segunda-feira, 25 de junho de 2012

Sobre a genialidade e a loucura


Há algum tempo que desejo escrever algo sobre esse tema, recentemente encontrei o tempo e a motivação necessários para iniciar tal empreitada. Creio que é interessante iniciar por alguns equívocos bem intencionados que povoam as ideias dos leigos em psicologia acerca do par apontado no título: a genialidade e a loucura. Um dos equívocos que parece imperar no senso comum é que não há diferença entre ambos, que são uma só e a mesma coisa, mas isso é falaz. Outro equívoco aparentado a esse é a de que a loucura não existe, seria simplesmente uma percepção social com relação a comportamentos que fogem a norma coletiva, ou nada mais que uma forma de controle social ou mesmo um mal entendido em virtude do parentesco entre o gênio e o louco, existiria algo de visionário na loucura que impediria o homem médio de compreendê-la pelo que realmente é. Novamente estamos diante de uma estultice. Estas concepções que povoam o imaginário popular acerca da loucura, do gênio, e devo acrescentar, da criação artística, não correspondem a realidade dos fatos. Há ainda uma posição supostamente científica, que sustenta que a criatividade, a criação artística e a loucura são a mesma coisa, aqui há igualmente um erro.

Jung certa feita ao discutir sobre cosmovisão se perguntava se a Psicanálise de Freud acrescentava algo a nossa cosmovisão, sua doutrina dogmática filha do avelhantado materialismo do século XIX não trazia nada de novo, todavia a psicanálise de casos reais de pessoas que padeciam dos males da alma, isso sim deveria acrescentar algo de novo a maneira como percebemos o mundo. Freud anunciou algo de suma importância: não somos senhores em nossa própria casa, mas a propensão de irracional de cunho sentimental de nosso Zeitgeist moderno de preferir a matéria, ou a metafísica da matéria como preferia Jung ao desnudar de suas quimeras e preconceitos afetivos essa concepção, logo trataram de transformar a “peste” de Freud em algo inócuo. Os casos dramáticos de pessoas que se submeteram ao escrutínio psicanalítico de Freud nos revelam as profundezas abissais do sofrimento a que uma neurose pode arremessar um ser humano, a dor a desgraça e a solidão desses estados são quase inenarráveis. Há pouquíssimo tempo, tive o privilégio de assistir a palestra de meu dileto amigo e jovem analista Filipe Jesuíno que, ao narrar com os maiores cuidados um de seus casos, falou com voz embargada de emoção sobre as dificuldades enfrentadas em conjunto, paciente e analista. A neurose não é a loucura, a histeria, a neurastemia, a neurose obsessiva, ou os novos nomes que se dão a velhos demônios, síndrome do pânico, depressão, entre outros e mais ainda que logo surgirão, não são um ens per se, mas tratam-se de um funcionamento normal levado a caricatura, na concepção de Jung, o sintoma representa o momento em que a homeostase psíquica falha, mas mesmo isso possui um sentido. Certa feita ele disse sobre a neurose algo como “ainda bem que o fulano se tornou neurótico, pois agora se verá obrigado a lidar com seus problemas”, mesmo esses abismos de solidão e sofrimento possuem um sentido mais elevado, mas estamos aqui a falar de loucura e não apenas da cisão neurótica.

Creio que não é ocioso esclarecer o que seja a neurose antes de passar a discutir a loucura propriamente e sua distinção da genialidade, além do que seja o gênio – que segundo Jung é algo raro como a fênix. A neurose se caracteriza pela dissociação da personalidade, o início de uma neurose se dá quando um complexo inconsciente se instala na superfície da consciência, tornando-se impossível evitá-lo, e progressivamente passa a assimilar a consciência do eu. A neurose diminui consideravelmente o grau de liberdade empírica do indivíduo que padece, pois o grau de liberdade empírica será proporcional à extensão da consciência. É importante anotar que a psicologia dos neuróticos diferencia-se daquela de indivíduos considerados normais por traços muito insignificantes, até mesmo pelo fato de que em nossos dias poucos podem ter a absoluta certeza de não serem neuróticos. Mas dito em outras palavras, o que salta aos olhos na restrição de liberdade da personalidade empírica no neurótico é a característica que é normal e corriqueira do dado psíquico ser algo de objetivo, que escapa ao controle da consciência. O inconsciente possui uma autonomia quase demoníaca, que escapa ao controle de qualquer iniciativa racional bem intencionada, e a cisão que caracteriza a neurose pode ser descrita como um isolamento do sujeito consciente em relação a sua natureza humana básica, a neurose consiste basicamente de uma alienação dos instintos e uma separação da consciência dos fatos fundamentais da alma. Não é ocioso repetir que a neurose não se trata de um ens per se, nem tão pouco se trata de fenômenos localizados e estreitamente circunscritos, mas trata-se de uma atitude errônea da personalidade global. “Nas doenças mentais constatamos, sob forma grave e intensa, certos fenômenos que podem aparecer episodicamente em indivíduos normais” (Jung, 1997). O sofrimento neurótico é um logro inconsciente e não tem mérito moral como o sofrimento por coisas verdadeiras. O processo de conscientização que é necessário para o desaparecimento dos sintomas neuróticos representa uma tortura para aquele que passa por ele, em compensação, seu sofrimento passa a ter sentido e se refere a um mal verdadeiro. Isso por que só se pode alterar algo que esteja na consciência.

