sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

SONHO


Em japonês, o kanji utilizado para sonho é () esse caractere chinês é formado por 4 radicais, um dos mais significativos é (ゆう)  - noite, pois é mais comum que sonhemos a noite – horário mais corriqueiro para o sono
– além da noite estar fortemente associada a natural baixa de tensão da consciência em virtude do sono, cansaço e fadiga, e, associado com frequência a inconsciência e outros estados visionários ou delirantes pela ausência de luz e o conhecido temor a escuridão. A noite é o momento em que as forças da luz (grande metáfora para a consciência) deixam o palco do mundo e as trevas reinam, onde falta visibilidade e os temores que estavam afastados pela presença da luz retornam com toda a força. É o tempo em que estamos mais propensos à imaginação e em que ocorre, em certa medida, uma natural introversão da libido. É o momento de contar e ouvir histórias, e do afastamento dos diversos afazeres domésticos e do trabalho. Na mitologia grega a noite é personificada pela deusa Nix (Νύξ), ela é descrita na Teogonia como um dos primeiros seres a surgirem, filha do Caos, e irmã de Gaia, Tártaro, Eros e Érebo , a escuridão e seu irmão gêmeo. Nix é a mãe de Hipnos, o sono, e de Thanatos, a morte. A morte e o sono estão sempre simbolicamente associados, visto a consciência desaparecer – ou ao menos diminuir – durante o sono. Na epopeia de Gilgamesh, para provar sua mortalidade ele foi desafiado a não dormir e falhou no teste, adormecendo. Ela também é mãe de Oneiroi (o sonho), Moros (destino), Momus (a culpa), Oyzis (a dor), as Moirai (fatalidades), Nemesis (a vingança), Geras (a velhice), Eris (o conflito). Assim como o caos, o seu poder gerador é muito grande e dela surgem diversas personificações de estados de ânimo que a observação empírica mostram serem tão extravagantes e caprichosos como se realmente representassem personalidades próprias capazes de subjugar aqueles a quem acometem.

Para os egípcios o céu noturno estrelado era o corpo da deusa Nut, a mais velha deusa do panteão egípcio e mãe de cinco filhos: Osiris, Set, Isis, Nephthys e Hórus. Seu ornato de cabeça, o hieróglifo com o significado de pote, ou útero, também era parte de seu nome. Na mitologia nórdica a noite é a deusa Nótt, avó do poderoso Thor, que, de maneira significativa, era a mãe do deus que personificava o dia. Jung afirmou que a verdadeira psique é o inconsciente, e que a consciência do eu só pode ser encarada como um epifenômeno temporário. A consciência do eu é gestada pela matriz inconsciente e a ela retorna, o inconsciente é anterior, simultâneo e posterior à consciência do eu.




 O kanji mais arcaico para sonho, muito menos em voga hoje, é bem mais simples e é a junção de apenas dois outros kanjis: acima floresta e abaixo noite - . Pode parecer uma etimologia das mais estranhas, mas, psicologicamente, é prenhe de significado.



De acordo com M. l. von Franz, a floresta é uma região de visibilidade limitada, muitas vezes a copa das árvores impede a entrada da luz e há em seu interior uma noite eterna ou um perpétuo estado crepuscular, nesse local existem animais selvagens e perigos inesperados e, assim como o mar, a floresta é um símbolo do inconsciente. O inconsciente é uma natureza selvagem e indômita, que, assim como a floresta, pode engolir o homem se ele não estiver atento. A floresta também possui o nume da vegetação, e o mundo vegetal extrai a vida diretamente do solo, transformando a matéria inorgânica em matéria orgânica, a matéria inerte e bruta se torna viva. Pode-se traçar um paralelo entre a vida do corpo e sua íntima conexão com o inconsciente. A floresta possui um significado materno, como a árvore. A árvore tem o significado de origem, como a mãe, representa a fonte da vida o início. Em japonês a palavra livro ( -ホン/もと) literalmente é uma árvore com um traço no seu “pé” para indicar raiz, pois também significa origem, fonte, e o livro é tido como a fonte do conhecimento. Árvore representa essa força vital mágica, origem de toda a vida.

A imagem chinesa do sonho como a “floresta da noite” é de uma imensa fecundidade simbólica. Essa floresta escura, repleta de perigos e mistérios, tantas e tantas vezes representada nos mitos e contos de fadas, de chapeuzinho vermelho sendo abordada pelo lobo na floresta, passando pelos irmãos João e Maria abandonados a própria sorte na floresta, até Frodo adentrando em Mirkwood (a floresta negra) no Hobbit – onde existia um rio enfeitiçado que provocava sono e esquecimento. Assim como os cavaleiros do rei Arthur em sua busca pelo Graal, entrando na floresta em busca de aventuras, ali onde não existia qualquer caminho ou mesmo rastro, estamos prestes a adentrar nessa floresta noturna, mas trazemos em nossas mãos um pálida e frágil chama que talvez nos auxilie nessa jornada.

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