quarta-feira, 6 de junho de 2018

Carta a Heráclito


Caro Heráclito,
Talvez você já não se recorde mais de mim, mas em 2018 eu costumava ser você. Espero que esteja bem e gozando de boa saúde, estou me esforçando bastante para que isso seja verdade, espero que esteja em ótima forma e tenha envelhecido bem, como eu tinha planejado. Espero sinceramente, que esteja melhor do que eu em todos os aspectos, mas temo, sinceramente, que a agitação da sua vida e seu ímpeto criativo o façam de fato me esquecer, e isso seria um grave erro. Estou agora contando com 39 anos, e a última vez em que escrevi sobre mim mesmo tinha 33, e olhando para aquele Heráclito, sinto que muitas das dificuldades que ele viveu não foram apenas superadas, mas construíram diversas das qualidades que exibo hoje, mas certamente eu não sou mais aquele homem de 33 anos, ainda tão confuso e lidando com a rejeição de seu próprio pai e com os desafios de tornar-se, ele mesmo, um pai, ainda tão prisioneiro do próprio intelecto e lutando arduamente para se comunicar, para falar para as pessoas sobre tudo aquilo que lhe era vitalmente importante. Em comum com ele tenho ainda o fato se permanecer um judeuzinho pobretão, rogo para que não seja o seu caso, mas mesmo nesse quesito, estou melhor hoje do que ontem.
Também chego à modesta conclusão, que às portas da meia idade, estou começando a fazer as pazes com muito daquilo que perdi, daquilo que fazia aquele Heráclito alguém tão peculiar, e, somente agora, posso tentar conciliar com alguma maturidade. Este ano foi, talvez, o ano mais importante da sua curta vida, ao mesmo tempo, foi o ano em que o destino engendrou de dentro de você o dragão que finalmente te derrotou, em que finalmente sua alma te cobrou um preço mais alto do que você foi capaz de pagar e, depois de colar os pedaços da sua vida, estilhaçada pelo desastroso casamento que aquele Heráclito imprudente de 33 anos nos meteu, sua vida se partiu novamente, mas de dentro e não por fora. Por isso, meu caro, é crucial que você se recorde de algumas das lições que aprendeu, por isso me dou ao trabalho de lhe remeter essa missiva, para que os meus dissabores não sejam os seus. Tudo o que eu sangrei nesse ano, espero que regue o jardim da sua vida em um futuro não tão distante, talvez daqui há seis anos, quando realmente formos completos estranhos.
Mas me alongo em prolegômenos, talvez por sentir que a tarefa que tenho diante de mim é demasiada, há tanto a ser dito e não creio que tenha a arte necessária, ou a coragem, ou mesmo a força, visto agora estar alquebrado, para lhe transmitir aquilo que deve ser registrado a ferro e fogo em sua alma. Nossa alma.
Não resta dúvida que você é um homem extraordinário, mas lembre-se meu caro, ao contrário de tudo o que você julgou por 39 anos, você é tão ciumento quanto qualquer um, pode ser tão controlador e invasivo quanto qualquer um, e não possui metade da paciência que julgava ter. Você simplesmente não se importava o bastante para que a paciência fosse como uma lâmina sobre o seu coração, nunca sentiu ciúmes por jamais ter amado ninguém, essas supostas qualidades que você sempre julgou ter, inclusive sua proverbial calma diante de situações adversas, não passavam de um reflexo distorcido da sua frieza e ausência de sentimentos, quando eles foram adicionados à equação, você agiu de maneira canhestra e inábil, mais do que seria de se esperar de um homem da sua idade.
Maturidade não é algo linear, seu intelecto amadureceu cedo, cedo demais eu diria, e isso teve um preço que agora estou pagando. Aprender rápido não é necessariamente uma virtude, o poder acaba vindo antes da sabedoria para usá-lo. Você não deve se fiar demais em seu intelecto, por mais poderoso que ele seja, muitas vezes é a arma inadequada para encarar aquilo que surge e sua vida. Sua intuição é muito boa, mas algumas vezes eu não acreditei nela, isso foi um erro, um erro que cometo há anos, siga a sua intuição, escute o que os seus demônios têm a lhe dizer, mesmo aqueles que parecem apenas querer feri-lo, esses têm a língua afiada por dizerem a verdade. Prefira sempre a verdade ao autoengano. Por favor, tente não tornar coisas banais e simples em fontes intermináveis de ansiedade, somente faça o que tem que ser feito, não pense demais, lembre-se de ser mais prático. Seu charme e competência não vão lhe livrar de ter de fazer o que é esperado de todos os demais, seu talento não é um passe livre para agir como se não precisasse ter as mesmas responsabilidades, esse lado da sua infantilidade não é charmoso, é apenas ridículo e pode lhe custar caro.
