Os
seres humanos são extremamente diversificados, nossas condições e acidentes de
nosso nascimento, bem como nossa genética e constituição psíquica tendem a
apresentar uma estonteante diversidade, em tudo e por tudo somos diferentes,
apesar de restar nessa diferença uma semelhança fundamental que nos permite
enxergar algo de nós mesmos nos outros, e de tentarmos o esforço, muitas vezes
vão, de compreender outros seres humanos, apesar de sabermos que, em última instancia,
aquele outro ser permanecerá um mistério. Tanto é maior esse mistério quanto
menos for nossa compreensão de quem realmente somos, num nível profundo. Quanto
mais inconscientes nós formos de nossa própria equação pessoal, menor será
nosso poder de enxergar a diferença, e, de maneira imperceptível, tenderemos a
supor sempre uma semelhança insidiosa, abolindo à diferença em nome das trevas
de inconsciência em que nos achamos mergulhados, e supondo sempre encontrar no
outro a nós mesmos.
Assim
como somos diferentes, nossas emoções tendem a ser diferentes e individuais,
dentre essas poderosas forças que nos movem desde tempos imemoriais, nenhuma
parece ser tão terrível, poderosa, misteriosa e diversa quanto o amor. Sócrates
acreditava que em toda a Grécia apenas a sábia Diotima realmente compreendia o
amor, ela não era um filósofa, mas poetisa. Diotima acreditava que Eros, o
amor, era um grande daimon, um espírito poderoso ou deus que serve de
mensageiro entre deuses e mortais, e refuta a ideia de Sócrates de que se o
amor deseja o bom e o belo ele não deve possuir nenhuma dessas qualidades, mas
como poderia um deus não possuir as qualidades da beleza e da bondade?
Para
Diotima o amor nasce da união entre a abundância e a pobreza, como filho dessas
duas entidades o amor possui suas qualidades. Ele é sempre pobre, severo, e
difícil, descalço e sem morada certa. Mas ao mesmo tempo ele é bom e belo e
responsável por aquilo que é bom e belo, que encontra no ser amado. Assim, para
a poetisa de Lesbos, o amor se movimenta sempre entre os polos opostos
representados por seus pais e caminha entre satisfação e desejo, sem jamais se
deter em um deles apenas, pois essa é a sua herança. Para Diotima, o amor, Eros,
é um filósofo que deseja a sabedoria, algo que soa estranho a filósofos
acostumados a lógica fria e implacável do pensar, mas como ensinou Jung, apenas
ao sofrermos o fogo dos afetos que nos queima até que resta apenas aquilo que
não pode ser queimado, nenhuma mudança genuína pode surgir, apenas o amor nos
permite a busca pela sabedoria. O amor, ela acrescenta busca a beleza, e a
união da beleza do corpo e da alma.
Sócrates
o mais sábio dentre os gregos não compreendia o amor, que esperança podemos
ter? Em outro mito, Eros, esse grande demônio, é filho de Afrodite a deusa do
amor e da beleza e Áries o deus da guerra. Assim como na fábula de Diotima, ele
carrega as qualidades de seus pais a beleza e a discórdia, pois ao tratar-se da
ligação entre pessoas diferentes, mesmo o mais belo dos amores não está isento
da guerra, e se assim não fosse, não permitiria a busca pela sabedoria, como
nos ensinou o velho Heráclito a guerra é o “pai” de tudo. Uma harmonia tépida
não nos leva além de nos mesmos, não nos transforma, só a guerra transforma,
mas ela sozinha não passa de violência e estupidez, apenas o amor consegue unir
esses pares tão díspares e fazer de nós filósofos.
Entre
aqueles que seguem a religião de Vishnu, uma religião do amor, há a crença na
existência de 5 tipos diferentes de amor. Na verdade 5 diferentes estágios ou
graus do amor, e por esses graus pode-se atingir a iluminação. O primeiro é o
amor do servo pelo seu senhor, o caminho da obediência, o grau mais baixo, o
caminho da religião da lei e seus mandamentos, como ensina Campbell, aqui não
se despertou ainda para a presença divina.
