quinta-feira, 21 de junho de 2012

Tatuagens, marcas corporais e rito...


Ao refletir sobre a tatuagem e as marcas corporais nos nossos dias, ou modernidade, pós-modernidade, hipermodernidade, modernidade líquida (que de tão rápida logo chegará ao estado de vapor) ou como se queira chamar nosso fugaz presente; não consigo deixar de lado a sensibilidade de historiador e atentar para a duração. A tatuagem, as escarificações e marcas corporais não são um fenômeno novo, longe disso, são fenômenos antiquíssimos, que se perdem na aurora da humanidade e que existiram nas mais diversas sociedades, entre os mais variados povos e culturas sem necessariamente ter havido alguma transmissão cultural entre eles.
Não considero lícito, todavia, que se pretenda simplesmente explicar o presente – ou como quer que se queira adjetivar o tempo em que vivemos – pelo passado, não é isso que nos ensina Marc Bloch. Pelo velho método da história metódica do arco hermenêutico, preso aos ídolos das origens, não se vai longe, na verdade, não se vai à parte alguma. Não se trata disso aqui, da avelhantada ideia de uma história progressiva. Novamente, como nos ensina Marc Bloch, a noção de que o passado pode ser objeto da ciência é absurda. A história, nessa perspectiva, é busca, portanto escolha e seu objeto são os homens, ou para dizer de modo mais preciso “os homens no tempo”. E o que a torna uma ciência autêntica é a possibilidade de estabelecer ligações explicativas entre os fenômenos, uma inteligibilidade. Não é ocioso lembrar dessas lições de história, mesmo que não se trate aqui de um tratado de história, longe disso, simplesmente de um escrito que tem como uma de suas inspirações uma certa sensibilidade histórica. Trata-se, no entanto, de evitar os abusos tão comuns que são cometidos ao se pensar no passado e ao se apropriar do discurso do historiador, esse homem de ofício tão cioso de seus métodos.
Se faço um apelo ao “passado” ou a outras culturas que parecem tão diferentes da nossa – a despeito do denominador comum que atrai o olhar para elas – não o faço por desprezar o “presente” (seja ele sólido, líquido ou gasoso), mas justamente pelo motivo oposto, o olhar aqui é regressivo, vai, metaforicamente, do presente em direção ao passado. Não numa linha evolutiva do passado em direção ao presente, esta não é a nossa quimera, temos outras sem dúvida, mas não esta. Se estou interessado na “duração”, no tempo, que é o plasma em que se engastam os fenômenos e lugar de sua inteligibilidade, noção que surge dessa sensibilidade histórica, existe igualmente como uma das linhas de força que atravessam esses escritos uma outra sensibilidade. Sensibilidade essa que se insinua com mais força, mesmo quando não é convocada, talvez especialmente quando não é convocada. Uma sensibilidade que evoca um tempo que escapa a todas as temporalidades da história, seja a individualidade e intimidade do acontecimento – esse resto desprezível para a sociologia de Durkheim – seja a longa duração de um Fernand Braudel. Esse tempo insidioso que teima em se insinuar desde que foi anunciado por Freud. No dizer de Michel de Certeau, a psicanálise reconhece o passado no presente, enquanto na história a relação entre o passado e presente se dá colocando um ao lado do outro. No que concerne à memória, principal matéria prima do historiador, a psicanálise compreende o esquecimento não como uma passividade ou perda, mas como uma ação contra o passado, e o que é esquecido retorna no presente, mas forçado ao disfarce. Onde a historiografia estabelece uma diferença, onde ela estabelece um corte, uma divisão e hierarquia, esse outro tempo confunde essas fronteiras entre antes e depois.
Diante dessa dupla sensibilidade é que deve ser compreendido esse apelo ao passado para se interpelar a temática de que ora trato nesses escritos, não como vulgar tentativa de compreender os fatos passados como fatos positivos e objetivos. Há que se lembrar sempre que a história é imaginação sobre aquilo que já foi imaginado. É preciso estar atento àquilo que é a fraqueza da ciência historiográfica e, paradoxalmente, sua fortaleza: ser poética. Resta dizer, antes de começar a dizer propriamente, que é o presente bem definido que dá início ao processo essencial do ofício do historiador que seja “compreender o presente pelo passado” ao mesmo tempo em que “compreende o passado pelo presente”, pois a presa do historiador é a mudança.
