sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Ip Man 葉問 (O Grande Mestre)


O filme Ip Man (o grande mestre no título em português), estrelado por Donnie Yen (甄子丹) no papel de Ip Man em uma atuação digna de nota, dirigido por Wilson Yip e com as cenas de lutas coreografadas pelo renomado Sammo Hung (洪金寶), possibilita várias reflexões interessantes sob diferentes óticas. O Filme se baseia na vida do mestre de Wing Chun (詠春) Ip man, que adquiriu grande renome, principalmente, por ter sido o professor do legendário Bruce Lee. A vida de Ip Man (葉問), num sentido biográfico mais restrito pouco importa aqui, os fatos narrados no filme pouco têm a ver com a biografia de Ip Man. É certo que toda a biografia, todo esforço de memória, é um ficcionamento, que a coisa passada res gestae, é impossível e está para sempre perdida, mas esse filme em particular não representa um esforço de reconstituir a vida de Ip Man, ao contrário disso o filme representa um esforço, talvez deliberado, de constituir uma lenda.

É esse aspecto que me chama a atenção e que pretendo analisar. Nesse sentido, a película possui caráter monumental, para utilizar a expressão de Jacques Le Gof, ele procura se impor a memória coletiva. A vida de Ip Man, nem de longe foi tão extraordinária quanto à do personagem do filme, o que não significa que o filme seja mera mistificação ou falsificação, esse é o ponto interessante. Trata-se de forjar uma memória, tanto para a China, quanto para o Wing Chun, arte marcial que se tornou popular em todo o mundo graças a Bruce Lee. História e memória estão interligadas de maneiras sutis, e mais ainda, ambas estão inextrincavelmente ligadas à identidade, ou a percepção que temos dela. Certamente, para a maioria das pessoas ambas, história e memória se confundem, ou, ao menos, suas fronteiras são nebulosas.

Alguns aspectos do filme chamam a atenção de imediato, principalmente o esforço de Donnie Yen. Nas cenas em que ele aparece treinando no Muk Yang Jong (木人桩), o boneco de madeira utilizado nos treinos de Wing Chun, ele o faz de uma maneira quase idêntica a que Ip Man fazia (ele deixou para os filhos registros em vídeo de suas técnicas), a postura corporal do ator, sua maneira de olhar, sorrir, até mesmo a maneira como caminha representam uma tentativa de mímica dos modos de Ip Man que impressionam pela verossimilhança. Donnie Yen foi treinado para o filme pelo filho de Ip Man, o mestre Ip Chun, e as técnicas mostradas no filme também são extremamente precisas e similares a realidade do Wing Chun. É certo que, para que o filme seja divertido, existe infalivelmente uma “liberdade poética marcial” que torna as lutas mais empolgantes e belas do que seriam na vida real. Essa característica do exagero é um fator crucial para o que parece ser o intuito do filme. Nas lutas o Wing Chun mantém sua peculiaridade de economia de movimentos, precisão, ataques em linha reta e uso dos braços como principais armas, mas mesmo assim, esteticamente, as lutas são chamativas, bonitas e, acima de tudo, empolgantes. O elemento da arte marcial é aquilo que diferencia Ip Man, tanto no seu sentido mais grosseiro das lutas e, nesse aspecto a sensibilidade do diretor captou algo que normalmente não está presente em filmes do gênero, quanto o aspecto moral e espiritual do Kung Fu. Ip Man possui qualidades morais invejáveis, é paciente, quase estoico, comporta-se sempre de maneira polida e contida, um gentleman, e sua postura não muda diante da adversidade, ao contrário, a adversidade acentua essas características.

O filme se inicia com Ip Man treinando num boneco de madeira já desgastado pelo uso constante, o olhar atento reconhece a mensagem de que aquele boneco surrado pelo uso representa anos de dedicação e treinos constantes que são fator indispensável para moldar o corpo e o caráter de um mestre de Kung Fu. Ip Man é elevado a alturas sobre humanas na película, mas ao mesmo tempo, é sua humanidade que salta aos olhos. Ele é apresentado como um dandy ocioso, com uma bela e espaçosa casa, empregados, roupas bonitas e que se dedica integralmente a família e a sua paixão, o Kung Fu. Os modos de Ip Man são discretos, mas aristocráticos, ele fala pouco, não se exibe e é extremamente polido. Logo no início do filme um novo mestre que acabara de se instalar em Fo Sham (cidade rica, populosa, e Meca das artes marciais) o convida para um duelo amistoso. Essa passagem serve para marcar a impecabilidade da cortesia marcial de Ip Man, o que é um dos aspectos que servem para dar a ele distinção, num sentido radical da palavra.