O
segundo grau é o do relacionamento entre amigos, aqui já existe o que no
ocidente chamaríamos de amor, onde se abandona a lei e se pensa mais no amigo,
e há a experiência do amor como ato espontâneo e não como obediência a uma
ordem. Montaigne ao refletir sobre a perda de seu querido amigo Etiene de la Boétie
nos legou uma das mais tocantes reflexões sobre a amizade,
Na verdadeira
amizade, em que sou experimentado, dou-me mais ao meu amigo que o puxo para
mim. Não só prefiro fazer-lhe bem a que ele mo faça, mas ainda que ele o faça a
si próprio a que mo faça; faz-me ele, então, o maior bem possível quando a si o
faz. E se a sua ausência lhe for quer prazenteira quer útil, torna-se-me ela
bem mais agradável que a sua presença; e de resto não é propriamente ausência
se há meios de comunicarmos um com o outro. Tirei outrora partido e proveito do
nosso afastamento. Em nos separando, melhor e mais amplamente entrávamos em
posse da vida: ele vivia, fruía e via para mim, e eu para ele, mais plenamente
que se ele estivesse presente. Uma parte de cada um de nós permanecia
desocupada quando estávamos juntos: fundíamo-nos num só. A separação espacial
tornava mais rica a união das nossas vontades. A insaciável fome da presença
física denuncia uma certa fraqueza na fruição mútua das almas.
Ao
explicar as razões de amar seu amigo Etiene, ele nos presenteia com a bela
resposta possível: “Porque era ele, porque era eu”.
O
terceiro estágio é do pai ou mãe para com seus filhos, mais intimo e poderoso
do que o amor entre amigos. Em japonês a palavras gostar (usada normalmente
como amar) é formada por dois outros caracteres: o caractere para mulher o de
criança.No cristianismo vemos o nascimento do bebê Jesus e suas representações
no colo de Maria, a chegada dessa criança divina simboliza o despertar em nós a
consciência de que o poder divino reside em nós, aqui há o despertar da
verdadeira vida religiosa.
O
quarto estágio do amor na religião de Vishnu é o que existe entre os casais,
aqui cria-se o andrógino, a identificação com o outro. Depois de descobrir deus
em seu coração, e nunca antes, você pode agora descobrir deus no coração de
outra pessoa. Aqui há a reunião dos poderes divinos primordiais, anteriores a
consciência do eu, quando macho e fêmea não estavam separado, quando logos e Eros
viviam em um abraço amoroso, indiferenciados, onde toda a potência de vida
pulsava ainda intocada e o mundo estava repleto de vida e vida em abundância. Com
essa reunião, podemos experimentar conscientemente, esse estado místico, a união
alquímica, que, por isso mesmo é entendida como eterna.
A
mais elevada ordem do amor é aquele da paixão compulsiva e incontrolável, nada
existe senão o amor, neste estágio tudo se esvai e só nos resta o amor. Como nos
ensinou Campbell, estamos aqui diante do amor cortês, do coração gentil, onde o
homem fica alucinado, capaz de feitos incríveis, mas percorre uma trilha
estreita, pois ao seguir a sua paixão você está sozinho e não conta mais com o apoio
da sociedade. Trata-se de algo divino, sem relação com as agruras da vida, mas
é preciso sempre retornar a vida e redescobrir o valor que nela existe. Essa experiência
maravilhosa em algum momento precisa ser interrompida e deve-se descobrir qual
o tipo de relacionamento possível.
O
casamento é antes de tudo um ordálio, pois o entrelaçamento de duas psiques
deve levar em conta sempre o que surge dessa relação como algo mais importante
do que as minhas tendências egoístas. Se você serve ao outro ainda está no
primeiro estágio, mas se segue a transformação que esse contato entre duas
almas gesta, mesmo que algumas vezes seja doloroso, então tem-se o casamento
alquímico, uma experiência religiosa, um sacramento, onde algo de belo e
terrível acontece a ambos, juntos. Uma experiência de transformação, que como
nos mistérios dos Eleusis, queima-se no fogo tudo o que há de mortal e
supérfluo. Algo que vai além do mero casamento biológico, ou seja, uma
instituição sancionada pela sociedade para se ter filhos. No casamento que se
afigura como um sacramento, não há um programa a ser seguido, ele é sempre algo
de original, uma obra de arte que nasce da conjunção de dois corpos e duas
almas, como nas lendas do Graal, onde os cavaleiros em busca de aventura
adentram na floresta escura lá onde não há trilha. Sempre que você segue uma
trilha trata-se do caminho de outra pessoa. Temos aqui a ideia medieval do
coração gentil, de que antes da consumação carnal é preciso haver a comunhão
espiritual.
