A
animação Hotel Transylvania, dirigida por Genndy Tartakovsky (o mesmo de outras
animações como: the Powerpuff girls, Samurai Jack, Dexter Laboratory, e
a primeira versão animada as Clone Wars), traz de maneira sutil uma mensagem
ideológica das mais interessantes de ser pensada. A animação lembra, e
provavelmente se inspira, em a Família Monstro e a Família Adams, bem como a
animação japonesa Don Drácula. Nesses seriados antigos os monstros apareciam
como diferentes (no caso da família monstro a analogia se tornava ainda mais
clara: além de monstros eram imigrantes estrangeiros), eles eram diferentes,
pois possuíam costumes e hábitos diferentes, comiam comidas estranhas e
repugnantes à sensibilidade americana, e seus valores (principalmente estéticos)
eram quase opostos (sendo o feio bonito e vice-versa). A animação de
Tartakovsky parte de premissa similar, os monstros são “outros”, eles possuem
aparência, hábitos e uma cultura diversa da dos humanos. Há um disfarce aqui, a
história parece ser, ou tenta ser, uma história de amor, mas seu tema principal
é a xenofobia.
A
história de amor entre a jovem filha de Drácula, Mavis, e o humano que surge de
maneira inesperada em meio a sua festa de 118 anos não é o mote principal da
história, e eles não são os protagonistas, mas sim Drácula. Não há um grande
conflito aqui, eles imediatamente se apaixonam, a primeira vista, e seu amor
vai apenas crescendo e se confirmando à medida que se conhecem melhor. O conflito
se dá entre Drácula e o jovem humano chamado Jonathan. Drácula teme os humanos
e não sem razão, eles incendiaram a sua casa e mataram a sua esposa, devido a
esses fatos trágicos ele construiu um hotel inexpugnável, onde nenhum humano
jamais se atreveria a colocar os pés. Assim Mavis estaria para sempre protegida
do preconceito que os humanos nutrem contra os monstros e sua capacidade para a
destruição. Certamente as imagens de preconceito e xenofobia poderiam ser
comparadas a várias possibilidades, mas tendo em vista que o desenho foi
produzido nos Estados Unidos, e nosso atual contexto histórico de uma disputa
pela hegemonia do petróleo no Oriente Médio e a Jihad que surge como uma das consequências
disso, eu prefiro sugerir que as imagens se referem ideologicamente a essa
situação. Que sejam os atritos, preconceitos e mal-entendidos na relação da
America Cristã, liberal e ocidental, com o Oriente Médio, Muçulmano e oriental.
Nesse
sentido, o filme traz o ponto de vista desses “outros”, os monstros e como eles
no veem. Eu sugiro aqui que a analogia que subjaz as imagens do filme dizem
respeito aos monstros como esse outro tão incompreensível o mundo muçulmano, e
nós, os ocidentais (humanos). Quase como chiste, e nisso vemos que a participação
de um dado irracional existencial inalienável sempre logra a nossa consciência racional,
que os humanos incendiaram a destruíram a família e a casa de Drácula. Assim como
os americanos arrasaram o Iraque (apenas para citar um exemplo). Drácula possui
motivos bem reais para temer e odiar os humanos, eles mataram sua esposa e ele
precisa proteger sua filha Mavis. Nesse ponto o filme nos lança a uma dupla
impossibilidade, nós dividimos o mesmo mundo e isso não vai mudar, temos de nos
haver com esses “outros” e nenhum muro é alto o bastante para nos manter
separados. Mas não é apenas de muros que o filme fala. Mavis anseia por ver o
mundo, se afastar da segurança das paredes de pedra erigidas por seu pai e
mesmo a armadura dos mais poderosos Dragões da lenda possuem uma brecha! Drácula
aparentemente consegue lograr Mavis, mas é impossível controlar todas as variáveis
possíveis num mundo tão complexo e o improvável acontece quando um humano
resolve visitar o hotel.
Mavis
é uma jovem mulher e vive um dilema que seria típico das jovens do século XIX
ou XVIII no ocidente, mas que é vivido hodiernamente por muitas mulheres
Mulçumanas. Seus anseios e desejos se chocam com a vontade de seu pai e com as
muralhas que ele erigiu, ela é uma prisioneira de uma situação que já existia
muito antes dela nascer. Há um dado interessante e insidioso no filme, a garota
(Mavis não é uma protagonista nesse filme) é redimida quando seu pai é redimido,
e quem consegue tal feito é o Jovem ocidental Jonathan, ele promove a mudança. Mavis
precisa ser resgatada, é curioso que num tempo de Princesas Fionas e heroínas
como Summer, Mavis precise ser resgatada. Seus esforços fracassam, sozinha ela
está destinada a ser uma vítima de um destino cruel que marca o seu nascimento
como uma vampira num mundo onde os homens temem e odeiam vampiros (e onde vampiros
temem e odeiam os homens).
