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra.” O substituto para o prazer proporcionado pelo brincar é o fantasiar. Outra diferença entre essas duas atividades é que o brincar é algo público e explicito, enquanto o fantasiar é algo oculto e de âmbito privado para o adulto, pois suas fantasias são infantis e proibidas. A brincadeira é determinada pelo desejo de ser adulto, e ela brinca sempre de ser adulto. O adulto, por seu lado, só fantasia ao estar insatisfeito, as forças motivadoras de suas fantasias são seus desejos insatisfeitos, que podem ser de dois tipos: desejos ambiciosos e desejos eróticos. Essas duas tendências se encontram frequentemente unidas. A fantasia possui uma relação fundamental com o tempo, ela flutua entre os três momentos abrangidos pela ideação.

O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une. (Freud).

Existe, igualmente, uma relação entre a fantasia e o sonho, que nada mais são do que fantasias dessa espécie, como o demonstra a interpretação dos sonhos (que são uma realização de desejo de forma alucinatória que surgem de maneira distorcida a fim de proteger a nós mesmos desses desejo incompatíveis com a consciência diurna, que visa preservar o sono, como um guardião do sono, sendo  igualmente uma espécie de psicose de curta duração e efeito benéfico). O elo que une os sonhos as fantasias é que ambos são a realização de desejos. O escritor que utiliza da fantasia e da criatividade, diferente do que usa material preexistente para compor suas obras, possui, normalmente, um herói que deve atrair a nossa simpatia e está sob a proteção de uma providência especial, pois para Freud o verdadeiro sentimento heroico é essa sensação de invencibilidade, o que revela que o herói de todo devaneio é o Eu.  Isso se revela, igualmente, no fato de todas as moças se apaixonarem pelo herói e todos os personagens bons estão ao seu lado e os maus são seus oponentes. O romance psicológico possui uma característica especial, em que o autor divide seu eu em muitos personagens a fim de observar suas várias correntes psicológicas. O método que resulta dessa comparação brinquedo/devaneio/escrita é que se pode aplicar a obra os 3 tempos da fantasia e o desejo que os entrelaça, o que vincula a obra, necessariamente a vida do escritor. Tal método é descrito por Freud da seguinte maneira.

À luz da compreensão interna (insight) de tais fantasias, podemos encarar a situação como se segue. Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga.

Há uma ênfase na infância, pois a hipótese de Freud é que, assim como a fantasia, a obra criativa, é uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar infantil. Vemos essa tese de Freud em ação – os 3 tempos da fantasia e o desejo que os entrelaça – em sua interpretação de um dos quadros de Da Vinci, escrito em 1910. O título já é revelador Uma lembrança de infância de Leonardo Da Vinci (Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci) nele já vemos os três tempos da fantasia que Freud postulou para explicar a obra de arte alguns anos antes. Ao analisar essa memória do pintor, a de que um abutre lhe teria pousado no berço e com a cauda aberto a sua boca e a fustigado algumas vezes, Freud chega à conclusão de que é por demais fabulosa para ser uma memória, tratando-se, na verdade, de uma fantasia.

É deste modo que muitas vezes se originam as lembranças da infância. Muito diferentes das lembranças conscientes da idade adulta, elas não se fixam no momento da experiência para mais tarde serem repetidas; somente surgem muito mais tarde, quando a infância já acabou; nesse processo, sofrem alterações e falsificações de acordo com os interesses de tendências ulteriores, de maneira que, de um modo geral, não poderão ser claramente diferenciadas de fantasias. (Freud, Vol.XI)
A fantasia é repleta de distorções e mal-entendidos, mas não deve ser desprezada, pois oculta por detrás dessas distorções se encontram informações extremamente importantes dos traços mais relevantes de seu desenvolvimento mental. A técnica de interpretação da Psicanálise permitiria ir além da simples constatação de que a lembrança do grande artista não passa de fantasia, mas atravessar esses véus e encobrimentos para chegar aquilo que jaz oculto.

Como hoje contamos nas técnicas da psicanálise com excelentes métodos que nos ajudam a trazer para a superfície esses elementos ocultos, podemos tentar preencher a lacuna que existe na história da vida de Leonardo analisando a sua fantasia infantil. (Freud, Vol.XI)
Percebe-se com clareza que a obra importa enquanto reveladora de aspectos do artista que não são evidentes, estão ocultos e só aparecem de maneira distorcida. A obra é empiricamente observável, ela é pública enquanto esses aspectos da alma do autor são privados, íntimos e não diretamente acessíveis. Prosseguindo na análise, Freud imediatamente compara a fantasia do abutre a um sonho e, rapidamente chega à conclusão de que ela revela um conteúdo erótico. Nesse caso a técnica utilizada por ele se dá por meio da comparação: aquilo que parecia estranho e incomum, a princípio, se visto sob as lentes da psicanálise não se torna assim tão bizarro, pois já foi visto antes em produções oníricas. E mais, não só foi visto antes, como representa um sinal que designa um conteúdo erótico, que só não é imediatamente reconhecível pelas deformações que sofre ao ser expresso em virtude de sua incompatibilidade com as tendências conscientes. A cauda do abutre é uma alegoria do pênis, e o ato do abutre fustigar a boca da criança uma representação disfarçada de uma felação, fantasia passiva que Freud considera típica de mulheres ou homossexuais passivos.