Os dois jantam juntos, em seguida tomam chá e comem bolo, Ip Man lhe oferece um cigarro. Esse é um ponto interessante, vemos um esforço deliberado para gestar uma lenda, mas nosso herói, como sua contraparte histórica, fumava. Escapando do discurso do Politicamente correto que parece dominar o horizonte intelectual de Holywood, o herói chinês fuma. Isso marca um contraste dos mais interessantes, pois atualmente na China é muito comum que as pessoas fumem e, como já foi no passado na América, fumar é algo associado à masculinidade e é até mesmo falta de polidez recusar um cigarro oferecido. Depois das amenidades ambos lutam. Obviamente Ip Man vence de maneira convincente, numa luta “sombra” em que nenhum deles se machuca. Ao final, ambos se cumprimentam cordialmente e o outro mestre, derrotado, pede descrição ao mestre Ip Man sobre sua luta a portas fechadas.

O caráter quase sobre-humano da habilidade marcial de Ip Man, algo crucial para a lenda, precisa ser mostrado de maneira sutil, visto o Wing Chun não possuir movimentos acrobáticos e impressionantes comuns e outras artes marciais chinesas. Após a luta a portas fechadas, segue-se um problema, pois alguém presenciou o duelo e comentou pela cidade. Durante a confusão que se segue (envolvendo o tal mestre, Ip Man e várias outras pessoas) o delegado saca uma arma de fogo para intimidar os artistas marciais. Ip Man, em uma reação instantânea agarra a mão do policial e bloqueia o gatilho com o seu polegar e em seguida remove com um golpe dos dedos indicador e médio o tambor, que cai espalhando a munição.

Ainda na primeira parte do filme, um grupo de lutadores do Norte – com estilos de lutas diferentes dos do sul – resolvem desafiar os mestres de Fo Shan, seu líder Jim derrota a todos e cabe a Ip Man resgatar a honra das artes marciais da cidade. Nesse momento vemos um elemento típico de inúmeras histórias de mestres espadachins tanto da china quanto do Japão, e que está presente no filme “O Tigre e o Dragão”, a “espada secreta”. Na luta que se segue Jim usa um sabre e Ip Man se defende utilizando uma peça de decoração, um fino bambu decorado com penas como arma, facilmente sobrepujando Jim. Outro elemento clássico das histórias de mestres das lutas surge aqui, com um golpe de estocada Ip Man atinge um ponto de pressão debaixo do braço de Jim e o paralisa (o primeiro ponto do meridiano do coração Ji Quan) – esse tipo de técnica inexiste no Wing Chun público – forçando-o a utilizar a outra mão para manejar o pesado sabre. Ao derrotar os arruaceiros ele se consagra como o mais respeitado mestre de Fo Shan.

Esses elementos presentes nas histórias tradicionais de lendas das artes marciais reforçam a aura mítica de Ip Man, ele domina as técnicas que apenas os grandes mestres das histórias lendárias dominam, é um mestre imbatível, ao mesmo tempo, modesto, polido e moralmente impecável. Estamos aqui diante de um exemplo hodierno de Evemerismo? Vemos o surgimento de um mito que no fundo não passa do exagero sobre a vida de um personagem histórico “real”? Essa teoria a cerca das lendas e mitos existe desde o século IV a.C, e reduz os mitos a gestas de reis do passado que com o tempo adquiriram a estatura de deuses com poderes sobre-humanos. O Grande Marco Túlio Cícero ao advogar a favor do Evemerismo chega mesmo a pensar nos deuses como Alegoria, algo que numa visada mais rápida poderíamos enxergar no nosso filme. Não creio que se trate disso aqui, principalmente por que não creio na hipótese do Evemerismo e da Alegoria, mesmo que homens como Voltaire e Hume tenham acreditado nela. Com base na moderna psicologia acredito em algo bem diverso, e creio que o filme Ip Man, exemplifique isso muito bem.

J. R. R. Tolkien em fascinante ensaio intitulado “On Fairy-stories”, contesta de maneira extremamente interessante a hipótese que apontei anteriormente, e sua argumentação, que não tem relação direta com a moderna psicologia, guarda tantas e tais similaridades com o argumento psicológico que mais uma vez me leva a pensar que a Psicologia de Jung é desperdiçada com os psicólogos. Sem maiores divagações vamos ao interessante argumento de Tolkien. Em seu ensaio ele procura, inter alia, responder a três perguntas: o que são contos de fadas (fairy-stories, numa tradução mais precisa histórias de fadas)? Qual a sua origem? Qual a sua função. No que concerne a segunda pergunta, Tolkien afirma que se perguntar pela origem dessas história equivaleria a se perguntar pela origem da linguagem ou pela origem da mente, e refaz a pergunta se perguntando pela origem dos elementos de “fadas” das histórias. Ele então critica de maneira elegante o esforço dos folcloristas de agrupar os temas das histórias e afirmar que se tratam da mesma história, pois o que é mais importante e bem mais difícil de captar é o seu colorido próprio, atmosfera, os detalhes individuais e inclassificáveis da história, justamente aquilo que dá vida aos “ossos” da trama. O mais complicado e fascinante é perceber o que essas histórias são, o que tornaram para nós, e que valores o longo processo alquímico do tempo produziu nelas. Nesse ponto surge a metáfora que considero fundamental para compreender o processo que se passa em nosso filme. Utilizando as palavras de Dansen, Tolkien diz (traduzo) “Nós devemos nos satisfazer com a sopa que foi posta diante de nós, e não desejar ver os ossos da vaca da qual foi fervida”.