Daí que, o que acrescento ao título, o rito, é justamente o que falta ao nosso presente líquido que parece estar em vias de nos afogar. Esse mesmo rito que o passado – lembrando sempre da duplicidade de sensibilidade que norteia autor desses escritos – dá sobejos exemplos de sua eficácia e relação com as marcas nos corpos. Mas esse passado que já não podemos ver tão hierarquizado, retorna sob disfarce e se insinua e se imbrica no presente. Comecemos então a dizer.
Tendo como bússola de nossa jornada o nosso próprio tempo, convém analisar alguns dos discursos representativos do pensamento corrente sobre o tema. Não é debalde iniciar essa análise com aquilo que se diz e pensa sobre o corpo. Afinal, é um tanto óbvio que a tatuagem e as escarificações e marcas corporais se fazem no corpo, e que em vista desse fato ele se torna espaço privilegiado de nossa reflexão, convém, todavia, desconfiar do óbvio. E é essa desconfiança que leva a uma rápida consideração preliminar – peço paciência ao leitor pelo aparente excesso de prolegômenos, asseguro que não se mostrará esforço vão – Jung, ao tratar das dificuldades de se lidar com o fenômeno psíquico, comparou a posição do psicólogo ao do físico ao lidar com o fenômeno da luz, que se comporta tanto como partícula quanto onda. A alma, contudo, é infinitamente mais complexa do que a luz, e sua compreensão repousa em não apenas um paradoxo, mas vários. Destes, interessa o seguinte: “a psique depende do corpo e o corpo depende da psique”, para ambas as afirmações existem tantas e tais provas que um juízo objetivo não poderá se decidir por um ou pelo outro. De outra feita, o mesmo Jung acerca da mesma temática asseverou:
É certo que as forma psíquicas elementares estão intimamente ligadas aos processos fisiológicos do corpo, como também não resta a menor dúvida de que o fator fisiológico representa pelo menos um dos polos do cosmo psíquico. Muito embora os processos instintivos e afetivos, bem como toda a sintomatologia neurótica produzida pelos distúrbios dos mesmos tenham inequivocamente uma base fisiológica, o fator perturbador prova, por outro lado, que ele tem o poder de converter a harmonia fisiológica em desordem. (Jung, 1981, p.74).
O que se pode constatar com facilidade é que, hodiernamente, os juízos objetivos tendem a escolher apenas um dos lados da antinomia, e nosso tempo, ou para usar a controversa expressão escolhida por Jung para realizar essa afirmação, nosso Zeitgeist, possui uma preferência sentimental pela matéria em detrimento do espírito. Logo, boa parte das teses a serem discutidas aqui sobre o corpo tendem a possuir como pressuposto tácito que: “a psique depende do corpo”. Tendem a compreender a alma como epifenômeno de causas materiais, resultante da fisiologia do cérebro, algum quimismo qualquer, ou, para usar a expressão jocosa do mesmo Jung “algo de saboroso”. Dito isto, e diremos novamente em breve, passemos ao nosso presente caudaloso.
Francisco Ortega, em artigo denominado Modificações corporais e bioidentidades, se ocupa em analisar novas formas de sociabilidade contemporâneas e a formação de identidades culturais, bem como reflexões sobre body modification na perspectiva da biossociabilidade, que ele define como um conceito que visa descrever e analisar novas formas de sociabilidade nascidas da interação entre o capitalismo e a medicina, sendo uma forma de sociabilidade apolítica – se é que isso é possível – seguindo critérios de saúde e performances corporais, diferindo fundamentalmente da biopolítica, pois a sexualidade ocupa na biossociabilidade um plano secundário e o corpo e a comida ocupam o lugar de fonte de ansiedade e patologia. Ainda segundo ele, o tabu que antes existia sobre a sexualidade se desloca hodiernamente para o açúcar, a gordura e o colesterol, numa clara demonstração de que, em sua análise, ele desconhece o que seja um tabu. Não que não existissem tabus alimentares, uma rápida olhada na cozinha Kosher judia e suas inúmeras proibições (não se pode comer porco, não se pode misturar carne e leite, é preciso até mesmo esperar um período superior a seis horas antes de ingerir leite após comer carne, o sangue da carne não pode ser ingerido e mais mil etcs), ao se observar esses tabus, é fácil perceber que o tabu do açúcar proposto por ele é, no mínimo, estranho. Ele fala ainda sobre bioacesses (eu desconheço qualquer método ascético tradicional que não envolva o corpo) que levam a um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna, nesse sentido, me parece que ele também utiliza o termo ascese de uma maneira bastante peculiar. A base da bioascese é uma compreensão do self como um projeto reflexivo, sendo a reflexividade um processo de peritagem sobre nós mesmo e que resulta na constituição de um indivíduo responsável que orienta as suas escolhas comportamentais e estilo de vida para a procura da saúde e corpo perfeito e o desvio dos riscos. Alguém deveria informar isso urgentemente aos donos do McDonalds.
