De
vez em quando me permito escrever algo mais pessoal, e hoje resolvi escrever
sobre os motivos que me levam a escrever. Certamente há algo de paradoxal em
minhas motivações para a escrita, pois a despeito de possuir um enamoramento
com as palavras também sinto um certo recato. Ao escrever, ao dispor as
palavras sobre o papel, seja sobre que tema esteja tratando, do mais objetivo
dos temas ao mais fatalmente subjetivo, tenho sempre a sensação de que ali se
encontra a minha alma pelo avesso. Minhas entranhas expostas de maneira obscena para a observação de estranhos. Mas esse sentimento é derrotado por outros mais
poderosos que me compelem a continuar arrumando as palavras com esmero ao
dispô-las sobre o papel.
O
principal e mais poderoso motivo que me leva a sempre escrever é que sei que é
isso que deus quer de mim. Escrever é o meu caminho de bem-aventurança, algo
que eu preciso fazer, algo que torna meu destino e minha liberdade idênticos.
Só sou livre quando compelido a escrever. Mas há uma motivação um pouco mais
prosaica. Talvez eu possa traduzi-la melhor através de um exemplo concreto.
Estava hoje assistindo a uma aula enfadonha de um professor medíocre, na
realidade procurava me abster o mais possível da tal aula, e lia o livro de
William James “varieties of religious
experience” clássico escrito em 1902. A letra de James possui em mim
efeitos os mais estranhos. Primeiro há uma sensação de alegria e deleite nos
píncaros de intelectualidade e brilhantismo que enxergo em sua obra, há em sua
erudição algo que me intoxica, como um vinho forte e me remete de maneira
poderosa ao reino das ideias, me exila do meu corpo e me coloca a refletir
furiosamente como nenhum outro autor consegue fazer, nem mesmo Jung.
Enquanto
estava eu preso de meu enlevo intelectual e estético, a aula prosseguia, em sua
monotonia e mediocridade, e o enlevo deu lugar, como fatalmente acontece, a um
profundo sentimento de solidão. Ao comparar a minha leitura as tolices sendo
proferidas em sala de aula, pude perceber como a ciência e a cultura,
especialmente a Psicologia, podem caminhar a passos largos para trás. Como
nossa consciência é efêmera e se prende as platitudes do momento que não fazem
jus aquilo que homens de vulto como James pensaram décadas atrás, mas o fetiche
pelo novo faz com que sejam repetidas fórmulas vazias e a tara moderna pela
metafísica da matéria de maneira irrefletida e medíocre produz obviedades.
Nesse
momento, meu Cáucaso Particular, sinto-me profundamente isolado, cercado de
gentes, mas sozinho. A terra das ideias e pensamentos é uma terra bela, mas
árida, onde poucos se aventuram a penetrar em seus locais mais recônditos e o viajante
incauto está fatalmente caminhando sozinho. Muito poucos são capazes de
apreciar o valor da obra de William James, menos ainda são capazes de
compreender suas ideias, e um número ainda mais reduzido de fazer algo com
elas, como, por exemplo, Jung fez. Não sei se posso me contar entre esses
poucos, elite de seres quase fantasmagóricos e ensimesmados. As ideias e
imagens que habitam o meu peito, meus sonhos e visões, meus estudos e leituras
marcam as minhas entranhas, e queimam a ferro a minha alma, de tal sorte que
essas escarificações me constituem e me distinguem de modos que eu mesmo não
posso compreender totalmente. O alimento da minha alma, eucaristia que tomo com
até mais ardor do que o alimento de meu corpo me separa do convívio dos meus
semelhantes. E toda solidão é triste, pois há em nós o poder do instinto
gregário a querer unir e não separar, almejar ser igual e não diferente, a
querer concordar e não ser ovelha negra, mas ovelha alva a balir docilmente
como as demais.
Eu
tendo ao exagero, mesmo que haja um prazer perverso na massificação, que atrai
pela via fácil do esquecimento de si em prol da ficção de um estado todo
poderoso, ou de qualquer outra ficção que reduza o homem a mera recorrência
estatística, não é disso que eu falo. Mas da compreensão muda e calorosa que há
entre os homens simples. Certa feita assisti a um filme em que o protagonista
se descrevia como “a simple man with
simple thoughts”, sua maior realização tinha sido no reino do sentimento,
pois amara com todo o seu ser e todo o seu coração. Eu invejei esse personagem!
Como gostaria de juntar meus pedaços contraditórios em um todo simples, os
muitos eus em algo coerente e
simples.
Há
nesse desejo pela compreensão daquilo que me vai a alma, da sensação, mesmo que
efêmera, de que não estou só pois há algo de mim que pode ser comunicado, que
me fascina na escrita. Mesmo a fala não possui esse encanto, nela o corpo
confunde e obscurece, nas palavras escritas a alma pode se revelar sem maiores
pudores e de maneira mais clara e assim suas cicatrizes ficam a mostra. Assim,
mesmo sendo uma labuta solitária a escrita se destina a alguma alma irmã, que
de alguma maneira misteriosa terá um certo enlevo com minhas palavras e sentirá
algo do arrebatamento que sinto ao ler aquilo que James escreveu já há mais de
cem anos. Existe a esperança, nem que seja ilusória, de que por um momento que
seja, estarei na companhia de alguém, mesmo que seja apenas um fragmento de
minha alma que viaja junto das letras a distâncias que não posso nem mesmo
começar a imaginar. As distancias que separam duas almas em muito superam as
incríveis cifras da astronomia, mesmo para alguém que está de pé ao seu lado.
Por
esse, é outros tantos motivos, alguns desconhecidos mesmo para mim, pois existem
distâncias mesmo no interior de minha própria alma, territórios que quedam
ainda inexplorados, que escrevo. Escrevo pelo motivo prosaico de que sou um
homem solitário e não tenho qualquer outro meio de comunicar minha solidão aos
meus semelhantes. Minha fala me trai, há sempre um sorriso, um comentário
jocoso, uma tirada espirituosa a ludibriar aqueles que me escutam. Meu corpo me
trai, pois há sempre um gesto altivo, um olhar distante, uma postura
desempenada e presunçosa que revela apenas a superfície e esconde as
profundezas. Apenas a letra, quando estou nesse ofício longe de tudo e todos,
me é fiel, fidelíssima. Ela revela mais do que esconde, nela meu rosto está
oculto, minha voz é muda e meu sorriso uma quimera! Apenas a alma se revela em
sua melancolia e solidão. Mas não é apenas isso que se revela, ai de mim se eu
fosse apenas isso. De meus passeios eu trago pensamentos e belezas, imagens
grandiloquentes, tudo aquilo que me transforma e me faz ser quem eu sou, que
mesmo que me separe, que me isole, precisa ser comunicado de alguma forma.
Triste
sina essa, estar junto de meus semelhantes apenas quando deles estou separado. E
que incrível paradoxo, tantas são as barreiras que nos separam quando seus
olhos fitam minhas palavras e através desse prisma a minha alma, mas à distância
nos une. Há aqui um mistério e uma maravilha que vale a pena todo sacrifício. Pode
parecer que para mim é penoso escrever, mas essa impressão é falsa, é algo que
liberta dos grilhões da minha prisão, tal qual Héracles a partir as correntes
de Prometeu. Há algo de divino que se insinua no mundo mortal apenas através
das letras, afinal elas concedem imortalidade. Há muito o corpo de William
James virou pó, mas há algo de sua alma, de sua grandiosidade, humor e inteligência
que vive e inspira vida em mim através das letras que ele lidamente dispôs
sobre o papel...
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