Hannah
Arendt, filósofa judia, ao se deparar com os carrascos nazistas no julgamento
de Nurenberg foi tomada de um grande espanto, pois toda aquela crueldade fora
praticada não por monstros ou pessoas mentalmente desequilibradas, mas por
pequenos burgueses de aparência pacata e algumas vezes quase bovina. Foram esses,
que poderiam ser seus vizinhos, ou colegas pacatos de trabalho que, ao receber as
ordens para perpetrar o maior horror do século XX, o holocausto de seis milhões
de judeus, o fizeram sem titubear, estavam apenas seguindo ordens. Pode-se
pensar que esse é um fenômeno restrito ao passado, ou quem sabe, quiçá restrito
aos alemães, mas isso não passa de falácia. Em nossa história recente, pacatas
donas de casa foram às ruas apoiar nossa sangrenta ditadura militar, e Jung
certa feita afirmou que o fenômeno do nazismo poderia ter surgido em qualquer
parte da Europa. Hodiernamente, o que me preocupa e me leva a refletir não são
os acontecimentos de nossa história recente, mas sim o que se passa nos dias de
hoje, quando pacatos bancários defendem por via das redes socais ideias de
extrema direita e facistóides.
Ao
escrever essas linhas, pretendo traçar duas linhas de argumentação, que se
entrelaçam: uma histórica – com a qual inicio – e uma psicológica, que vai ao
coração do problema. Recentemente pude ver em imagens no Facebook, o novo ágora,
mensagens de solidariedade aos PMs paulistas que executaram a sangue frio um
suspeito, ou mensagens mais genéricas que diziam coisas como “bandido bom é
bandido morto, enterrado em pé para não ocupar muito espaço, operação senta o
dedo, essa eu apoio” o texto vem acompanhado de imagens das mais chocantes e
sangrentas. Esse tipo de mensagem carrega mesmo que tacitamente – e isso é um
problema ainda maior – a ideia de que “bandido” não é um lugar, mas um tipo, no
sentido caracteriológico, como se existisse um “bandido nato” incapaz de ser
outra coisa que não bandido. O que remete as ideias de Lombroso no final do século
XIX, e por mais que essas mensagens de facebook não transmitam uma ideia de
raça, certamente passam pela noção de que se nasce bandido.
Há
igualmente uma incompreensão do que significa os direitos inalienáveis que são
o esteio da democracia ocidental, logo o ataque a eles significa uma espécie de
fascismo disfarçado ou apenas parcialmente consciente. Nosso regime político
atual se caracteriza pela ideia iluminista de igualdade: todos nascemos iguais.
É o oposto da ideia que norteava o antigo regime, o absolutismo monárquico
europeu, de que nascemos desiguais. O nascimento, como nobre ou plebeu, decidia
o seu destino: uns destinados a comandar e outros a servir. Alguns acumulando
direitos e privilégios e os demais acumulando apenas obrigações. A “era das
revoluções” como a chamou Hobsbawn mudou radicalmente essa concepção de mundo. O
absolutismo começou a ruir com a adoção na Inglaterra do habeas corpus, ou seja,
mesmo reis e nobres não poderiam prender alguém sem motivos legalmente válidos.
Em seguida, na mesma Inglaterra, a monarquia constitucional colocou até mesmo o
rei sob a tutela da lei. Na perspectiva do liberalismo burguês de viés
iluminista todos nascemos com direito a vida, a liberdade e a busca da
felicidade. Ao negar o direito de alguns, que seriam qualitativamente diferentes
dos demais, ou simplesmente ocupariam uma posição abjeta, o “bandido”, estamos
retrocedendo ao pensamento do antigo regime, a lógica da desigualdade natural. O
fascismo depende do totalitarismo, da desigualdade, assim como a democracia da
igualdade, e da isonomia.
Existe
algo curioso acerca dos direitos que esses criptofacistas parecem desconhecer,
ou julgam por bem omitir: ou eles são para todos, ou não são para ninguém. Afinal,
quem decide quem é bandido? Nos regimes totalitários quem decide isso é o
estado, e não a sensibilidade da classe média que se arvora de extrema direita.
Se defendemos uma polícia assassina, que faz às vezes de juiz júri e executor,
estamos condenando a nós mesmos a sermos “bandidos”, pois a única distinção
possível entre “bandido” e “cidadão” na democracia é o sistema judiciário pois somos
todos inocentes até que se prove o contrário. Quem garante que numa madrugada o
pacato bancário que vibra com a polícia assassina não será parado por uma blitz
e, ao ter esquecido os documentos ou se negado a dar propina, não será
barbarizado ou executado sumariamente como “bandido”? Ninguém garante, pois a única
garantia que temos é o estado de direito. Ao enquadrar alguém como bandido, e
ao jogar toda a culpa sobre os ombros dessa pessoa por sua condição, ou sobre
seu nascimento ou genética, faz-se tabula rasa de duas coisas: as condições
sociais e ao fato de que todos nós estamos sujeitos ao mal. Mesmo o pacato bancário,
que gosta de apoiar a polícia assassina, ou que se julga acima do bem e do mal
ao ponto de julgar quem é ou não bandido, pode, dependendo da temperatura dos
afetos, matar, agredir, ou quem sabe algo até pior.