Tolkien explica sua alegoria, que nós será tão útil, pela sopa ele compreende a história como nos foi servida pelo seu autor ou contador. Pelos ossos suas fontes ou seus materiais. Nossa “sopa” é o filme Ip Man, tal qual ele nos foi apresentado por seus idealizadores. Ainda ao se perguntar pelas “origens” e a relação entre a mitologia mais elevada e os contos de fadas, Mächen, Tolkien faz uma crítica a Alegoria (os deuses olímpicos não passariam de fatos metereológicos) e ao Evemerismo que vai levar ao ponto que me interessa chegar, imagine que o caldeirão das histórias sempre esteve fervendo e sempre recebendo algum pequeno ingrediente novo. Tolkien usa um exemplo dos mais interessantes, se alguém contar uma história interessante sobre o arcebispo de Cantebury escorregando numa casca de banana e caindo comicamente  ninguém iria de imediato desacreditar essa história, nenhum historiador diria se tratar de uma farsa. Mas se a história contivesse a menção a um anjo ou fada que avisou ao arcebispo sobre a casca de banana ela seria rejeitada, ou se descobrisse que foi contada num período posterior a vida do tal clérigo. Os historiadores diriam, afirma Tolkien, que a “história da casca de banana” “become attached to the Archbishop”, o que Tolkien afirma é uma inflexão sutil desse ponto de vista “I Think it would be nearer the truth to say that the Archbishop became attached to the banana skin”. O arcebispo foi colocado no pote de sopa, eles são apenas pequenos novos ingredientes adicionados à sopa que ferve há milênios, desde a aurora da humanidade, desde a invenção da linguagem ou ao surgimento da mente.

Parece claramente óbvio para mim que Arthur, uma vez histórico (mas talvez alguém sem grande importância), também foi colocado no pote. Ali ele foi cozinhado por um longo tempo, junto de muitas outras figuras mais antigas e maquinações, de mitologia e de Fäerie, e mesmo alguns outros ossos perdidos de história (...), até que ele emergiu como o rei de Fäerie. (Tolkien, 2008, p.342, tradução minha).
O elemento do “conto de fadas” do mito não se eleva ou decai, mas está ali sempre presente, no “Caldeirão de Histórias”, apenas esperando que alguma grande figura dos mitos ou da história caia no ensopado que cozinha em fogo brando. Creio que a opinião de Tolkien pode ser uma ferramenta útil para nós, Ip Man foi jogado no Caldeirão de Histórias e emergiu como o herói quase imbatível que vemos no filme. Alguém poderia objetar, e com razão, que quem quer que tenha escrito o roteiro ou idealizado a película, o fez com um esforço deliberado de razão. Nesse ponto convém lembrar, que se levamos a sério a hipótese de um inconsciente psíquico como um dado irracional existencial inalienável, devemos igualmente nos recordar de que o inconsciente é anterior, simultâneo e o posterior a consciência. E é a essa simultaneidade que devemos possibilidade de perceber que mesmo nesse filme, há um pano de fundo psíquico inexpresso. Além disso, a corda que ele faz vibrar em nós, e que é algo que apenas a fantasia pode fazer, já é um testemunho desse pano de fundo inexpresso e seu poder sobre nós. A digressão foi longa, mas necessária, voltemos ao filme e apenas após nos determos mais demoradamente sobre ele, trarei a baila de maneira mais detalhada à hipótese psicológica.