Freud prossegue em sua análise, no fundo a fantasia encerra meramente uma reminiscência do ato de sugar o seio da mãe que é a primeira fonte de prazer que experimentamos. Como ele mesmo afirmara no outro texto que examinei, os seres humanos são incapazes de abrir mão de uma forma de prazer depois de experimentá-la, nunca abdicamos de nada, apenas trocamos esse prazer por algum substituto. A linha de raciocínio de Freud para justificar mesmo o prazer sexual derivado do ato de sugar um pênis é um tanto bizarra. Temos prazer sugando o seio materno, depois descobrimos o úbere da vaca que possui o aspecto de um pênis e situa-se anatomicamente próximo ao lugar onde se situa a genitália masculina, mas possui a mesma função do seio, com isso poderá formular a fantasia sexual da fellatio.

Utilizando o exemplo da análise dessa fantasia, percebemos com clareza a utilização por Freud dos 3 tempos da fantasia. Um evento atual (o voo dos abutres), lhe desperta um desejo, o que o faz recordar um momento da infância em que teve a satisfação do desejo (sugar o seio materno), e isso leva a produção de uma fantasia (o abutre que lhe fustiga com a cauda), que representa uma maneira de satisfazer esse desejo (normalmente a fantasia se situa no momento futuro). Percebe-se que o desejo é o fio de Ariadne desses 3 tempos e que é a insatisfação que leva a produção da fantasia ou, no caso do artista, da sua obra. Como o desejo recalcado não pode ser satisfeito, a fantasia ou a obra do autor substitui essa satisfação. A imagem do abutre, que representa um deslocamento da imagem da mãe, é interpretada como uma reminiscência por parte do artista da crença egípcia de que os abutres são um símbolo materno por excelência – nessa crença só existem abutres fêmeas que são fecundadas pelo vento. Leonardo era um homem culto, vivendo numa época de efervescência cultural e que cultuava a antiguidade clássica, logo, argumenta Freud, ele deve ter lido algo a respeito do simbolismo materno do abutre entre os egípcios antigos. Além disso, para reforçar sua tese, Freud afirma que a fábula do abutre fora utilizada pela igreja para acrescentar mais um argumento ao dogma da fecundação virginal de Maria.

Desta maneira é possível reconstituir a fantasia de Leonardo com o abutre, pois, seguindo com o argumento, ele deve ter lido algum compêndio tratando do assunto, nessa altura lhe ocorreu à lembrança dessa fábula que se converteu em fantasia, mas que na verdade, significava ser ele também uma “cria de abutre” já que possuía mãe, porém não tinha pai. Desta maneira ele Leonardo se identificava com o menino Jesus. Freud deixa claro textualmente que o objetivo da análise de uma fantasia como essa é o “de separar o elemento mnênico real que ela contém dos motivos posteriores que o modificam e distorcem”, o aspecto inicial da fantasia, como no sonho, é uma fachada que encobre o seu real significado. Nesse caso o significado real é o de que a criança tinha conhecimento da ausência do pai e que se sentia solitário junto à mãe. A especulação de Freud vai mais adiante ainda, ao afirmar que o seu interesse pelo vôo das aves deriva de suas pesquisas sexuais na infância.

Em outro texto, supostamente escrito para agradar Jung, Der Wahn Und Die Träume in w. Jensens Gradiva, título que foi vertido de maneira praticamente literal para o nosso vernáculo Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen, Freud tenta encontrar algum insight, alguma iluminação ou esclarecimento sobre o processo criativo. Nomeadamente, do processo da criação literária. Esse escrito é particularmente interessante num sentido epistemológico, pois revela a filiação de Freud a uma perspectiva quase positivista, como o eram seus mestres do laboratório de fisiologia, adeptos do fisicalismo. O texto versa sobre sonhos literários, ou seja, sonhos inventados por escritores com o intuito de, por intermédio deles, retratar o estado de espírito de seus heróis. Freud argumenta que, mesmo no que concerne aos sonhos reais, o senso comum e mesmo a ciência os consideram como sendo: fisiológicos, arbitrários e desprovidos de sentido. 

No que concerne a sua arbitrariedade, Freud contrapõe a posição de que talvez não exista mesmo a mínima arbitrariedade na vida mental, sendo esta regida por leis de causalidade assim como se dá com o mundo externo. Assoum, em sua impressionante pesquisa sobre a episteme da obra de Freud assinala que ele não tomou parte no que se chamou a época de Methodenstreit, a querela dos métodos no que concerne ao processo de cognição que caracterizaria as ciências da natureza: o explicar (erklären), e as ciências do espírito: o compreender (verstehen). Para quem conhece a obra de Dilthey, esse opõe o compreender ao explicar das ciências da natureza, justamente por nas ciências do espírito não serem imediatamente evidentes as relações de causalidade expressas nas leis das ciências da natureza. Para Dilthey, as tentativas de Comte e Stuart Mill de criar ciências do espírito utilizando os mesmos métodos das ciências da natureza, como a física social de Comte, só era possível ao se mutilar o objeto de estudo dessas ciências.