Eu sinceramente espero, que aquilo que começa a acontecer comigo já esteja firme e cristalizado em você, meu amigo. Sempre tive uma tendência epimeteica terrível de me deixar guiar pelas opiniões de outrem, de usar isso para afetar humildade e mostrar que não sou um sujeito arrogante. Isso só me desviou de mim, e os conselhos bem intencionados das pessoas agora só me irritam. Tenho passado mais tempo só, espero que não se esqueça disso, de ficar só, pois é indispensável ao estudo que você tanto ama, e a criação, que é o sentido de sua vida – isso não vai mudar, não mudou desde os 4 anos de idade. Ficar sozinho te permite refletir sobre os motivos de fazer as coisas que você faz, de fazer planos, de ponderar sobre o que deu errado e de confabular com seus demônios. Não os tema, em breve tomarei as medidas necessárias para que você ou mergulhe ainda mais profundamente em sua alma e retorne mais sábio ou simplesmente enlouqueça. Qualquer uma das possibilidades, nesse momento, me parece interessante. Se estiver louco, talvez essa missiva lhe dê uma nesga de sanidade. Firmeza interior é importante, finalmente a sabedoria do I Ching faz sentido quando ele diz que a firmeza deve estar do lado de dentro e suavidade do lado de fora. Não há motivos para temer a escuridão, ela é uma ótima companheira se souber como lidar com ela, tudo o que você sempre julgou que lhe atormentava vindo das trevas estava guardado no seu peito, e está lá mesmo com a luz do dia.
Cuidado ao queimar com muita intensidade, pois essa chama tem um brilho esplêndido, mas se consome muito rápido. Tudo pelo que passamos até agora, que eu passei, deve agora, depois de tantos anos ter te ensinado o valor do comedimento, da paciência e da calma verdadeira. Não se afobe, é preciso julgar as coisas com cuidado, e isso leva tempo, especialmente para mim, que não passo de um tolo no que diz respeito ao valor. Olhando em retrospecto, minha vida foi um pesadelo intelectual, em que jamais soube aquilatar o que os eventos dela realmente significaram para mim em termos de valor.
Lembre-se, por favor, de outra quimera que sempre foi tão subjetivante para nós Heráclitos, você não é corajoso como pensa ser, mas apenas imprudente e insensato. Sua imprudência pode ser uma virtude, mas apenas se temperada por compaixão e altruísmos, do contrário é apenas o sinal inequívoco da sua neurose. Só se pode ser genuinamente corajoso quando se é capaz de sentir medo. Naquilo que realmente importa, você é tão covarde quanto todos os demais, e, ao saber o que realmente importa, agora nós sabemos, surge a possibilidade de ser realmente corajoso e não um tolo imprudente que age sem pensar. É preciso saber o que realmente importa, meu caro, ou você sempre vai meter os pés pelas mãos. Lembre-se, você é um covarde, lembre-se de que só podemos lidar com um inimigo que conhecemos, saber que você é um covarde te dá a oportunidade de ser bravo. Eu sou apenas um idiota que encararia o perigo apenas por ele estar lá, e porque nunca se deparou com algo que realmente o intimidasse, e secretamente, nos recantos mais obscuros do seu coraçãozinho, você sempre flertou com a morte. O caminho do samurai é encontrado na morte, sempre te pareceu algo bonito, mas se você não ama e edifica a vida, se não se importa, a morte não pode jamais ser um sacrifício genuíno. A vida não é simplesmente o intervalo de tempo que você usa para escrever o seus livros, é preciso amar a vida, mesmo naquilo que ela tem de horrendo, não apenas em termos teóricos ou metafóricos, agora, meu caro, se você usar realmente sua proverbial memória, você sabe muito bem do que se trata o horror em sua vidinha miserável.