Mas
qual é a psicologia do pacato bancário? Que na realidade, se não tivermos
cuidado é também a nossa psicologia e, mesmo com todos os cuidados, num nível
profundo, é também a nossa. É preciso que nos lembremos sempre, como disse Jung,
que o dom da reflexão crítica e da razão não constitui uma propriedade
incondicional do homem e, mesmo onde ele existe, ele se mostra muitas vezes
instável e oscilante. O mesmo Jung, em ensaio intitulado “Presente e Futuro”
afirmou: “Se o Estado de direito sucumbe, por exemplo, a um acesso de fraqueza,
a massa pode esmagar a compreensão e reflexão ainda presentes em indivíduos
isolados, levando fatalmente a uma tirania autoritária e doutrinária.”. Como as
manifestações do facebook parecem atestar, essa é uma possibilidade que está
muito viva. É difícil para um intelectual como eu admitir, mas se Jung
acrescentou algo a nossa cosmovisão,
foi a percepção do fato inelutável de que a argumentação racional só é possível
até o ponto onde as emoções não tenham atingido um certo ponto crítico, pois
depois disso a razão sucumbe e se torna ineficaz, restando em seu lugar slogans
(bandido bom é bandido morto) e desejos quiméricos que levam progressivamente a
uma epidemia psíquica.
A
psicologia do pacato bancário – veja bem não digo aqui que se trata de uma
personalidade doentia, é algo bem pior ele é perfeitamente normal – se sustenta
em quimeras, preconceitos afetivos e ressentimentos fanáticos que fazem apelo à
irracionalidade coletiva, usualmente, em pessoas normais ou em tempos de paz,
esse dado coletivo de irracionalidade repousa sob o manto da razão. Mas sabemos
que a paz é apenas um desiderato, um estado raramente alcançado. Talvez a psicologia do pacato bancário não
seja essa que eu descrevi, mas como o inconsciente é um dado irracional inalienável
de natureza existencial, ele está sujeito, sem o saber, ao contágio psíquico de
espíritos desse tipo, que existiram sempre em todas as épocas, apenas esperando
o momento certo para deflagrar um incêndio que nos consume a todos assim que suas
chamas se elevam furiosas aos céus.
Essas
infecções psíquicas, cujos sinais de seus modestos inícios podemos ver nessas
nefastas publicações no facebook, só acontecem e se propagam em virtude do conhecimento
muito limitado que o pacato bancário – sendo ele normal – possui de si mesmo. O
que acontece ao pacato bancário (todos nós em algum nível ou em algum momento
nos comportamos como pacato bancário) é que ele (nós) confundimos “autoconheciemento”
com o conhecimento da personalidade consciente. Infelizmente o eu conhece
apenas os seus próprios conteúdos desconhecendo os conteúdos do inconsciente. Medimos
nosso pretenso autoconhecimento por aquilo que o meio social sabe sobre nós e não
a partir do fato psíquico real. Cito Jung textualmente, pois nesse ponto, ele
toca no preconceito fundamental do pacato bancário.
O que comumente chamamos de "autoconhecimento" é, portanto, um conhecimento muito restrito na maior parte das vezes, dependente de fatores sociais - daquilo que acontece na psique humana. Por isso, ele muitas vezes tropeça no preconceito de que tal fato não acontece "conosco", "com a nossa família", ou em nosso meio mais ou menos imediato. Por outro lado, a pessoa se defronta com pretensões ilusórias sobre suposta presença de qualidades que apenas servem para encobrir os verdadeiros fatos.
O
principal preconceito do pacato bancário é justamente esse, ao ler pelos
jornais ou assistir aos cruentos programas de notícias policiais sobre
assassinos e estupradores, traficantes e outros bandidos perigosos, de que tudo
isso não acontece com ele ou seu meio imediato, ele não está sujeito a fazer
nada daquilo que ele assiste com indisfarçável prazer na tela da TV, e que lhe
permite viver sua ilusão por mais um dia, e reforça sua crença em suas
pretensas qualidades. No passado, entre os antigos judeus, havia um ritual em
que um bode periodicamente se tornava o receptáculo de todos os pecados da
tribo e era lançado para morrer no deserto de Azazel de fome e sede. Não temos
mais esse ritual, mas esse funcionamento típico não desapareceu de nossa alma,
infelizmente nos dias de hoje, tão modernos, queremos exorcizar e matar nossos
pecados em nossos semelhantes ah! Desculpem, não são nossos semelhantes, são
bandidos! Esse é um dos preconceitos afetivos que sustentam o discurso e a ação
do pacato bancário. Ao nutrir esses preconceitos e quimeras, nós (o pacato bancário)
ficamos sujeitos a infecções psíquicas, pois só podemos evitá-las quando
sabemos o que nos está atacando, como, onde e quando isso se dá. Ao permanecermos
na inconsciência, enxergando nossos semelhantes como seres abjetos
absolutamente diferentes de nós, nos condenamos a arder nas chamas do incêndio
coletivo que aquelas personalidades que vivem sob a influência de fatores
inconscientes doentios e perversos esperam para iniciar.
Nunca
é fácil olhar para nós mesmos, mesmo as escrituras expõem esse fato com clareza
Mateus 7.5 “Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem
para tirar o argueiro do olho do teu irmão.” O pacato bancário se comporta como
o proverbial hipócrita, pois vê sua escuridão projetada de maneira distorcida
nos bandidos, tornando-se presa fácil da contaminação psíquica que acompanha o
discurso totalitarista e fascista. É fácil apontar o dedo para o outro, mas uma
vez mais lembro que todos nós somos o pacato bancário, e todos temos a
responsabilidade de nos mantermos, o maior tempo possível, racionais, e para
tanto, convém conhecer o que há de irracional em nós, em nós e não em nosso semelhante. Do contrário veremos o passado se
repetir de maneira funesta, pode até ser que dessa vez não seja eu e outros judeus
e descendentes de judeus a queimar em holocausto, mas mesmo assim, essa
perspectiva deve ser combatida por aquele pequeno percentual da população capaz
de enxergar esse estado de coisas, seja lá quem os pacatos bancários resolvam
queimar dessa vez, em seu mal banal e cotidiano.
Mais uma vez, um excelente texto.
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