A psicodinâmica da loucura, da criação artística e do gênio possuem inegáveis semelhanças, semelhança, todavia não significa igualdade. Igualar o gênio ao louco só pode ser fruto da mais atroz incompreensão ou da incapacidade de avaliar o valor da criação em comparação ao delírio. Certa feita, o escritor James Joyce, maior romancista do século XX, autor do monumental Ulysses e do mais genial romance experimental de todos os tempos Finnegans Wake, levou sua filha que sofria de esquizofrenia para uma consulta com o Dr. Jung. Jung pouco pode fazer por ela, e recebeu de Joyce um exemplar autografado de Ulysses, conta-se que ele teria comentado que a filha de Joyce “se afogava nas águas em que seu pai nadava”. Durante meu mestrado tive a oportunidade de ler e estudar as memórias de Paul Schreber intituladas “memórias de um doente de nervos” (Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken, no original em alemão) e me impressionou profundamente a enorme influência que o livro em que Schreber narra seus delírios teve entre pensadores alemães e filósofos do restante da Europa. Segundo Eric Santner em seu “A Alemanha de Schreber”, nos delírios paranoicos descritos em detalhes por Schreber em suas memórias encontra-se elementos nucleares da ideologia nacional-socialista que solapou a Alemanha e levou  segunda guerra mundial. Elias Canneti chegou mesmo a considerar a obra de Paul Schreber como um precursor do famoso mein Kampf escrito por Adolf Hitler na prisão. Eric Santner chega mesmo a afirmar que algumas das “descobertas” de Schreber acerca da natureza do poder e da dimensão teológica do poder político se assemelham aquilo que Cliford Geertz chamou de “sacralidade do poder soberano”. As ideias de Schreber chegaram a influenciar pensadores do quilate de um Benjamim, mas veja, essas imagens poderosas destruíram Paul Schreber, e ele terminou seus dias tristemente num asilo, outros é que fizeram uso de seus insights fazendo o trabalho duro e impossível para ele, de separar o ouro do cascalho e da sujeira. Eis a diferença fundamental, o papel que a consciência desempenha em relação a essas imagens e insights!

Diferente de Freud, que iniciou sua pesquisa empírica com a histeria, Jung iniciou sua carreira no hospital psiquiátrico Burghoelzli e deparou-se com casos severos de esquizofrenia. Um dos casos que lhe causou grande impressão foi o de um homem de seus trinta anos de idade que sofria de uma forma paranóide de esquizofrenia. Adoecera quando estava na casa dos vinte anos, fora um simples escriturário empregado de um consulado e apresentava uma interessante mistura de inteligência, obstinação e ideias fantasiosas. Adoecera de megalomania e acreditava ser o salvador, sofria de frequentes alucinações e por certos períodos ficava bastante agitado. Um dia Jung o viu piscando os olhos insistentemente para o sol e movendo a cabeça de um lado para o outro, ele pegou o médico pelo braço e tentou mostrá-lo algo. Disse ele que se Jung piscasse os olhos olhando para o sol veria o pênis do sol e que se movesse a cabeça de um lado para o outro também veria o pênis do sol e que essa era a origem do vento, isso se deu em 1906. Em 1910 Jung soube através de seus estudos de mitologia de um livro de Dieterich, tradução do chamado papiro de Paris, que era a tradução de uma liturgia do culto de Mitra escrito originalmente em grego e só traduzido em uma língua moderna em 1910. O texto fazia menção a uma série de prescrições invocações e visões, uma delas falava do tubo que pendia do sol e de onde se originava um vento infinito. As ideias fundamentais da visão religiosa e do delírio nesse caso eram extremamente similares, nelas se pode ver o mesmo “motivo” mitológico, com uma diferença crucial. A primeira era uma imagem alucinatória que alienava um indivíduo e o enlouquecia, a segunda uma imagem simbólica culturalmente diferenciada e prenhe de significado e capaz de conferir sentido e significado a vivência religiosa de toda uma comunidade.

Outro paciente de Jung, que igualmente sofria de delírios e alucinações, e mantinha uma ligação telefônica com a mãe de deus, e que na vida real era apenas um pobre aprendiz de serralheiro que enlouquecera de forma incurável aos dezenove anos de idade, imaginava que o mundo inteiro era seu livro de gravuras e que, ao mover a cabeça para os lados virava as páginas desse livro. O próprio Jung anota que essa ideia é fundamentalmente a mesma que está na base da filosofia de Schopenhauer do mundo como vontade e representação. A mesma ideia arquetípica havia ocorrido a um gênio e a um louco, o primeiro conseguiu trabalhar com essa ideia e a partir desse insight constituir uma filosofia, o segundo fora destroçado por ela e enlouquecido irremediavelmente. A genialidade e loucura possuem uma origem comum, mas resultados muito diversos. O louco padece vítima das ideias que o assolam de maneira compulsória, sua personalidade se desintegra ou desaparece, seus delírios em pouco ou nada contribuem para a ampliação do nível geral de consciência de sua época. Fundamentalmente, ele está alienado dos desafios e aventuras do espírito que se apresentam aos seus pares em seu tempo e cultura. O gênio é exatamente o oposto, ele é justamente aquele capaz de formular de maneira consciente aquilo que é apenas intuído ou pressentindo, sendo capaz de captar aquilo que há de mais elevado no espírito de sua época, mas que ainda não foi formulado. Suas palavras, ou criações artísticas são capazes de tocar uma corda comum que muitas vezes o simples discurso racional não poderia. O gênio é capaz de enriquecer a cultura e engendrar mudanças, ampliar a cosmovisão dos seus semelhantes, o louco não.