Finalmente meu querido amigo, vamos à parte mais sensível dessa carta, justamente aquilo que devo pedir encarecidamente que você jamais esqueça, ou minha existência terá sido em vão. Sei que logo desaparecerei para dar lugar a você, mas tenho sofrido tanto e suportado tanto e aprendido tanto que você me desonraria e prestaria um desserviço a si mesmo se ousasse esquecer tudo isso. Meu recato não me permite entrar em detalhes, mas vou lhe lembrar do essencial. Seu coração é mais jovem do que o restante de você, nesses vinte anos de dedicação a sua alma, você habilmente levou anos e anos para entender o óbvio, mesmo com toda a insistência do seu espírito, e assim fugir da luta mais importante, devido a isso, os Heráclitos que me antecederam deram passos modestos, que resultaram na minha atual adaptação social, porém, para mim ficou a parte mais ingrata do caminho. Perceber finalmente as quimeras que cegaram nossos antecessores, que sempre estiveram embevecidos demais com a própria mente, cegos pela própria teimosia, e exageradamente cônscios da violência e habilidade de que você seria capaz se assim desejasse, para enxergar o real problema. Mal esse véu se rasgou, mal eu adquiri algum grau de realismo, e todo o problema que se avolumou no seu coração por décadas veio à tona aos borbotões.
Sua alma é uma bruxa ingrata, que ou te faz correr atrás de diversas mulheres ou te amarra a mulheres inadequadas. Infelizmente, seus sentimentos são ingênuos e sinceros quando finalmente aparecem. Os feitiços de sua alma, que te enredaram por tanto tempo nas teias dessas maldições parecem estar se quebrando, mas a que preço! Cuidado a quem você vai entregar o seu coração, ao primeiro sinal de egoísmo e narcisismo fique alerta. O Heráclito que escreveu o texto aos 33 anos era alguém bondoso, ingênuo e descuidado, inapto socialmente ao ponto da caricatura. Sua bondade vinha de sua ingenuidade, hoje, creio eu, que depois de passar pelo terrível ordálio pelo que passei, posso novamente ser bondoso. Não por ingenuidade, mas por saber o que as pessoas sentem, como dói, como é terrível. A dor pode ter o condão de destruir, mas igualmente de criar, eu já vi os efeitos destrutivos da dor, a morte interior que ela pode causar, a devastação que deixa para trás apenas uma casca vazia que se julga invencível, ou pior, que deseja que o mundo se converta no deserto que é a alma daquele que padece. Lembre-se, você jamais será inabalável, do contrário não poderá sentir compaixão. Para mim, meu caro, para sua ventura, a dor foi criativa, e didática. Finalmente pude sentir em primeira mão a dor que meu egoísmo causou em tantas pessoas, pois para nossa eterna vergonha, sempre que havia a menor possibilidade de seus sentimentos surgirem, os Heráclitos que nos precederam foram apenas tremendos egoístas, desprovidos de compaixão e grandes filhos da puta. Eu lamento por eles, mas lamento mais por mim que tive de pagar esse preço. Não importa o quanto você sofra, lembre-se que há beleza nesse mundo, há pessoas a serem amadas, confortadas, ensinadas, que quanto mais bondade você puder trazer a esse vale de lágrimas, melhor. Não é possível ser bondoso e egoísta, isso não passa de uma farsa, não é possível ser bondoso apenas por um desígnio intelectual. Não é possível amar sem ter consciência dos próprios sentimentos, e por essa consciência se paga um preço tão elevado que nesse exato momento eu penso não ter valido a pena. Eu espero sinceramente, Heráclito, que você possa ler essas linhas e pensar “valeu sim”.