Para Ortega as modificações corporais constituem um fenômeno sui generis de tentativa de personalização do corpo, o que me soa estranho visto eu sempre ter considerado, meu rosto, por exemplo, algo bastante pessoal... Mas prosseguindo na argumentação do autor em questão, por um lado essas modificações parecem seguir o esquema das biossociabilidades, por outro, parecem querer “recuperar uma dimensão do vivido corporal”. Por body modification o autor compreende as mais variadas práticas: tatuagens, piercings, brandings, cutting, e até mesmo o fitness e o body building, a anorexia e o jejum. Ortega analisa duas correntes de interpretação sobre o tema, das quais discorda. A primeira considera essas práticas como um elemento do mundo da moda e da sociedade de consumo e do espetáculo. A segunda abordagem considera essas práticas como patologias, um problema de saúde mental, que iguala o discurso das modificações corporais ao da automutilação, se constituindo num discurso moralista. Ele considera as duas abordagens reducionistas, a leitura dele está em acordo com a centralidade do corpo, das bioasceses e das bioidentidades na contemporaneidade. Sua tese é a de que a fragilidade do laço social, a ausência de vínculos simbólicos e rituais coletivos levam os indivíduos a se retrair sobre os seus corpos e os transformarem em universos em miniaturas, diante de tantas contingências essas práticas forneceriam uma ilusão de estabilidade cultural e social. Ele vai mais longe, e sugere que a desvalorização da experiência subjetiva do “corpo que eu sou” e o privilégio do “corpo que tenho” mediante as modificações corporais pode ser entendida como uma tentativa de passar de um corpo que é objeto da biomedicina para um corpo sujeito da sensação, de experiência, e do mundo.
Henri-Pierre Jeudy, em seu Corpo como Objeto de Arte, se ocupa, entre outras coisas, da pergunta sobre “o que pode o corpo?” e não sem certa lucidez constata que o corpo se constitui em um objeto privilegiado do discurso, e sobre o exibicionismo das metalinguagens que incessantemente anunciam o que ele é ou o que virá a ser, todavia essa massa de discursos jamais esgota seu objeto, que “parece apto a se esconder indefinidamente”.  Nesse sentido, sua pergunta “o que pode o corpo?” queda sem resposta, como se as palavras utilizadas para exibi-lo perdessem todo o seu poder sobre ele. O jogo de sombras entre imagem e representação segue implacável, a arte se converte em um viveiro a engendrar equivalência e banalidade. O excesso de conceitos e a saturação de linguagens acarreta o enfraquecimento da singularidade da criação artística. Paradoxalmente, a heterologia cultural surge como um efeito da esteriotipia cultural e o corpo se mantendo como fonte de todas as ilusões garante o futuro dos estereótipos. Ele prossegue constatando que o objeto da criação artística não é mais a busca pela beleza, mas sim a irrupção das fantasias coletivas. Ao analisar performances que se utilizam da desconstrução do corpo ou de sua exibição para a irrupção de fantasias, ele se aproxima da temática das modificações do corpo, analisando a ideia que se torna comum de que se pode fazer o que se quer com o corpo, em negação a fatalidade do congênito. Jeudy resvala em questionamentos dos mais interessantes ao meditar sobre a cirurgia plástica através de paralelos com a performance e a literatura e se pergunta se a cirurgia estética não seria senão um meio de se descobrir o seu “Outro”. O fracasso do belo na arte se dá também em virtude do corpo e de sua organicidade, o que o invólucro do corpo esconde a body art procura desvelar, a beleza não é senão ilusão, a transcendência se esvai diante da brutal organicidade do corpo.