Deixando de lado o longo parêntese epistemológico, Freud utiliza nessa obra o método de investigação que consiste em examinar a fundo um caso particular examinando as criações oníricas da obra de um único autor. Ao que parece, Jung o teria instigado a aplicar o método de interpretação aos sonhos do personagem principal da obra de Jensen, visto estes possuírem destacada importância no enredo. Assim como as fantasias de Leonardo, aquelas encontradas na ficção de Jensen, pertencentes ao arqueólogo Norbert Hanold logo se revelam nada mais ser do que lembranças infantis esquecidas, e não um produto arbitrário. Além disso, a ficção do autor misturava dois elementos caros ao autor da Ciência dos Sonhos, o passado infantil e o passado histórico, esse mesmo flerte com a história também aparece em suas elucubrações sobre Da Vince.  Essas impressões da infância estavam nele esquecidas, porém atuantes. O texto foi escrito em 1906, e Freud já havia chegado a uma percepção, por meio da hipnose, de que, ao contrário do que propunha a Psicologia Francesa, pensamentos esquecidos não necessariamente perdem energia, mas podem ser atuantes, mesmo tendo sido afastados da consciência – como os comandos hipnóticos.

A personagem principal Gradiva/Zoe exemplifica o complexo de Édipo Freudiano, filha única e com a ausência da mãe, dirigia forte atenção ao pai, mas este, um zoólogo, absorto em sua ciência, não dedicava nenhuma atenção a ela. A menina voltou sua atenção ao jovem vizinho, Hanold, mas quando cresceu ele ficou idêntico ao pai da moça, totalmente dedicado aos seus estudos e completamente desinteressado dela. Esse fato só serviu para intensificar o amor dela, pois assim ele se tornava parecido com seu pai. Sendo a alegoria utilizada pela personagem para ofender Hanold, o arqueoptérix, a justificativa para a análise psicológica proposta por Freud, pois a ave sintetizava os dois pai e amado, biólogo e arqueólogo. Freud logo assume o mecanismo do recalque para explicar o esquecimento do rapaz com relação a sua vizinha.

É verdade que o reprimido, via de regra, não pode emergir da memória sem maiores dificuldades, mas conserva uma capacidade de ação efetiva e, sob a influência de algum evento externo, pode vir a ter conseqüências psíquicas que podem ser consideradas como produtos da modificação da lembrança esquecida e como derivados dela, e que, se não forem vistas por esse prisma, permanecerão incompreensíveis. Parece-nos já termos reconhecido nas fantasias de Norbert Hanold sobre Gradiva derivados de lembranças reprimidas de sua amizade infantil com Zoe Bertgang. Tal retorno do que foi reprimido deve ser esperado com particular regularidade quando os sentimentos eróticos de uma pessoa estão ligados às impressões reprimidas – quando sua vida erótica sofreu as investidas da repressão. (Freud, Vol. IX)
O delírio, as fantasias e os sonhos da personagem principal, o arqueólogo, são compreendidos por Freud como uma fachada, uma cópia inadequada e distorcida do amor juvenil que ainda nutria por sua vizinha. A análise de Freud centra suas atenções na origem do delírio, como bem apontou Assoum, o deutung explica reduzindo a causa, escapando assim as complicações epistemológicas propostas por Dilthey. A chave para o simbolismo da personagem é indicada, segundo Freud, pelo próprio autor, “o amigo de infância desenterrado das ruínas”. Uma vez mais vemos os 3 tempos da fantasia de Freud. Uma impressão atual foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito – nesse caso a imagem em mármore da Gradiva caminhando em Pompéia desperta o desejo erótico recalcado por Zoe – daí retrocedo a uma lembrança anterior da infância na qual esse desejo foi realizado e, por fim, essa lembrança é modificada, alterada para criar uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo, seu devaneio de encontrar as pegadas da Gradiva nas cinzas de Pompéia, que nada mais era do que o desejo inconsciente de dar vazão ao seu amor recalcado e insatisfeito por Zoe. Os três tempos estão ligados pelo fio do desejo inconsciente insatisfeito e, no fundo, a fantasia não é mais do que “uma cópia distorcida e inadequada”.

A atitude de Freud diante da arte é fortemente antagonizada por Jung, que considera improdutivo, a despeito de científica, de reduzir a obra de arte poética a seus estágios mais elementares.

Poderíamos talvez atribuir as condições da criação artística, o assunto e seu tratamento individual, às relações pessoais do poeta com seus pais, mas isto não contribuiria em nada para a compreensão de sua arte. (Jung, 1985, p.55).
A crítica de Jung a perspectiva de Freud pode ser resumida, mas não reduzida, a dar a arte o mesmo tratamento que é dado a uma neurose, pois somente um médico analista vendo pelas lentes de um preconceito profissional poderia ver na neurose uma obra de arte e vice-versa, apesar dos fatos basilares do psiquismo que possibilitam tanto uma obra de arte quanto uma neurose serem os mesmos, ou seja, ambas dependem das mesmas condições psicológicas, que sejam, ambas dependem da participação da alma inconsciente.  O método psicanalítico apenas amplia e aprofunda o conhecimento dos pressupostos históricos e biográficos, e deu ao historiador literário para relacionar certas peculiaridades da obra de arte as vivências íntimas do artista. No fundo o que Freud faz é menos uma análise da obra propriamente dita e mais uma psicobiografia que ressalta aquela mesma terra universal que carrega toda a humanidade e suas explicações são terrivelmente monótonas e de mau gosto, e o interesse é desviado da obra.