Nenhuma dor, nenhuma decepção, meu caro, vale o preço de deixar de crer naquilo que eu descobri, não meu amigo, sei por experiência própria que seus sentimentos são valiosos e, apesar de singelos, têm também uma qualidade adamantina insuspeita. O fluxo da vida tem um jeito engraçado de nos pregar peças, nesse exato instante, eu pensei que essa carta me custaria um pedaço da minha alma, que seria uma dor inenarrável ponderar sobre tudo isso para que você possa tirar melhor proveito da minha existência. Não foi tão duro, mas creio que ao chegar próximo ao final dessa longa missiva, percebo que essa carta também é o meu testamento, minhas últimas palavras dirigidas ao homem que vou me tornar, pois sinto que a minha morte está mais próxima do que imaginava, hoje fui ferido de morte, e creio que o choque me fez ainda não sentir a profundidade do golpe, eu certamente sentirei com o tempo, só espero que essa dor não te atinja. Meu espectro ainda vai te rondar por um bom tempo, essas lembranças vão te assombrar, mas creio que quando você estiver lendo isso, e eu há muito tiver desaparecido, serão memórias agridoces. Minha vida e a minha morte devem ser o começo do seu triunfo, torne-se o homem que está predestinado a ser, nossos antecessores perderam muito tempo, não há mais tempo a perder. E com um último alento, lhe peço, seja responsável, sempre arque com as consequências dos seus atos, não há nada mais fundamental.
Quase me esquecia! Você fez em seu braço uma bruxaria para não se perder, mas se perder é fundamental, perca-se! O país do castelo do Graal é o lugar a que só se chega sem o saber! A jornada verdadeira da aventura só começa ali onde não há caminho, finalmente, finalmente aprendi verdadeiramente essa lição, não a esqueça. Perca-se e tudo ficará bem. Estou perdido agora, é duro, mas sei que o caminho que leva a mim mesmo jamais foi trilhado por outrem, não há mapa, não há marcas, e é imprescindível se perder. Estou perdido agora para poder encontrá-lo, caríssimo amigo, e você continuará essa jornada ali onde eu tombar, e será em breve, marque o lugar da minha queda com uma rosa, uma com 3 espinhos.
Sinceramente seu, Heráclito 06/06/2018

segunda-feira, 4 de junho de 2018

As histórias de amor de Tolkien, Campbell e Jung


Tenho refletido ultimamente sobre a natureza do amor, mas em termos abstratos, creio que ele seja impossível de capturar, como Proteus o ancião do mar, que sempre que era agarrado assumia uma nova forma e escapulia. Tive uma inspiração, todavia, sobre como tratar desse tema de uma maneira menos fugidia, como de costume, a fagulha de inspiração veio de fora, ao ler uma reportagem acerca de uma exposição sobre a vida de Tolkien. Tenho alguns poucos heróis, dentre eles alguns dos homens que moldaram com suas obras a minha vida e o meu destino, entre eles, os modelos que tive para a minha vida adulta, estão Joseph Campbell, Carl Gustav Jung e J. R. R. Tolkien. Por isso resolvi escrever um pouco sobre as histórias de amor de meus heróis intelectuais, e pais do meu espírito, a quem devo tudo. Talvez assim ilumine algum recanto obscuro da minha própria alma e compreenda melhor como o amor me afeta.
Começo pela que eu acho mais bonita e singela, e que sei de cor, literalmente, como Joe Campbell conheceu sua esposa Jean. Campbell tinha acabado de voltar da Europa, tendo desistido de defender sua tese de doutorado, e em seu retorno teve de lidar com os efeitos da grande depressão de 29. Ele passou dois anos “no mato”, lendo, tendo apenas dois dólares na carteira. Após esse período, ele enviou dezenas de cartas com seu currículo em busca de emprego, até que sua antiga escola o contratou como professor. Um emprego do qual ele não gostava, lembrem-se, esse ainda não era Joseph Campbell, o autor, apenas Joe Campbell, nem mesmo seu primeiro livro A Squeleton Key to Finnegans Wake havia sido publicado ainda. Foi quando recebeu o convite para lecionar no Sarah Lawrence College, uma escola superior apenas para garotas. Joe não estava lá muito empolgado, mas em dado momento ao se ver cercado de belas garotas pensou que não seria mal trabalhar ali.