Maria Rita Kehl, em artigo intitulado As Máquinas Falantes, se propõe discutir não o corpo bioquímico ou o corpo psicológico, mas sim o corpo como objeto social. Diante da dualidade que ela identifica no ocidente, entre corpo e alma, ou entre ser um corpo, ou o que parece mais em voga em nossos dias, ter um corpo, afirma o corpo próprio como “o corpo do outro”. Ao invés de ser propriedade privada, ele nos pertence muito menos do que costumeiramente imaginamos. O corpo pertence ao universo simbólico que habitamos, pertence ao Outro da linguagem. Ele é formatado pela linguagem e depende do lugar social que lhe é atribuído para se constituir. Ela teoriza que os corpos se modificam por efeito do que se diz sobre eles e do novo lugar social que isso engendra. Um corpo investido de um novo discurso corresponde a outro eu. Kehl faz uma comparação um tanto temerária do ponto de vista psicanalítico, um tanto avesso à antropologia (e vice versa), e se baseia nos estudos de Lévi-Strauss para tentar compreender melhor a “estreita dependência entre o corpo, o Eu e o Outro”.  Ao analisar um jovem candidato a xamã do norte do Canadá, o antropólogo se depara com a surpresa do jovem ao perceber que os truques do farsante, caso sejam legitimados pela comunidade, tem poder de cura e até mais poder do que um xamã genuíno que tenha perdido a credibilidade. O xamã, mesmo o farsante, promove a cura ao organizar a experiência de exceção que é estar doente, sua narrativa mítica oferece sentido ao que é singular, solitário e informulável. No texto seguinte, “A eficácia simbólica” o antropólogo analisa a cura de uma mulher com dificuldades de parto por um xamã a partir de uma narrativa mítica em que ele atualiza o mito da concepção. O mito tem o efeito de tornar aceitáveis para o espírito da doente as dores que o corpo se recusa a tolerar. Simbolizada a dor se torna tolerável, desde que acredite no xamã. A análise feita pela autora é interessante e digna de nota. Lévi-Strauss compara à eficácia do xamanismo a eficácia da cura pela palavra da psicanálise, ressaltando uma sutil diferença: na psicanálise a palavra tem outra origem, não a palavra proferida pelo analista, mas aquela proferida pelo analisando. Ao analisar a transferência, e compará-la a aceitação do xamã por sua comunidade, eu creio que ela vai longe demais e erra o alvo, a psicanálise não é nem pode ser cura por sugestão. Acerta, todavia, em minha opinião, ao asseverar que o desaparecimento dos sintomas físicos que ocorre quando o neurótico consegue colocar em palavras endereçadas ao analista algo que represente o informulável do seu desejo, e dessa formulação deduz a estreita relação entre o corpo, a linguagem e o Outro.
Em outra perspectiva, não tão distante assim das duas últimas apresentadas anteriormente, e bem menos recente, (e receio, bem mais sólida do que parece ser o gosto atual) Jung ao analisar o que é um corpo vivo, em seu artigo Espírito e Vida, afirma que a Psique é constituída essencialmente de imagens, não como uma mera justaposição, ou uma sucessão, mas uma estrutura riquíssima de sentido e uma objetivação das atividades vitais. Jung pensa de maneira antinômica, pois assim como a matéria corporal precisa da psique para ser capaz de viver, a psique pressupõe um corpo para que suas imagens possam viver.
A alma e o corpo são presumivelmente um par de opostos e, como tais, são a expressão de uma só entidade cuja natureza não se pode conhecer nem a partir das manifestações materiais exteriores nem através das percepções interiores e diretas. Como sabemos, segundo uma antiga crença, o homem surge do concurso de uma alma com um corpo. Mais correto seria falar de um ser vivo desconhecido sobre cuja natureza íntima o máximo que podemos dizer é que ela expressa vagamente a quintessência da vida. (Jung, 1986, pp. 267, 268).
Na perspectiva de Jung, vivemos sob o peso de uma reviravolta de cunho irracional, ou para usar seus termos, uma enantiodromia, que solapou a cultura e os símbolos europeus, quando aconteceu a passagem aparentemente brusca, de uma preferência sentimental e universal de cunho irracional pelo espírito para a sua atitude oposta, uma preferência de cunho sentimental universal e irracional pela matéria. A matéria, todavia, assim como o espírito, nos é algo absolutamente desconhecido, pois vivemos imediatamente apenas num mundo de imagens. A única realidade imediata é a realidade da alma e sua complexa e rica estrutura de representações. A realidade da matéria como dado objetivo, apesar de ser um pressuposto tácito de boa parte do discurso contemporâneo, assim como a irrealidade do espírito, são ambos discursos metafísicos. A maioria das coisas que se fala hodiernamente sobre o corpo, não passa, fundamentalmente, de metafísica da matéria numa perspectiva Junguiana. Jung não se propõe a reinventar a roda, entretanto, sua teorização – fundamentalmente prática e empírica – Possui uma clara base kantiana. Essa reviravolta significa que tudo o que extramundano se converte em realidade imediata, e todo o valor se fundamenta na pretensa realidade dos fatos. O que não se permite enxergar é que ambos os pontos de vista (material e espiritual) são igualmente lógicos, igualmente metafísicos, igualmente arbitrários e igualmente simbólicos.