Com isto a psicanálise da obra de arte se afastou de seu próprio objetivo e desviou a discussão para um campo humano genérico, nada específico para o artista e, sobretudo para o artista e, sobretudo, para a sua arte, e de muito pouca importância. (Jung, 2007, p.57).
Nesse sentido, o método redutivo de Freud é um tratamento médico que por meio da redução ao campo humano comum pode restaurar uma ligação doentia com o objeto que está no lugar do serviço normal, todavia este método aplicado à obra de arte “extrai da roupagem brilhante da obra de arte o nu quotidiano do homo sapiens elementar”. Tal método deixa escapar o essencial, o sentido e significado da obra, e apenas no diz que seu possuía sexuais infantis, como, aliás, todos, poetas ou não, as tem. Em contraposição a Freud, e sua orientação médica, ou, para usar os termos de Assoum, seu fisicalismo, Jung afirmou.

Para fazer justiça à obra de arte, a psicologia analítica deverá despojar-se totalmente do preconceito médico, pois a obra de arte não é uma doença e requer, pois, orientação totalmente diversa da médica. (Jung, 2007, p.60).
A perspectiva de Jung sobre esse tema está exposta com clareza em dois de seus textos Relação da Psicologia Analítica com a Obra de Arte Poética de 1922 e Psicologia e Poesia de 1930. Uma assevera em sua palestra proferida em 1922 que existe uma incomensurabilidade entre a Psicologia e arte, a despeito de existir entre elas uma conexão, como veremos. A relação se dá pelo fato da arte ser, em sua manifestação, uma atividade psicológica e como tal pode e deve ser submetida a considerações psicológicas, Jung vai mais além, entretanto, e afirma que sob esse aspecto, todas as atividades humanas oriundas de atividades psicológicas podem ser objeto da psicologia (ele poderia igualmente ter afirmado humani nihil alienum puto).  

A psicologia fundada por Jung, a despeito de sua episteme sui generis, está bem mais informada do debate travado desde Dilthey, diferente de Freud, que se julgava um cientista natural capaz de encontrar relações de causalidades claras nos fenômenos da alma e com isso estabelecer leis do funcionamento do aparelho psíquico, Jung percebe justamente o oposto. Em seu Psicologia e Alquimia ele assevera,

(...) assim como também não dispomos de uma teoria geral da consciência que nos permita fazer inferências. As manifestações da psique subjetiva e portanto da consciência só são previsíveis num grau mínimo e não há demonstração teórica que prove a necessidade de um suposto nexo causal entre elas (...) De modo semelhante não há razões empíricas e menos ainda teóricas para supor que mesmo que o mesmo também não ocorra com as manifestações do inconsciente. (1994, p.53).
Freud supõe ser capaz de fazer inferências válidas sobre a vida inconsciente de Leonardo da Vinci por intermédio de sua pintura e da memória ou sonho infantil do abutre, tendo por base a sua teoria do funcionamento do aparelho psíquico: censura/recalque/deslocação/condensação. Seus pressupostos teóricos são fundamentais em sua observação do fenômeno, que se apresenta como um mero disfarce do fenômeno real a que se pode chegar por intermédio do seu método de análise redutivo.  Situando-se em uma atitude quase oposta a de Freud, Jung apelava para o método das ciências naturais: o método empírico descritivo. Para Jung, toda ciência natural é descritiva quando não pode se basear em experimentos, sem com isso perder seu caráter científico, e, além disso, uma ciência experimental torna-se inviável quando delimita seu campo de atuação segundo conceitos teóricos. A preocupação de Jung em relação aos fenômenos não estava em subordiná-los ao crivo de sua teoria, mas sim em descrevê-lo e classificá-lo, isto é, subordiná-lo a um determinado tipo. O viés teórico em Freud é tão forte que ele pode partir do pressuposto de que o fenômeno se apresenta sob disfarce, sua aparência é mera fachada, e isso á inferido de maneira anterior a toda e qualquer observação. Se pensarmos no caráter mais ou menos individual da obra de arte, como o fez Jung, percebemos que o conhecimento da individualidade da obra é impossível se baseado em pressupostos teóricos, pois a individualidade da obra uma exceção e irregularidades relativas. Não é o universal e o regular que caracterizam o indivíduo, mas sim o único. A genuína compreensão da obra de arte, ou seja, daquilo que ela tem de único, não pode ser conseguida pela perspectiva de Freud, que nos oferece algum insight sobre a alma do artista e, fundamentalmente da maneira como ele se defronta com a “rocha da castração”. Mesmo essa possibilidade é vista como ilusória por Jung, que seja, a de realizar afirmações válidas sobre o autor por intermédio da obra,

