Uma
imagem no Facebook me chamou a atenção e me levou a refletir. A referida imagem
mostrava três fotografias: Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zucerberg, todos eles
homens que criaram grandes mudanças na área de tecnologia, comunicação e educação
e alteraram para sempre a maneira como nos relacionamos com a tecnologia e com
os nossos semelhantes. Goste-se ou não deles, os três são grandes inovadores. Pois
bem, na imagem, ao lado da fotografia de cada um deles se lia: deixou os
estudos. E por último, a fotografia de um mendigo e ao lado dela a frase: Você
se deixar os estudos.
Obviamente
a imagem tem valor de chiste, trata-se de uma piada que vem circulando pela
rede mundial de computadores, mas convém recordar que o chiste é algo
revelador, e que nos permite, por um instante que seja, observar coisas subterrâneas
e que normalmente estariam veladas. Em virtude disso resolvi refletir sobre a
mensagem veiculada por essa imagem jocosa.
A
princípio me chama a atenção à expressão “deixou os estudos”, em minha opinião,
o mais correto seria dizer que eles deixaram a escola, ou que deixaram a
faculdade, mas nenhum deles jamais deixou os estudos. Steve Jobs, em seu “discurso
testamento” deixou claro que ao deixar a aulas na universidade, que eram
dispendiosas para seus pais e que não faziam sentido para ele ou tocavam a sua
alma, se dedicou a estudar as coisas que realmente faziam sentido para ele,
como por exemplo, caligrafia. Ele continuou estudando, e me arrisco a dizer que
o fez até o fim de seus dias. O que me leva a ter a séria suspeita de que
existe no senso comum a ideia de que só se estuda na escola, ou por que se está
na escola, ou seja por uma demanda coletiva e não por um impulso individual.
Me
parece também, que essa não é apenas uma “ideia” de senso comum, mas um tipo de
funcionamento psíquico. Nem todos possuem o élan para estudar ou pesquisar, o
que não constitui demérito, pois em nossa sociedade precisamos tanto de
cientistas e professores quanto de bombeiros, atletas, policiais, soldados, músicos
e artistas. Mas mesmo pessoas que normalmente não se sentiriam inclinadas a prosseguir
estudando por possuírem outros tipos de disposições, talentos ou desejos, se veem
obrigadas a estudar por décadas. Essas pessoas realmente estudam por que estão
na escola, por se verem coagidas a isso, ou por compreenderem que precisam
estudar até a universidade para poderem ganhar a vida ou terem o respeito de
seus pares – seja isso falacioso ou não.
Umberto
Eco, em seu livro “Como escrever uma tese” fala do fenômeno das “universidades
de massa”, onde pessoas sem o necessário élan para o estudo e a pesquisa se veem
forçadas a dispender anos a fio de suas vidas nos bancos da academia para
poderem ganhar o seu sustento ou simplesmente em prol de um ideal social, o que
transforma a academia num arremedo grotesco do que deveria ser. Essas pessoas
estão presas ao que sir Ken Robinson chamou de “tirania do senso comum”,
Campbell falava do Dragão onde em cada escama está escrito “tu deves”, e que
devemos destruir para sermos nós mesmos. Em uma revista em quadrinhos do Thor,
escrita pelo brilhante J. M. Straczynski, ele denominou esse mesmo fenômeno de “a
tirania das vozes razoáveis”. A oposição a isso é a penosa e difícil tarefa de
ser capaz de ouvir o próprio coração.
Mas
para compreendermos o sentido mais profundo do chiste contido na figura que
inspirou essa reflexão. Os três personagens retratados, mais o mendigo, não nos
esqueçamos do mendigo, são portadores de novidades, grandes novidades, para o
bem ou para o mal. Zuckerberg criou o Facebook onde esta imagem estava
circulando. Bill Gates forjou a sua imagem e semelhança o mercado mundial de
computadores pessoais, com um misto de gênio, oportunismo e algum plágio, e
Steve Jobs, bem, Jobs foi em vida tão criativo que é difícil resumir em poucas
palavras o quão inovador ele foi. Em resumo, estamos diante de três homens
dotados de grande criatividade e de sensibilidade para perceber os rumos dos
negócios, das artes e da cultura, visionários diriam alguns, mas creio que
palavra chave aqui é criatividade.