Campbell era um professor severo, que para evitar qualquer mal entendido exigia ser chamado pelo sobrenome por suas alunas, ainda assim muitas se apaixonaram por ele, sem que jamais o severo professor aceitasse as investidas. Ele conta, porém, que um dia, depois de algumas semanas, notou que em algumas aulas ele se sentia acelerado, levou alguns meses até que descobrisse a causa dessa sensação, era Jean. Enquanto ela foi sua aluna, cultivou uma discreta relação de amizade e proximidade com ela, sem jamais fugir ao decoro de professor. Apenas quando ela se formou, antes de sair em um cruzeiro com os pais ele lhe deu um presente que qualificou de “carregado”, uma cópia do Declínio do Ocidente de Spengler. Quando ela retornou, ele finalmente a pediu em casamento. Ele narra que, quando saíram de carro para a lua de mel, cruzaram com um carro fúnebre, e Campbell interpretou isso como um sinal de que ficariam juntos até a morte, e assim foi. Jean dividiu a vida com Joseph Campbell até o dia de sua morte, ela ainda está viva, tem 103 anos e é uma mulher extraordinária. Nunca tiveram filhos.
Tolkien tem uma história igualmente interessante e singela, da maneira como conheceu e casou com sua amada esposa Edith. A verdadeira história de Beren e Lúthien. A história de amor de John e Edith. Em carta ele escreveu sobre amor e casamento, eu traduzo:
Quase todos os casamentos, mesmo os felizes, são equívocos no sentido que quase que certamemte os parceiros poderiam ter encontrado pares mais adequados, mas a sua verdadeira alma gêmea é aquela com a qual você se casou.

Nenhum homem, por mais verdadeiro que tenha amado sua prometida e noiva na juventude, viveu fiel a ela de corpo e alma sem um esforço deliberado e consciente de vontade, sem auto renúncia.
Tolkien acreditava ardentemente no amor verdadeiro e em seu poder, mas sabia que os homens e mulheres de carne e osso precisavam sempre fazer a sua parte.
John e Edith se conheceram na adolescência, e se apaixonaram perdidamente um pelo outro, ele tinha apenas 16 anos e ela 19. Seu tutor legal, devido a morte prematura de seus pais, o padre Francis Xavier Morgan não estava nada satisfeito com o romance, pois a jovem era Anglicana e não católica. Ele proibiu John de ter qualquer contato com ela até que completasse 21 anos. Ele obedeceu e pacientemente esperou pelos próximos 5 anos. Eu mal posso começar a imaginar a agonia terrível que foram esses 5 anos, 5 longos anos, e só posso crer que o apóstolo Paulo estava correto ao afirmar que o amor é paciente. Ele escreveu ao seu filho Michael contando sobre a extraordinária provação desses longos anos, de como isso foi terrivelmente duro para ela, e de como ele jamais se queixou de qualquer ação tomada por Edith, pois não tinham nenhum voto ou juramento. Nos primeiros 3 anos ele sequer a escreveu, e viveu na mais estrita obediência a vontade de seu tutor.
Na noite em que John completou 21 anos ele finalmente se encontrou com Edith sob o arco de uma ponte, e declarou sou amor a ela novamente, bem como o desejo de passar o resto da vida ao seu lado. Edith, convencida da sinceridade de John, devolveu o anel de noivado que recebera de outro pretendente, desmanchando os planos de casamento, converteu-se ao catolicismo e anunciou publicamente, pouco tempo depois o seu noivado com o estudante pobretão de Oxford. Quando Tolkien esteve nas trincheiras da primeira grande guerra, de onde escapou com vida miraculosamente, todos os seus amigos morreram, ele levava consigo uma carteira que continha apenas 2 fotos de sua amada Edith.
Finalmente chegamos a Jung, talvez o mais turbulento e complicado dos meus 3 heróis. Assim como eles, quando conheceu sua futura esposa, nem de longe era o gigante intelectual que viria a ser, mas apenas um estudante pobretão de medicina, tendo que tomar um vultuoso empréstimo de seu tio, e trabalhar como marchand amador para sua tia para poder custear seus estudos. Não fosse isso o bastante, ainda tinha que lidar com as excentricidades de sua mãe.
Emma Rauschenbach era filha de Bertha Rauschenbach-Schenk, que Jung casualmente viu passando por entre a luz difusa das folhagens de uma árvore e que com seus olhos azuis e cabelos dourados, nessa época uma bela jovem, lhe causou profunda impressão. Mal sabia ele que a reencontraria 21 anos depois e que seria a sua sogra. Muitos anos depois de ter conhecido sua futura sogra, quando ele ainda estava no Gymnasium, Carl foi visitar seu pai, que estava em Sachseln e aproveitou a ocasião para visitar o eremitério onde vivera o santo suíço Bruder Claus. Ele ficou fascinado com a atmosfera do lugar, e ainda sob esse efeito de fascínio, quando descia da colina se deparou com uma jovem beldade loira, esguia e vestindo roupas tradicionais de camponesa que lhe causou grande impressão. Eles desceram o caminho juntos e o jovem Carl tentou conversar com ela, mesmo que desajeitadamente, pois não havia garotas no colégio. Após algumas tentativas ele percebeu que “havia uma parede impenetrável entre eles” e permaneceu calado pelo resto do caminho.