Ainda que a obra de arte e o homem criador estejam ligados entre si por uma profunda relação, numa interação recíproca, não é menos verdade que não se explicam mutuamente. Certamente é possível tirar de um deduções válidas no que concerne ao outro, mas tais deduções nunca são concludentes. No melhor dos casos, exprimem probabilidades e interpretações felizes, e não passam disso. (Jung, 1985, p.75).
A concepção de Jung, como exposta nas conferências que citei anteriormente, principia por perceber que há uma incomensurabilidade entre os dois campos: arte e psicologia. Existe, todavia, uma conexão entre ambos, e que se baseia no fato da arte, em sua manifestação ser uma atividade psicológica ergo pode ser submetida ao crivo da psicologia. Jung vai mais além e estende essa possibilidade não apenas a arte, mas a toda e qualquer atividade oriunda de causas psicológicas – logo meus estudos sobre quadrinhos e desenhos animados estão ok. Há um porém, a pergunta pelo que é a arte em si não pode ser objeto de considerações psicológicas. A essência da arte não pode ser analisa psicologicamente, se isso fosse possível à arte seria mera subdivisão da psicologia. Na palestra de 22, Jung acentua ainda a distinção de que apenas o processo de criação artística pode ser objeto da psicologia. Essa particularidade metodológica está melhor exposta no artigo de 30 sobre Psicologia e Poesia. Neste ele aponta que, no que concerne a poesia, a força imagística é também um fenômeno psíquico e deve ser considerado pelo psicólogo, sem que com isso ele se arrogue substituir o ponto de vista do historiador da literatura ou da estética sem incorrer no erro da unilateralidade.
A “força imagística” é objeto do olhar do psicólogo, pois, como ele mesmo expõe nesse texto, a alma não é apenas mãe e origem de todas as manifestações da ação humana, como também se expressa em todas as formas de atividade do espírito. Como se pode ver, Jung caminha para uma delimitação do escopo do psicólogo em relação à arte bem menos estreita após 8 anos de estudos. Aqui ele aponta duas tarefas ao pesquisador, e não apenas uma: a pesquisa da estrutura psicológica de uma obra de arte, e explicar as circunstâncias psicológicas do homem criador. Sendo que a segunda – como queria Freud – equivale a estudar todo o aparelho psíquico. Perceba, estimado leitor, que se tratam de dois objetos diferentes: a obra de arte concreta e o Homem criador.

Retornando ao texto de 22, indica igualmente, mesmo que num escopo mais limitado, uma advertência metodológica de enorme importância, com relação à arte e a ciência, pois não deve existir, como ele já apontara em uma relação mais precisa com a ciência psicológica, uma redução de uma a outra. Jung aponta, como uma sutil crítica a Freud, que em statu nascendi arte e ciência se encontram indiferenciadas na alma, como se pode perceber, por exemplo, na criança pequena. A existência desse estado elementar não permite que dele se tirem conclusões acerca de estados posteriores e mais evoluídos, mesmo que derivem desse estado elementar – eis a sutil crítica a Freud e a seu método redutivo. A conclusão a que Jung chega, em sua crítica ao uso unilateral do método redutivo é a de que “quando uma obra de arte é interpretada da mesma forma como uma neurose, de duas uma,: ou a obra de arte é uma neurose ou a neurose é uma obra de arte”. Apesar de negar com veemência a confusão entre fenômeno patológico e arte, Jung admite que a realização de uma obra de arte depende das mesmas condições psicológicas que uma neurose. Isso é genuíno, pois certas condições psíquicas estão presentes em toda a parte, como o fato de todos possuirmos pais ou sexualidade. Ainda assim Jung insiste que quando o acento se coloca na relação do artista com os pais (que tanto neuróticos quanto pessoas normais possuem) nada de específico se apura sobre a obra de arte, talvez apenas se ampliaram  o conhecimento dos pressupostos históricos da referida obra.

Creio que nesse ponto a crítica de Jung em seu aspecto que considero mais fundamental já esteja clara: a interpretação freudiana não nos diz nada de relevante sobre a individualidade da obra e a trata como algo dependente da história e personalidade de seu autor e, nesse sentido, apenas aprofunda – na melhor das hipóteses – seus pressupostos históricos. Assim se expressa Jung,

[...] com isso o interesse é desviado da obra de arte e se perde numa embrulhada labiríntica e enredada de pressupostos psíquicos, tornando-se então o poeta um caso clínico [...]. (1985, p.57).
Esse tipo de explicação torna-se monótona e se prende a superficialidades e se afasta o mais possível da especificidade da obra em direção a psicologia humana geral.o método redutivo de Freud remove todo o brilho peculiar da obra de arte e a reduz aos aspectos elementares, sem com isso compreendê-la. A análise redutiva reconstrói os processos instintivos elementares inconscientes, nesse sentido, tudo o que aparece na obra de arte é mero sinal que designa sempre sexualidade recalcada, a pesar de Freud se utilizar do termo “simbólico”. No fundo, Freud constata que o artista possui fantasias sexuais infantis, como qualquer outro mortal.