Em
Jung encontramos uma psicologia do amor ao pensarmos na problemática da Anima
do homem e do Animus na mulher. A masculinidade consciente do homem é
compensada pelo feminino em seu inconsciente e na mulher acontece o inverso. A
masculinidade é regida pelo princípio do logos, que é discriminador e analítico
e a tudo separa e divide, e, em termos psicológicos, masculinidade é saber o
que se quer e como alcançar isso. O problema amoroso do homem, representado
pela anima, uma imagem coletiva do feminino e da mulher que permite a ele se
relacionar com as mulheres, é o de saber o que ele realmente sente. Nas
mulheres, cuja consciência é regida pelo grande daimon Eros, que a tudo une e
conecta, o problema que o seu espírito, o animus lhe propõe é: o que você
realmente pensa? Qual é a sua cosmovisão? A anima, quando personificada envia
ao homem humores terríveis, e o animus, quando personificado produz opiniões
insensatas e bombásticas de tipo salvacionista que isolam a mulher dos objetos
realmente amados num “casulo de opiniões”. Quando as projeções criadas por
esses dois demônios são recolhidas, e eles não mais se interpõem entre os
homens e mulheres e sua relação com o mundo, passam a agir como daimons,
mensageiros divinos, pois a real função da anima é ser uma função de relação
entre a consciência e o inconsciente e a do animus ser uma função de
diferenciação entre a consciência e o inconsciente. Nada disso pode ser
alcançado sem o fascínio e os problemas causados pelos dois daimons, que nos
lançam a vida, a anima é o arquétipo da vida e faz o homem sentir a plenitude
de sua vida como uma aventura, e nos enredam nas relações que nos libertarão
desse mesmo fascínio e nos abrirão ao verdadeiro amor.
Para
Jung, e isso foi algo que demorei quase duas décadas para entender, O amor é
diferente do fascínio, ele é uma atividade, é algo consciente, depende de
termos consciência de nossos verdadeiros sentimentos. O fascínio é algo que
acontece devido ao inconsciente, e só terar um valor se eu puder extrair
conscientemente disso o ouro alquímico, ou seja, descobrir por trás desse
fascínio o pedaço da minha alma que se afastou de mim e foi passear pelo mundo,
como a sombra de Peter Pan, não é à toa que quem costura ela de volta no lugar
é Wendy. Se eu não consigo ampliar a minha consciência o fascínio não passa de
um logro moral, já amor é algo que depende da consciência, de termos a posse de
nossos sentimentos, e como vocês sabem, nada perturba mais o pensamento do que
os sentimentos, e nada perturba mais os sentimentos do que o pensar. Todavia o
amor, consciente e não mero fascínio, deve suportar esses opostos sem contradição
e agir com o intelecto e a compaixão, para cavalgar as ondas de um
relacionamento amoroso genuíno. Sendo uma atividade, algo consciente, o amor
pode ser cultivado, crescer e se modificar, florescer.
Todas
essas belas descrições de homens tão sábios falham sempre me capturar a
essência do amor, nenhuma descrição intelectual e meramente racional poderia,
pois o amor é razão e desrazão em igual medida. No fundo, a compaixão é um
guia, especialmente quando entendemos que aquilo que é um valor para nós, pode
ser um desvalor para o outro, que somos diversos, e que amar, amar
genuinamente, pode se manifestar de diversas formas criativas e jamais pode ser
confinado as experiências passadas que tivemos, as ideias que formamos sobre
ele, aquilo que nos diz a sociedade, a igreja e a família sobre o amor. O amor
é um menino de asas, brincalhão, irrequieto e que não tem a menor consideração
pelo que os mortais acham justo ou correto, suas setas envenenadas uma vez
lançadas são irrevogáveis.
Ótima reflexão!! Salve bad rs!! Obrigado por compartilhar. Parabéns!
ResponderExcluira bad tem que servir para alguma coisa...
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