Um
dos diálogos mais interessantes se dá entre Drácula e Jonathan, o rapaz o bombardeia
com perguntas tentando descobrir se tudo o que já ouvira falar sobre vampiros é
realidade ou mero preconceito, ao perguntar sobre as estacas no coração, se
elas realmente matam um vampiro a resposta é das mais espirituosas “sim, mas
isso mata qualquer coisa”. O diálogo entre os dois ajuda o rapaz a desfazer uma
série de mal-entendidos, mas não há o mesmo interesse da parte de Drácula, ele
só que ser livrar do garoto. Nesse ponto convém analisar Jonathan, ele é
curioso aventureiro e ousado. Drácula é cauteloso e conservador, literalmente
anacrônico, o vampiro vive no passado, incapaz de compreender o presente, preso
a preconceitos e ideias datadas e não mostra interesse por descobrir o presente,
ele não deseja participar da “aventura de nosso tempo”, ele é um fóssil. De Jonathan
parte a iniciativa de perguntar, de dirimir as visões enganosas, ele é um
representante do ocidente, da cultura de relativismo do ocidente, do valor da dúvida,
do valor da ciência e seu poder frente ao dogma. De maneira insidiosa vai
ficando cada vez mais claro o intuito ideológico subjacente ao filme.
Quando
a farsa é revelada, e todos descobrem que o garoto estava fantasiado de
monstro, mas era um humano, ele finalmente parte e deixa Mavis. Há aqui um dado
interessante, Jonathan é mais legal, engraçado e interessante que os monstros,
ele rapidamente se torna o centro das atenções. O jovem é cosmopolita, viajado,
interessante, ele é o novo. Os velhos monstros se encantam por ele, ele os
seduz e fascina com sua espontaneidade. Talvez espontaneidade aqui seja o
ponto, ou como diria Norbert Elias em sua reflexão sobre a Alemanha: informalidade.
Quando do ocaso do antigo regime e a passagem para a aplicação política das ideias
liberais burguesas as sociedades passaram por um crescente processo de
informalidade, em oposição ao formalismo aristocrático. Nesse sentido, como em
vários outros, Jonathan é a encarnação do liberalismo burguês e o “conde”, um fóssil
de um passado aristocrático superado pela democracia e suas infinitas
possibilidades. Mas após descobrirem que Jonathan era humano os monstros passam
a aceitá-lo pelo que ele é e não pelo estereótipo que construíram dos humanos.
O
que leva Drácula a procurar trazer de volta o rapaz de volta é a sua crença no
amor. Mavis e Jonathan tiveram o “zig” uma sensação inefável e incontrolável
que acontece uma vez na vida apenas e liga de maneira poderosa e indestrutível
dois corações. Ao completar 118 anos Mavis recebe um livro escrito por sua mãe
descrevendo o amor que a uniu a seu pai e que esperava que um dia isso
acontecesse com ela também. A mensagem é quase cristã o amor a tudo supera. O amor
é o caminho para unir as pessoas e derrubar barreiras, podemos afirmar que essa
concepção é equivocada? Eu não consigo ser tão pessimista. Mas isso leva a um
dos pontos mais interessantes do filme, em que sua ideologia se revela de
maneira mais clara.
Ajudado
pelos outros monstros Drácula precisa deixar seu “casulo” e encarar o mundo, o
que ele descobre? Os humanos amam os monstros, o medo e preconceito dos
monstros é o que os mantém separados, eles não foram isolados, eles se isolaram.
O mundo ocidental está de braços abertos pronto a receber em seu seio os
muçulmanos, mas eles preferem se isolar. Os Estados Unidos são conhecidos como “melting pot” um lugar onde as culturas se misturam, uma extraordinária experiência
multicultural. Nesse ponto convém salientar uma diferença cultural, a política
externa Norte Americana não pode ser confundida com sua cultura, que de fato é
multicultural e recebeu e adotou desde irlandeses e poloneses até, mais
recentemente (e ainda com divergências e embates) mexicanos e outros latinos. Podemos
considerar que o ocidente está de braços abertos esperando pelos muçulmanos? Sim,
desde que eles se tornem ocidentais, por isso a América é o “melting pot”. O liberalismo e o relativismo ocidental têm espaço para os
mulçumanos, mas não para o seu dogmatismo e falta de relativismo. Desde que
eles deixem de ser quem são nós os aceitamos.