Sobre essa ideia – que é uma versão simples primitiva e concreta do mundo como vontade e representação – ocorrida a esse paciente Jung diz:

No entanto, este modo primitivo de ver as coisas subjaz no fundamento da magnífica visão de mundo de Schopenhauer. Só um gênio ou um louco pode desligar-se suficientemente dos vínculos da realidade, a ponto de ver o mundo como seu livro de imagens. Será que o doente elaborou ou construiu tal concepção ou esta lhe ocorreu por acaso? Terá sucumbido a essa visão? Esta última alternativa pode ser corroborada por seu estado de desintegração patológica e por sua inflação. Não é mais ele quem pensa e fala, mas algo pensa e fala dentro dele: por isso ouve vozes. Assim, a diferença que o separa de um Schopenhauer reside no fato de que, nele, a visão permaneceu no estádio de um mero produto espontâneo, ao passo que Schopenhauer soube abstraí-lo, exprimindo-o numa linguagem de validade universal. Deste modo, elevou-a do estado inicial subterrâneo à clara luz da consciência coletiva. Seria um erro total afirmar que a visão do paciente possui apenas um caráter ou valor meramente pessoal, como algo que lhe pertencesse. Se assim fosse, seria um filósofo. Entretanto filósofo ou gênio é precisamente aquele que consegue transmutar uma visão primitiva e natural numa ideia abstrata, que pertence ao patrimônio geral da consciência. Esta realização e somente ela constitui o seu valor pessoal, cujo reconhecimento não o fará sucumbir inevitavelmente à inflação psíquica. A visão do paciente é um valor impessoal surgido naturalmente, contra a qual ele não pôde defender-se e que o engoliu, e “transportou” para fora do mundo. A inegável grandeza da visão inflou-o até proporções patológicas, sem que ele pudesse apropriar-se da ideia transformando-a numa concepção filosófica de mundo. O valor pessoal reside na realização filosófica e não na visão primária. O filósofo citado também teve essa visão, como incremento, procedente do patrimônio geral da humanidade do qual, em princípio, todos nós partilhamos.As maçãs de ouro caem da mesma árvore, quer sejam colhidas pelo insano aprendiz de serralheiro ou por Schopenhauer. (Jung, 1997, p.19).
O parentesco entre a inspiração e o delírio do louco está em sua origem. Toda e qualquer criação humana, seja o que há de mais belo ou a mais hedionda das invenções tem sua origem na alma. Mais especificamente, todavia, a origem da inspiração e do delírio é o espírito inconsciente. A concepção de inconsciente de Jung difere fundamentalmente da de Freud nesse aspecto. Para Jung existem neoformações criadoras que tem seu ponto inicial no inconsciente. No curto e fundamental ensaio “A energia psíquica” em nota de rodapé (a nota 17) Jung tece essa diferenciação entre a noção Freudiana de inconsciente e a sua no que diz respeito à possibilidade criadora do inconsciente. Em poucas palavras, para Jung a teoria do recalque de Freud – essa teoria pressupõe um polo contrário na consciência, a disposição consciente é hostil aos complexos inconsciente – é apenas uma verdade parcial, aplica-se a muitos casos, mas não há todos. Existem casos, justamente o de conteúdos criativos aos quais a consciência não é hostil e possuem uma elevada carga afetiva, mas como é algo novo não existem associações e rupturas de relações com os conteúdos da consciência. Faz-se necessário percorrer inicialmente todas essas conexões sem as quais não é possível se chegar a um elevado grau de consciência.

A diferença entre o gênio e o louco reside na firmeza de sua personalidade consciente ao se deparar com esses conteúdos psíquicos transpessoais que são entidades vivas e exercem força de atração a consciência. Esse conteúdos objetivos, dotados de uma energia que lhes é própria e um fascínio tremendo e terrível não podem ser manipulados à vontade. A possibilidade do trabalho consciente com essas imagens, e, em decorrência disso, transformá-las em ideias abstratas, é o que permite que o gênio não sucumba ao seu poder e o que constitui valor pessoal. A ideia por ela mesma é um valor impessoal. Mais poderia ser dito, e certamente algumas delimitações teóricas mais precisas seriam requeridas para uma compreensão mais ampla dos fenômenos aqui descritos de maneira ligeira, mas tal esforço não cabe no escopo desse escrito, que procura muito mais indicar as possibilidade do que esgotá-las.

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