Bem,
uma coisa posso afirmar sem medo de errar, nossas escolas e universidades não
nos preparam para sermos criativos. Creio que convém aqui ponderarmos sobre o
nosso modelo de educação. Sir Ken Robinson, em suas brilhantes palestras no
TED, falou por duas vezes sobre educação, ou mais propriamente nas dificuldades
que nosso atual modelo de educação coloca para o florescimento dos talentos
humanos e para o desenvolvimento da criatividade. Em sua opinião, temos um
modelo de escola industrial, de manufatura, que se baseia nas ideias –
falaciosas – de linearidade e conformidade. Uma analise mais minuciosa da
imagem jocosa do Facebook mostra que a despeito dos três contraexemplos, a ideia
que norteia a piada é da linearidade. Ora, se você completar seus estudos até a
universidade você terá um bom emprego e uma boa vida, do contrário será um
mendigo. É clara a noção subjacente de linearidade nessa piada. Os três grandes
personagens são “a” proverbial exceção que confirma a regra. Mais sutilmente, a
ideia de conformidade também se faz presente, todos precisam passar pelo mesmo
processo de educação que leva ao mesmo fim: a faculdade.
Bom,
talvez seja o momento de falar um pouco da minha experiência com a faculdade. A
princípio eu decidi ser médico, na verdade eu nunca quis ser médico, eu queria
prestar vestibular para medicina o que é muito diferente. Pois bem, naquela época
há... Alguns anos atrás existiam duas fases no vestibular, eu era um ótimo
aluno e passei com facilidade na primeira fase nas duas tentativas, mas veja,
estranhamente, naquilo em que eu era realmente bom, a redação, eu reprovei. Como
segunda opção, ainda mais tola do que a primeira, eu fiz veterinária, e entrei
facilmente para essa universidade, que deve ser ótima para quem deseja ser um
veterinário, o que não era o meu caso. O fato é que, na escola, eu fora
preparado para ir para a universidade, ou melhor, para prestar o vestibular, e
não para escolher uma profissão que me permitisse ver meus talentos
florescerem. Bom, passei três anos na veterinária, gostava de cirurgia e era um
ótimo aluno e fiz muitas coisas, mas aquilo, fundamentalmente era uma farsa. Como
não consegui viver aquela farsa por mais tempo e, estando mais velho, começava
a discernir o que queria realmente fazer decidi largar tudo.
Passei
seis meses estudando em casa, pois achava que a escola não tinha mais nada a me
ensinar, o que rendeu uma briga com meu irmão mais novo, e uma grande
choradeira por parte de minha mãe e avó. Elas ligaram para o meu melhor amigo,
Filipe Jesuíno, e disseram a ele que alguém devia conversar comigo, eu já não
estudava mais, ao invés disso, passa o dia todo lendo no meu quarto. Como podem
ver, o conceito de “estudo” da minha família é bem parecido com o da pessoa que
criou a imagem que estou discutindo. Fiz vestibular novamente, fiquei em dúvida
entre psicologia ou história, e acabei decidindo pela segunda opção, coisa de
que não me arrependo. Sejamos francos, a faculdade de psicologia é uma droga, e
a de história é bem mais séria e me deu uma sólida formação científica. Mas não
pensem que se tratava do paraíso, não. Logo eu percebi uma coisa interessante
acerca da faculdade: ela atrapalhava meus estudos. Bom, até hoje atrapalha, o
doutorado tem se tornado um empecilho enorme aos meus estudos com uma série de
exigências absurdas e de uma lógica mais do que questionável que enxerga a
produção acadêmica como uma linha de montagem industrial, da qual, eu
supostamente faço parte.
Bem,
eu represento um “tipo” muito específico, e minha experiência pode ser similar
a de centenas, talvez milhares de pessoas, mas certamente, não de todas. Algumas
pessoas, suspeito que o autor da tal piada visual é uma delas, precisa de
conformidade e linearidade, precisa de alguém que a diga o que fazer e quando
fazer, ou simplesmente, está ali para cumprir uma obrigação social, ou, está
olhando para o futuro, para seu tão sonhado bom emprego. Alguns, simplesmente estão
ali, e não sabem muito bem o que estão fazendo e não pretendem descobrir, como
todos estão fazendo faculdade isso deve ser a coisa certa a se fazer. Outras que
estão nas escolas ou universidades possuem talentos e habilidade de outra
ordem, e que não têm lugar ali, algumas vezes habilidades práticas que combinam
pouco com a abstração que é requerida nas escolas e na academia. Ou então, como
suspeito ser o meu caso, são pessoas criativas, para quem a conformidade é um
grande empecilho.