Para a interpretação da obra de arte, como pensada por Jung, é crucial a noção de símbolo. Para ele símbolos são tentativas de expressar algo para o qual não existe ainda conceito verbal. Para Jung, o fundamental ao se analisar uma obra de arte é se perguntar pelo sentido da obra, o condicionamento prévio só interessa enquanto puder melhor facilitar a compreensão do sentido. Ora, se um símbolo é uma tentativa de expressar algo que não pode ser dito em palavras, se percebe com clareza, em se tratando de obras simbólicas, que há um sentido que se busca expressar por meio dela e que é este que importa desvendar. A insistência no caráter pessoal é inadequada ao se interpretar uma obra de arte, pois ela não é uma pessoa, mas algo suprapessoal. É uma coisa e não uma personalidade e não pode ser julgada por um critério pessoal. Basta nos lembrarmos da interpretação do quadro de da Vinci para percebermos o quanto o método de Freud utiliza critérios pessoais: a mãe de Leonardo, suas crenças religiosas e estéticas o fato de ser filho de mãe solteira etc.

A obra de arte genuína, na concepção de Jung, pode elevar-se para além do efêmero do puramente pessoal. Ela não é meramente um produto derivado, mas uma reorganização criativa daquelas condições das quais uma psicologia como a de Freud queria derivá-la. A obra de arte deve ser considerada uma realização criativa que se aproveita de todas as condições prévias, seu sentido lhe é inerente e não se baseiam em condições prévias externas. O homem surge nessa equação como o solo nutritivo cujas forças a obra de arte ordena segundo suas próprias leis. Essa é a característica da obra de arte simbólica, um dos dois tipos possíveis de realização artística. Nesse tipo de criação as obras se impõem ao autor e ela traz em si sua própria forma, como Pallas Atena nascendo pronta da cabeça de Zeus. Nesse caso a anseio criativo vive e cresce no interior do poeta como uma árvore que extrai do solo seu alimento, a obra como que possui vontade própria e essa é uma vontade tirânica que coloca o homem a seu serviço e se apodera de sua vida muitas vezes à custa de sua felicidade e de outras realizações, é uma força da natureza e como tal é indômita. A esse fenômeno Jung denominava de complexo autônomo – como a alegoria de Atena bem representa – uma parte separada da alma e retirada da hierarquia consciente – o complexo do eu é o centro da consciência – e leva uma vida independente e de acordo com a sua tensão energética pode surgir como simples distúrbio ou como instância superior capaz de colocar o eu a seu serviço. Jung afirma claramente que a obra de arte, in statu nascendi é um complexo autônomo. O complexo criativo (a obra de arte in statu nascendi)  é independente da vontade consciente e se manifesta ou desaparece segundo suas próprias leis e a relação que se estabelece entre ele e o complexo do eu não é de assimilação, mas apenas de percepção. Em linhas muito gerais se pode afirmar que o complexo autônomo desenvolve-se retirando energia do comando consciente da personalidade, por intermédio de um fenômeno que Jung denominou de introjeção da libido. A obra “acaba” representa uma imagem elaborada, que só se torna um problema interpretativo se pudermos reconhecê-la como símbolo. Enquanto símbolo ela é uma tentativa de elaborar uma “imagem primordial”, um arquétipo, que na realidade é um princípio regulador da formação dessas imagens que possuem um certo caráter mítico e que expressam de maneira poderosa aspectos essenciais da condição humana, mas que são, em si mesmas inapreensíveis. Dessa forma essa obra consegue calar fundo em nossa alma, atingindo o lado irracional do nosso ser que é impassível diante da deusa razão e não pode ser por ela movido. Essas imagens elaboradas a partir do contato com essas realidades anímicas primevas “fala como se tivesse mil vozes; comove e subjuga [...]” ele permite um contato salutar coma alma propriamente dita, a matriz de onde emerge a consciência que não é, senão, fenômeno secundário, permitindo a participação dessas forças elementares na vida consciente e a inundando de vida e sentido. Nesse sentido a arte, assim como o sonho para o indivíduo, representa um processo de auto-regulação espiritual nas nações, evitando a petrificação das atitudes mais gerais da consciência coletiva.

O outro tipo de arte é similar àquela que Freud também descreve e que não se identifica com a fantasia criativa. A obra é idêntica ao seu propósito, ele possui inteira liberdade sobre a sua produção artística, o poeta é idêntico ao processo criativo, essas obras são criadas totalmente da intenção de seus autores visando resultados específicos.

No caso da obra de arte simbólica, trata-se de um algo de natureza inconsciente e que se impõe a consciência, algo suprapessoal que transcende a compreensão consciente, pois a consciência do autor está distante do desenvolvimento de sua obra, sua linguagem ou imagens serão símbolos genuínos, pois expressam o melhor possível o ainda desconhecido. O símbolo significa a possibilidade e o início de um sentido mais elevado e além de nossa compreensão atual, é sempre um desafio a nossa reflexão e compreensão. Por esse motivo a obra simbólica não permite um deleite estético puro, em contrapartida mexe em nosso íntimo.