Interiormente Carl ficou abalado com esse encontro por muito, muito tempo, e parece ter acordado do estado infantil de sono inconsciente acerca de sua própria alma. Como ele mesmo afirmou, como ele poderia perceber os fios do destino que ligavam Bruder Klaus aquela bela jovem e a ele mesmo? Ele não podia, mas eles estavam lá.
Tempos depois, Carl ainda era um estudante em Basel, no seu segundo semestre, e estava prestes a visitar um amigo em Schaffhausen, justamente o local onde passara sua infância. Ao saber desses planos, sua mãe sugeriu que visitasse a senhora Bertha Rauschenbach, a jovem de belos olhos azuis que ele conhecera na infância. Carl tinha 21 anos e não a via há pelo menos 20 anos, e iria apenas cumprimentar a senhora Rauschenbach e levar os cumprimentos de sua mãe. Quando ele chegou a casa da rica família, ele viu de relance uma garota loira com os cabelos presos em dois rabos de cavalo e de súbito soube que se tratava de sua futura esposa. Emma Rauschenbach contava nessa época 14 anos. Em suas memórias ele escreveu,
Eu estava completamente trêmulo, pois eu a tinha visto por apenas um breve instante, mas eu soube imediatamente, com absoluta certeza de que ela seria a minha esposa.
Quando Jung contou isso a um amigo ele riu a valer, especialmente pela família Rauschenbach ser muito bem situada socialmente e financeiramente, ainda por cima, Jung não trocou nenhuma palavra com Emma. Seis anos depois, já com um diploma de medicina nas mãos, e ainda profundamente convencido do poder avassalador de sua intuição ao vê-la, Carl pediu Emma em casamento, mas ela o rejeitou. Jung não desistiu, e lhe escreveu inúmeras cartas apaixonadas, todas carregadas de grande beleza e sensibilidade. Emma não resistiu ao charme do jovem Jung e na sua segunda proposta de casamento ela aceitou. Quando ele viajou para estudar em Paris com Pierre Janet em 1902 eles já estavam noivos e se casaram em 14 de fevereiro de 1903.
Emma era brilhante, linda e rica, era uma mulher quieta e de forte personalidade, muito observadora e de uma aguda inteligência. Seus livros sobre a psicologia feminina e as lendas do Graal são um testemunho de seu brilhantismo e profunda compreensão da Psicologia criada pelo seu marido. De acordo com Aniella Jaffe, a calma e tranquilidade interior, que Emma emanava compensava o temperamento vulcânico do marido.
O que eu posso aprender com os meus mestres no que diz respeito ao amor e aos sentimentos, além de seu imenso legado intelectual? Todos eles tiveram uma formidável paciência e persistência, e não duvidaram da verdade e intensidade do seu amor. Todos eles foram arrebatados pelo inconsciente, como Jung acreditava, decisões realmente importantes, como a escolha de uma parceira para a vida toda, não devem ser simplesmente ponderadas conscientemente, mas sim emergir do inconsciente e serem guiadas pelas mais profundas necessidades de nosso ser, de nossa totalidade e não apenas da consciência. Os três tão similares, todos intelectuais, professores e escritores, interessados em filologia e mitologia, todos grandes criadores imensamente criativos e intuitivos. No campo do amor se deixaram guiar pelo fio do destino traçado desde as profundezas de suas almas, sem que o soubessem ou pudessem explicar, foram persistentes e pacientes, suportando o sofrimento da rejeição e da separação, mas sem jamais desistir daquilo que emanava de seu ser mais profundo. Assim como em tudo o mais na minha vida, me resta me inspirar nos gigantes que moldaram o meu espírito, talvez haja aqui lições importantes a serem aprendidas, me resta o esforço de compreendê-las.