Jung
ao escrever sobre as possibilidades de educação descreveu algumas das formas de
educar, uma delas diz respeito exatamente ao que estamos discutindo aqui, ela a
chamou de “educação coletiva consciente”. Esse é um tipo de educação que se
baseia em regras, princípios e métodos e estes três pontos são necessariamente de natureza
coletiva, e se supõe que sejam válidas e aplicáveis ao menos a certo número de
indivíduos. Mas o que se produz com esse tipo de educação? A resposta de Jung a
essa indagação é “dessa educação não se pode esperar que se produza outra coisa
ou mais do que aquilo está contido nas premissas, isto é, que os indivíduos
sejam formados de acordo com regras, princípios e métodos gerais”. O que esse
tipo de educação busca criar é a uniformidade,
apenas outra maneira de dizer conformidade.
O que acontece é que, variando de pessoa a pessoa em termos de grau, a índole
individual do educando cede à natureza coletiva da educação. A uniformidade resultante será
correspondente ao método que for empregado, ou seja, as regras, princípios e métodos. Esse tipo de educação não é, em
si mesma ruim, pois em uma sociedade faz se necessário algum grau de
ajustamento, de conformidade. Ou seja, isso leva a uma acomodação coletiva do
educando, pois se espera, e não sem razão, que a educação conduza a formação de
membros úteis da sociedade. Há, todavia um problema com esse princípio de educação,
e que vem saltando aos olhos nos últimos tempos.
O
problema desse tipo de educação, que é o que encontramos em nossas escolas e
universidades, é que esse tipo de formação coletiva do caráter pode levar a
graves danos a índole individual. É disso que sir Ken Robinson falou em suas
palestras, sobre esse excesso no que concerne ao aspecto coletivo da educação. Não
é ocioso recordar que esse tipo de educação coletiva é indispensável, para
vivermos em sociedade e precisamos de normas coletivas e jamais poderemos
renunciar ao princípio da educação coletiva. Mas o que muitos têm diagnosticado
hodiernamente é um excesso. O aspecto individual tem sido sacrificado em
demasia prol dos ideais coletivos, e em nossos tempos, a criatividade tornou-se
uma qualidade cada vez mais desejada ou admirada, mas nossas escolas não
permitem que ela floresça. Estamos diante de um grave desequilíbrio, não raro
no sistema de educação individualidade é sinônimo de anarquia.
Pois
bem, Jobs, Gates e Zuckerberg deixaram a faculdade, mas certamente não seus
estudos, eles deixaram o ambiente que sufocava sua individualidade e abraçaram
suas idiossincrasias e deram atenção a suas fantasias criativas. A faculdade não
forma visionários, dificilmente dali brota algo de diferente e novo, a despeito
de se exigir isso de uma tese de doutorado. Isso é algo que acredito ser
bizarro quando penso a respeito. Estou escrevendo uma tese, logo é justo que eu
pense a respeito. Ora, para se fazer uma tese se exige que ela seja inédita e
inovadora, mas ao mesmo tempo, todo o tipo de uniformidade é exigida de maneira
bastante autoritária, e dessas exigências que reforçam poderosamente os
aspectos coletivos se espera que brote algo singular, estranho não? Deixando de
lado essa digressão, o que o chiste que estou analisando procura transmitir é
que a criatividade não é para você! Se
você, caro leitor, resolver encarar como mentiras a conformidade e a
linearidade, e resolver deixar a escola, ou não ir para a universidade,
prepare-se para se tornar um mendigo. No fundo é uma piada muito triste.
Quando
eu estava no meu último ano de escola, minha turma reunia os mais bem dotados
academicamente da escola, e nessa época tive o privilégio de conhecer algumas
das pessoas mais brilhantes que alguém poderia desejar conhecer, como meu
dileto amigo Alexsandro Queiroz e Silva, vulgo Freud, um gênio da informática,
não tenho dúvidas, e que era academicamente brilhante. Nunca fez qualquer pós-graduação
e hoje vive e trabalha na Suíça, ou meu dileto amigo Fernando Barreto de Morais, vulgo
Ferby, alguém que aos 16 anos já lia Rimbaud e francês e já conhecia Piaget. Mas
não é deles que quero falar aqui, mas de um rapaz dessa época chamado Paulo
Marciso, creio ser esse seu nome. Pois bem, ele era considerado por todos um
rematado idiota. Nossa turma era muito harmoniosa e ele fazia parte da patota,
e como em minha terra natal o humor é uma qualidade das mais enaltecidas,
quando alguém o chamava de burro isso era feito com bom humor e ele nunca se
importou, ele também nos chamava de nomes. O fato é, que ele realmente era
incompetente academicamente, mas outra coisa saltava aos olhos. A despeito de
toda a pressão coletiva, de mais de seiscentos alunos no último ano, creio que
ele foi o único que não prestou vestibular. Ele nunca quis, dizia que quando
terminasse os estudos iria se dedicar ao comércio, e dizia isso sem rancor ou
ressentimento, ele não gostava de estudar e sabia que isso não era pra ele. Bem,
eu sempre fui muito mais inteligente que o Paulo Marciso, mas ele sempre soube
que ele era e que ele queria, e ninguém o dissuadiu de ser ele mesmo. Eu levei
mais do que o dobro do tempo, talvez o triplo para poder fazer uma escolha
individual, que um sujeito burro fez sem problemas.