Nesse
ponto é preciso uma análise mais detalhada do fenômeno religioso que é um dos
pontos centrais desse embate entre dois mundos. O ocidente se caracteriza,
entre outras coisas, pelo depauperamento simbólico do dogma cristão. Para muitos
de nós as majestosas imagens da tradição judaico-cristã já não possuem mais
força, não alimentam de vida e sentido a nossa alma. Um símbolo, segundo Jung, é
sempre a melhor expressão ou formula possível de um fato relativamente
desconhecido, mas cuja existência é postulada. Enquanto um símbolo for vivo ele
é a melhor expressão de alguma coisa, enquanto for vivo ele é cheio de
significado, mas uma vez extraído ou brotado dele o sentido, ou seja,
encontrada a expressão que formula melhor a coisa pressentida o símbolo está
morto, ou possui apenas sentido histórico. Todas as imagens simbólicas passam
por esse processo, um dos sintomas do depauperamento do dogma cristão foi a
Reforma Protestante que o despedaçou de sua unidade milenar. Desse processo, ou
em virtude dele, surgiu, por exemplo, a nossa moderna psicologia. Mas isso nos
jogou “em queda livre em direção ao futuro” e a todos os problemas que isso
acarreta.
Eu
me atrevo a sugerir, mas é preciso mais estudos, que o símbolo muçulmano está prestes
a passar por fenômeno similar, pois todo fanatismo é sintoma de dúvida
interior. O processo que estancou no século XIII, quando Aristóteles foi
relegado pelos sábios do Islã que o vinham estudando, parece-me estar
retornando novamente à tona na consciência Islâmica, e o choque de culturas
acaba tornando inevitável algum grau de relativização. Valores supremos do
liberalismo burguês como a liberdade de expressão, ou os direitos individuais,
tidos como naturais, se sujeitam no Islã as leis sagradas e reveladas, a
Sharia. Campbell apontava que uma das quatro funções do mito é a função sociológica,
a de dar respaldo a uma ordem moral específica, a ordem da sociedade da qual
surgiu essa mitologia. No ocidente esse papel ainda é desempenhado pela religião,
mas de maneira mais discreta e em larga medida foi tomado dela pelo direito,
pela filosofia e a política. Numa sociedade tradicional as leis não são
relativas, elas são absolutas, foram criadas por deus e obedecem a ditames cósmicos
assim como o dia a e noite. Elas não foram criadas pelos homens, mas reveladas
e sua verdade é inconteste. Temos aqui um profundo impasse.
Assim
como a América não deve ser tomada como uma totalidade monolítica, o Islã também
não pode ser reduzido ao Islã mais radical, mas precisamos perceber que as ações
ocidentalizantes tomadas pelas grandes nações ocidentais fortalecem ainda mais
esse aspecto raivoso e radical do Islã. Tudo isso gera terríveis mal-entendidos, tive recentemente uma conversa longa com um amigo alemão, Timo, e
pude perceber que nossa consciência tende a enxergar a religião apenas em seus
desdobramentos mais recentes e mais negativos, falar em religião é quase sinônimo
de falar em má-consciência ou radicalismo, o que é um erro. Jung distinguia religião de confissão, e o que normalmente se critica é o que Jung denominou de
confissão. Nas confissões o elemento
genuinamente religioso que é a relação viva e o confronto imediato com o ponto
de referência extramundano, torna-se absolutamente secundário. Pertencer a uma
confissão nem sempre implica religiosidade, mas principalmente um dado social
que nada pode acrescentar a estruturação do indivíduo. O símbolo religioso genuíno
é para o indivíduo contrapeso a massificação, e não algo desprezível.
Em
meio a todos esses preconceitos e visões míopes, Jonathan fica com Mavis e a
liberta de sua prisão, com o consentimento de seu pai. Não há vilões no filme,
o que é interessante, e a ampliação de horizontes representada por Jonathan
pode se concretizar de uma maneira não violenta, dialogada, sem embates
realmente intensos entre o novo e o velho. O amor tudo une e tudo supera. A despeito
da ideologia insidiosa da película, creio que não pode haver caminho de compreensão
mútua que não passe pelo coração, há um dado irracional em ação em todo slogan
e preconceito que media essa dolorosa relação de conflitos entre dois mundos e
apelar apenas à razão para solucionar
tais conflitos é um desejo quimérico.