A obra simbólica trará sempre, como a “força imagística” a marca de sua origem que se expressa por meio dela. O sentido e o significado da obra não podem ser encontrados simplesmente em especulações genéticas. Jung concorda que a arte encerra em si mesma seu sentido, em certo sentido qualquer obra de arte é sua própria interpretação e a interpretação, parafraseando von Franz, é um obscurecimento da luz original que brilha na arte. Todavia, para o conhecimento é preciso se deslocar do processo criativo e olhá-lo desse lado, pois assim ele se tornará uma imagem que exprime um sentido. Jung assevera,

 Nesse caso, não só podemos mas até mesmo devemos falar em sentido. E assim o que antes era mero fenômeno, transforma-se em algo que, juntamente com outros fenômenos, terá sentido, algo que representará determinado papel, servirá a certos propósitos e terá efeitos significativos. E quando vemos tudo isso, temos a sensação de ter conhecido e esclarecido algo. Desta forma, ficam garantidos os requisitos da ciência. (1985, p.66).
Como se pode perceber, é uma perspectiva oposta aquela apresentada por Freud, que desconfia das imagens da arte que são sinais para a atividade instintiva elementar de natureza sexual, para ele a imagem esconde e a psicanálise revela. Para Jung, parafraseando o Talmud, a arte é sua própria interpretação, podendo até mesmo duvidar se o sentido interpretativo que se descobre com a psicologia não seria simples fantasia, sendo o belo ou o deleite estético o sentido próprio da arte e nada mais. Jung, nesse ensaio da década de 20 está muito mais próximo da hermenêutica mais contemporânea com Paul Ricoer (que estudou a ambos, Freud e Jung) do que Freud, preso no complicado labirinto cuja entrada é o paradoxo do seu “deutung”. Jung, no seu A Prática da Psicoterapia, afiançava que seus críticos ao atacarem sua prática clínica o acusavam de apenas fantasiar junto dos pacientes, na verdade acertavam no alvo, pois seu método dialético consiste justamente nisso. No que concerne à interpretação dos sonhos, cujo método heurístico é o modelo de todas as demais possibilidades interpretativas – incluindo a obra de arte – no que concerne ao critério de validez de uma interpretação onírica, Jung postulava apenas um critério “é que meu esforço seja eficaz”, ou seja, que a interpretação significa algo para o paciente e faz fluir a sua vida. No caso da obra de arte e preocupação científica está mais presente, ainda assim, creio que o acento recai fortemente sobre os efeitos significativos que esse tipo de interpretação possui e a sensação, um tanto subjetiva, de ter esclarecido algo, pois, como gosto de repetir, Jung afirmava que o único critério de validez de uma hipótese é seu valor heurístico.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Trabalho duro... E alguma ajuda



Faz um bom tempo que não uso o meu blog para escrever algo pessoal, eu sinceramente não tenho muita noção de quem lê esse blog ou o que as motiva – não é tanta gente assim – já que a “fase” dos blogs já passou e quase ninguém comenta alguma coisa, apenas lê e pronto. Eu comecei a escrever porque já escrevia muito, mas apenas uma ou duas pessoas liam essas coisas e eu queria que mais pessoas tivessem acesso a elas, e um belo dia, alguém gritou para mim que, se eu escrevia, que publicasse na internet e não fosse perturbar os pobres editores ocupados com coisas sérias e sisudas como pessoas que escrevem.

O blog segue, eu quase escrevi “firme e forte”, mas ele segue, pois eu sigo escrevendo e alguém segue lendo. Eu não segui a risca o conselho de que falei antes e escrevi dois livros “de papel”, ambos sobre o meu trabalho como pesquisador, ou como queiram chamar, mas, quando chegou a hora de publicar o que escrevi como autor de fantasia, novamente recorri à internet, dessa vez a Amazon.

Tudo simples, tudo fácil, tudo descomplicado, sem importunar os pobres editores, sem problemas com as livrarias e seus preciosos espaços em suas concorridas prateleiras, mas há um “senão”, sempre há... Toda essa facilidade faz com que o seu livro seja mais um no meio de uma quantidade imensa de informação que circula na internet, nas redes sociais, no mundo virtual que parece ser enorme e atravancado de tantas coisas ruins e descartáveis que é muito difícil encontrar as coisas boas.

Eu acredito firmemente no valor do meu trabalho, das coisas que escrevo, mas convencer as pessoas disso é algo bastante trabalhoso, mesmo com todas as facilidades do mundo digital. Eu até mesmo comprei um livro sobre propaganda virtual e essas coisas, ajudou bastante, mas continuo sendo bem ruim nisso. Algumas vezes eu penso, de maneira otimista, que como tem muita porcaria na rede mundial de computadores, é lógico que um livro bacana e bem escrito vai se destacar, mas o mundo não é um lugar lógico, menos ainda a internet. Escrever um bom livro é só o primeiro passo de uma epopeia que parece se tornar bem difícil a medida que se avança. Pois bem, eu sou fã de Amanda Palmer, e ela tem mostrado que um dos aspectos mais bonitos desse nosso estranho mundo virtual é sua face colaborativa, o momento em que você pede ajuda as pessoas, em que você confia em que um estranho pode lhe estender a mão. Bom eu peço a você, leitor desse blog, onde eu vez ou outra me exponho um pouco não como o intelectual e professor, mas como o sujeito de onde brotam essas palavras que  me ajude, vou colocar aqui o link para o meu romance na Amazon e peço que compartilhem onde puderem e onde quiserem, ou mesmo que, simplesmente, leiam o romance e, quem sabe, comentem na página da Amazon sobre a sua experiência. Obrigado.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