Os
três heróis de nossa piada, que não viraram mendigos, estiveram diante do mesmo
dilema do meu antigo colega, e tiveram força de caráter similar. A faculdade não
lhes tocava a alma, não favorecia os seus talentos e nem lhes inflamava a paixão
e eles a deixaram, graças a Deus. Todos nós, em algum momento, ou mesmo em vários
momentos, ficamos diante dessa mesma questão: sermos nós mesmos ou sermos o que
se espera de nós? Viraremos mendigos se formos nós mesmos? A pergunta pode
parecer jocosa, mas não há nada mais sério do que isso. Muito tempo se passou
desde minhas escolhas desastradas na época da escola, mas ainda me vejo
encarando esse enigma, bom, há algo em mim que sabe bem as respostas, mas saber
a resposta e agir com convicção e coragem são coisas bem diferentes, pois
quando somos nós mesmos há um preço a se pagar por isso, esse preço fica claro
no discurso testamento de Jobs, quando ele se jogou em direção ao desconhecido
não havia garantias, ele podia ter se tornado um mendigo, nessa época ele era
um de nós. Talvez seja apenas a coragem e decisão que separe esses três e mais
tantos outros do homem médio, além do talento é claro, mas apenas o talento sem
a coragem não produz nada. Esse dilema é um dilema moral fundamental, e
precisamos refletir seriamente sobre ele, principalmente aqueles que são educadores.
Precisamos
lembrar do que disse Jung certa vez, que o homem médio desconfia e suspeita de
tudo aquilo que sua inteligência não pode atingir, essa piada é uma prova dessa
desconfiança. Como eles fizeram isso? Pois o homem médio certamente se tornaria
um mendigo. O novo é sempre algo problemático, mesmo quando é algo de bom, há
um medo terrível do novo, e nossa piada também traz um eco distante desse medo,
e em parte, esse medo também impele o homem médio a desconfiar do talento. Uma tentativa
de nivelar a massa do povo, se for bem sucedida, leva a catástrofe, pois,
segundo Junge se o que se destaca é nivelado perde-se todos os pontos de
orientação e surge o desejo de ser simplesmente conduzido por alguém. Eu, de
minha parte, depois de tantos anos em busca de mim mesmo, prefiro o risco de
ser um mendigo...
Cara, tenho que te parabenizar por esse texto. Geralmente, eu não comento em blogs, mas esse aqui mereceu. Essa 'piada' já me fez ponderar sobre os mesmos assuntos que foi discutido (se vale a pena arriscar a sua individualidade por questão de conforto, tanto monetário, quanto social). Você me fez ver o assunto sob novas perspectivas. Continue com o bom trabalho e conte com a minha leitura. Abraço.
ResponderExcluirObrigado Davi, fico feliz que as minhas ponderações sobre o tema tenham te tocado a ponto de você deixar de lado o hábito de não comentar. Continuarei escrevendo e agradeço pelo incentivo e as palavras gentis.
ResponderExcluirBeleza, cara? Não, não tinha visto ainda. Vou dar uma lida. Abraço.
ResponderExcluirmuito legal,por que vc mostra a realidade da individualidade que todos nos sempre pensamos,e temos medos de botar pra fora nossos sentimentos,por que temos medo de nao ser indolatrados..entao agimos como robôs,e seguindo uma cartilha de profissoes.....tirando a nossa propria realidade..e o noso proprio sucesso;;;;;;;;;;parabens;;;pelo texto;;;;;
ResponderExcluirMuito bem escrito. Gostei bastante da ideias do Eco citadas. É legal ver as ideias do Nietzsche sobre educação também, sobre a "demolição" das instituições...Ou, nós estamos fazendo uma grande besteira se reunindo aqui nessa farsa chamada universidade.
ResponderExcluirObrigado, ainda tento digerir e refletir sobre as ideias de Nietzsche sobre educação...
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