Beleza de crítica a respeito desta maravilhosa animação. Até agora a melhor que já vi, Heráclito.
ResponderExcluirBem, tá meio tarde agora pra eu fazer algumas perguntas a respeito deste desenho (descobri o seu site numa pesquisa pelo google agora beirando a meia-noite), contudo gostaria depois de comentar alguns pontos contigo que fiquei em dúvida (se não se importa, é claro).
Eu tenho visto algumas críticas negativas a respeito de "Hotel Transilvânia", contudo acho injustas perante a esta carismática e envolvente animação
Um abraço Heráclito e novamente quero elogiá-lo por essa boa crítica.
Não me importo não, pode comentar ou debater sempre que quiser, esse é um dos objetivos do blog
ExcluirSaudações Heráclito, Como vai?
ResponderExcluirAnimação fantástica! Simplesmente encantadora que vale cada minuto a ser assistido
O desenho possui uma fotografia absolutamente maravilhosa e a história contém uma boa mensagem que remete a muitas coisas como: o conflito entre gerações, o respeito pelas diferenças, o valor da diversidade, a tolerância, a superação do preconceito, o conservadorismo, o moderno, o medo, o destemor, o sacrifício, a paixão e por aí vai! (Há uma verdadeira riqueza de conceitos embutidos)
A dinâmica da história apresenta personagens divertidíssimos e um destaque é o incomum romance entre um casal bem lindinho, Mavis e Jonathan (é um "Tcham" que marca. He he he he!!!)
Ah, claro! humor é o que não falta também. Há momentos hilários que garantem muita diversão
Acima de tudo acho que a principal mensagem é sobre o amor que transforma, tornando a vida melhor e mais feliz (nem que para isso seja necessário um grande sacrifício, como o Drácula andar à luz do dia para garantir a felicidade e o amor da pequena Mavis por Jonathan).
Particularmente, nunca vi um Drácula tão carismático(risos). Paizão superprotetor e amoroso. Gostei demais!
Mas também gostei muito do romance entre Mavis e Jonathan.
Apreciei muito, durante a exibição dos créditos finais, a apresentação de uma sequencia de muitas gravuras onde boa parte delas mostram a bela Mavis vivendo sua rotina nos domínios do castelo de seu pai, o conde Drácula, além de Mavis e Jonathan juntos, felizes e apaixonados e viajando por vários lugares.
Dá pra pesquisar na internet estas gravuras feitas por alguns artistas que colaboraram na elaboração da animação. São belíssimas! Entre elas tem uma que muito bonita: Jonathan tocando um violino, num romântico cortejo, para Mavis durante um passeio de barco em alguma provável cidade no interior da Europa. Muito lindinho!
Essas gravuras excitam a imaginação a respeito do que poderá ocorrer depois desta ótima história. É um atípico amor que beira o impossível, o inexequível, no qual nos força a imaginar nas prováveis consequências e desafios que virão em choque com esta união entre dois seres tão diferentes (gosto muito destes tipos de romances)
Fico aqui imaginando os problemas que virão com este romance sabendo que Jonathan é humano e tem um tempo de vida muito inferior ao de Mavis. Como ficará esta situação? A princípio somente consigo ver Jonathan se tornando um vampiro como única solução para manter-se o maior tempo possível com Mavis.
Eu vi na internet um anúncio de uma continuação de Hotel Transilvânia.
Espero que façam outro bom trabalho. Creio que não será uma tarefa fácil.
Até mais!
Desculpe a demora em responder ao seu comentário, interessante saber que vão fazer uma continuação, também achei divertida e encantadora, e um ponto é extremamente interessante, o amor entre os diferentes, mesmo uma sendo vampira e o outro humano, eles puderam ficar juntos, algo bastante inusitado em filmes desse gênero, como vemos em Shrek. Talvez no próximo filme explorem esse aspecto, visto o conflito principal do primeiro ter sido a relação entre Drácula e Jonathan, e a metáfora para o isolamento causado pelo medo, que é algo comum nos estados unidos e, de uma maneira um pouco diferente na nossa. Obrigado pelo longo comentário Sérgio, espero que tenha gostado da minha reflexão e há outros textos no blog sobre animações
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