SONHO


Em japonês, o kanji utilizado para sonho é () esse caractere chinês é formado por 4 radicais, um dos mais significativos é (ゆう)  - noite, pois é mais comum que sonhemos a noite – horário mais corriqueiro para o sono
– além da noite estar fortemente associada a natural baixa de tensão da consciência em virtude do sono, cansaço e fadiga, e, associado com frequência a inconsciência e outros estados visionários ou delirantes pela ausência de luz e o conhecido temor a escuridão. A noite é o momento em que as forças da luz (grande metáfora para a consciência) deixam o palco do mundo e as trevas reinam, onde falta visibilidade e os temores que estavam afastados pela presença da luz retornam com toda a força. É o tempo em que estamos mais propensos à imaginação e em que ocorre, em certa medida, uma natural introversão da libido. É o momento de contar e ouvir histórias, e do afastamento dos diversos afazeres domésticos e do trabalho. Na mitologia grega a noite é personificada pela deusa Nix (Νύξ), ela é descrita na Teogonia como um dos primeiros seres a surgirem, filha do Caos, e irmã de Gaia, Tártaro, Eros e Érebo , a escuridão e seu irmão gêmeo. Nix é a mãe de Hipnos, o sono, e de Thanatos, a morte. A morte e o sono estão sempre simbolicamente associados, visto a consciência desaparecer – ou ao menos diminuir – durante o sono. Na epopeia de Gilgamesh, para provar sua mortalidade ele foi desafiado a não dormir e falhou no teste, adormecendo. Ela também é mãe de Oneiroi (o sonho), Moros (destino), Momus (a culpa), Oyzis (a dor), as Moirai (fatalidades), Nemesis (a vingança), Geras (a velhice), Eris (o conflito). Assim como o caos, o seu poder gerador é muito grande e dela surgem diversas personificações de estados de ânimo que a observação empírica mostram serem tão extravagantes e caprichosos como se realmente representassem personalidades próprias capazes de subjugar aqueles a quem acometem.

Para os egípcios o céu noturno estrelado era o corpo da deusa Nut, a mais velha deusa do panteão egípcio e mãe de cinco filhos: Osiris, Set, Isis, Nephthys e Hórus. Seu ornato de cabeça, o hieróglifo com o significado de pote, ou útero, também era parte de seu nome. Na mitologia nórdica a noite é a deusa Nótt, avó do poderoso Thor, que, de maneira significativa, era a mãe do deus que personificava o dia. Jung afirmou que a verdadeira psique é o inconsciente, e que a consciência do eu só pode ser encarada como um epifenômeno temporário. A consciência do eu é gestada pela matriz inconsciente e a ela retorna, o inconsciente é anterior, simultâneo e posterior à consciência do eu.




 O kanji mais arcaico para sonho, muito menos em voga hoje, é bem mais simples e é a junção de apenas dois outros kanjis: acima floresta e abaixo noite - . Pode parecer uma etimologia das mais estranhas, mas, psicologicamente, é prenhe de significado.



De acordo com M. l. von Franz, a floresta é uma região de visibilidade limitada, muitas vezes a copa das árvores impede a entrada da luz e há em seu interior uma noite eterna ou um perpétuo estado crepuscular, nesse local existem animais selvagens e perigos inesperados e, assim como o mar, a floresta é um símbolo do inconsciente. O inconsciente é uma natureza selvagem e indômita, que, assim como a floresta, pode engolir o homem se ele não estiver atento. A floresta também possui o nume da vegetação, e o mundo vegetal extrai a vida diretamente do solo, transformando a matéria inorgânica em matéria orgânica, a matéria inerte e bruta se torna viva. Pode-se traçar um paralelo entre a vida do corpo e sua íntima conexão com o inconsciente. A floresta possui um significado materno, como a árvore. A árvore tem o significado de origem, como a mãe, representa a fonte da vida o início. Em japonês a palavra livro ( -ホン/もと) literalmente é uma árvore com um traço no seu “pé” para indicar raiz, pois também significa origem, fonte, e o livro é tido como a fonte do conhecimento. Árvore representa essa força vital mágica, origem de toda a vida.

A imagem chinesa do sonho como a “floresta da noite” é de uma imensa fecundidade simbólica. Essa floresta escura, repleta de perigos e mistérios, tantas e tantas vezes representada nos mitos e contos de fadas, de chapeuzinho vermelho sendo abordada pelo lobo na floresta, passando pelos irmãos João e Maria abandonados a própria sorte na floresta, até Frodo adentrando em Mirkwood (a floresta negra) no Hobbit – onde existia um rio enfeitiçado que provocava sono e esquecimento. Assim como os cavaleiros do rei Arthur em sua busca pelo Graal, entrando na floresta em busca de aventuras, ali onde não existia qualquer caminho ou mesmo rastro, estamos prestes a adentrar nessa floresta noturna, mas trazemos em nossas mãos um pálida e frágil chama que talvez nos auxilie nessa jornada.