A segunda parte do filme mostra uma Fo Shan desolada pela invasão japonesa, antes rica e pujante, ela se torna cinzenta, pobre e desolada. Ip Man perde suas posses e se vê obrigado a, pela primeira vez em sua vida, a ganhar o próprio sustento com o suor de seu rosto. Coisa que faz sem se lamuriar, da maneira estoica com que agia mesmo nos tempos de bonança. Aqui surgem os japoneses como os vilões odiosos, encarnação do mal, no papel que tradicionalmente é ocupado pelos nazistas nos filmes de guerra de Holywood. A indústria cinematográfica Americana rapidamente esqueceu que os japoneses foram aliados dos nazistas, que nutriam teorias raciais similares as dos alemães e que cometeram inomináveis atrocidades contra os chineses. Ora, os chineses logo se tornaram comunistas, e os japoneses no pós-guerra aderiram docilmente ao modelo capitalista Norte-Americano, seus pecados deviam ser esquecidos, afinal o inimigo na guerra fria eram os “vermelhos” e ideologicamente eles deveriam ser atacados e difamados (como se vê nos filmes de James Bond), Japoneses Capitalistas não podiam mais ser retratados como foram pela propaganda Ianque nos desenhos originais (incrivelmente racistas) do marinheiro Popeye. Melhor cultivar a imagem valorosa e honrada do guerreiro samurai e treinar Karate e Judo.

O aspecto de identidade nacional surge de maneira dramática na cena em que Ip Man vai até um dojo dos japoneses, onde eles pagavam chineses versados em Kung Fu para lutar com praticantes de Karate (lembremos que um dos professores de Funakoshi, Itosu criou o Katas da série Heian para poder popularizar o Karate e ajudar no esforço do militarismo nipônico). O pagamento consistia numa sacola de arroz. O mestre que no começo do filme duelou de maneira amistosa com Ip Man é morto com um tiro pelas costas por um oficial japonês (o japonês falado por eles é rude e áspero, quase de baixo calão, mesmo o falado pelos oficiais), Ip Man pede para entrar na arena e luta com dez japoneses ao mesmo tempo, derrotando a todos. Ao sair ele não leva sua recompensa, dez sacos de arroz, apenas pega o saco de arroz ensanguentado que pertencera ao mestre caído. Ao ser questionado sobre sue nome ele responde “sou apenas um chinês”. Nesse momento Ip Man é mais do que um homem, ele é a encarnação da vontade inquebrantável de toda uma nação, posta de joelhos, mas ainda orgulhosa.

Ip Man finalmente começa a ensinar seu Kung Fu não premido pela necessidade (pecuniária ou de qualquer outra sorte), mas ao reencotrar seu “sócio” que se vê acossado por bandidos. Para defender sua fábrica ele ensina aos empregados o seu método de Kung Fu, e depois com a ajuda de seus novos pupilos derrota os bandidos. Ao final, como era de se esperar em um filme como esse, ele se confronta com o general japonês responsável pela invasão, num duelo de artes marciais. China e Japão se enfrentam, duas nações personificadas em suas respectivas artes marciais. Ip Man vence, e o filme termina com o herói deixando Fo Shan para escapar da perseguição do exército japonês. Pouco importa se essa luta realmente aconteceu, como vimos, Ip Man foi acrescentado ao Caldeirão de Histórias e dali emerge não mais como o pacato professor de Kung Fu de Bruce Lee, mas como herói que representa a própria China, seus valores e sua identidade.

A perspectiva de Tolkien se assemelha, em linguagem poética, a perspectiva psicológica apresentada por Jung em sua teorização sobre os arquétipos.

O homem primitivo não se interessa pelas explicações objetivas do óbvio, mas, por outro lado, tem uma necessidade imperativa, ou melhor, sua alma inconsciente é impelida irresistivelmente a assimilar toda experiência externa sensorial a acontecimentos anímicos. Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação exterior deve corresponder – para ele – a um acontecimento anímico (...) Todos os acontecimentos mitologizados da natureza (...) não são de modo algum alegorias destas experiências objetivas, mas sim, expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através de projeção – isto é, espelhadas nos fenômenos da natureza. (Jung, 2003, pp.17,18).

Ip Man, ao ser jogado no “Caldeirão de Histórias”, passa a importar pouco como personalidade histórica, sua imagem é, assim como os fenômenos naturais foram um dia, assimilada pela alma inconsciente. Diferente de um conto de fadas, onde os personagens são extremamente caricatos, o Ip Man do filme possui nuances humanas, uma personalidade que torna a identificação com ele por parte do espectador ainda mais poderosa. A situação apresentada no filme é uma situação arquetípica, no sentido de ser uma experiência coletiva, a luta pela sobrevivência em situação extrema, tanto no que diz respeito à sobrevivência individual quanto à sobrevivência de uma cultura e de uma nação. Mesmo a situação de guerra é algo que igualmente constela imagens arquetípicas naqueles que estão envolvidos. Não à toa existem deuses da guerra e entre os primitivos existiam tantos rituais associados a guerra e ao ethos guerreiro. Ip Man atravessa essas situações adversas de maneira exemplar, e devemos tomar essa palavra em sua radicalidade, pois o herói é um modelo exemplar, algo que nos ajuda a moldar nossa vida e nosso comportamento.

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