Joseph Campbell, em seu primeiro volume das Máscaras de Deus, dedicado à mitologia primitiva descreve os ritos de passagens dos aborígenes australianos. Os jovens são removidos da cabana das mulheres por homens mascarados enquanto um dos homens utiliza um objeto especial para fazer um barulho aterrador. As mulheres dizem que o pai serpente consegue farejar o prepúcio dos jovens e eles são por fim levados pelos homens mascarados, para longe de suas mães, avós e irmãs. Por um bom tempo eles são alimentados apenas com o sangue dos homens da tribo e, em dado momento são colocados num local em separado, próximo a uma clareira onde está acontecendo um ritual e são instruídos a não olhar, aqueles que o fazem são mortos. Em seguida, como parte do ritual que os tornará homens, eles são circuncidados e depois é feito uma subincisão em seus pênis, que deve sangrar profusamente, os homens que realizam o ritual também reabrem suas subincisões e mostram que podem sangrar como as mulheres. Todo o conhecimento cosmológico da tribo, seus espíritos e divindades são encenados diante dos jovens e, quando o ritual termina eles são homens, a filha do homem que os circuncidou será sua esposa e eles terão seus papéis sociais definidos na tribo. Segundo o próprio Campbell, sua adolescência dura apenas enquanto dura o ritual, o momento de confusão e indecisão quando já não são mais meninos, nem tão poucos homens. Depois não resta dúvida, o ritual que marca seus corpos também marca as suas almas provocando a metanóia necessária a transformação de um menino em um homem.
Reparem que nesse, como em diversos outros rituais do mesmo tipo, o papel que a mulher desempenha concretamente no ritual é quase nulo, irrelevante, mas a transformação dos garotos em homens está centrada no simbolismo da mulher. É das mulheres que eles são separados, e assim como as mulheres sofrem ao dar a luz os jovens precisam mostrar que também são capazes de suportar a dor, assim como as mulheres sangram – e para muitas culturas primitivas esse fato é visto com temor e reverência – eles também devem sangrar através de suas subincisões, vaginas simbólicas em seus pênis. Entre os judeus, onde também se procura exorcizar a magia feminina e seu poder sobre a psique masculina de muitas e muitas formas, uma mulher é considerada impura quando está em seu período menstrual, e mesmo os objetos que ela toca não podem ser tocados pelos homens, sob pena de se tornarem igualmente impuros. Assim como os aborígenes, o povo judeu pratica a circuncisão no ritual do Brit Milá, no oitavo dia de nascido dos garotos o Mohel remove seus prepúcios (apenas homens podem oficiar esse ritual), o que os marca e os distingue como membros de uma comunidade específica o povo de Israel e nesse dia recebem seus nomes, ocorre seu segundo nascimento.
Mircea Eliade, em seu Xamanismo, nos fornece outros exemplos de iniciações, desta feita, não de jovens que se tornarão homens, mas de homens que através de suas iniciações se tornam os guardiões vivos do espírito de seus povos. Entre os yurak-samoiedos, a aprendizagem do ofício de xamã se inicia com o tamborim, e nesse momento os espíritos descendem sobre ele. Segundo relato do xamã Ganykka, enquanto ele tocava tambor os espíritos desceram sobre ele e o fizeram em pedaços, cortando inclusive suas mãos, e durante sete dias e sete noites permaneceu inconsciente, enquanto isso sua alma vagava na companhia dos espíritos. Temos aqui a imagem do corpo despedaçado, cortado em pedaços e da alma sequestrada pelos espíritos.
Em outra narrativa, de xamãs de avamsamoiedos, esse xamã, atacado de varicela, foi quase dado como morto, durante esse período de quase morte aconteceu sua iniciação, nesse período ele narra ter sido levado até um grande mar, e lá ouviu a voz da doença (a varicela que o acometia) que lhe dizia que ele se tornaria um xamã pelas graças do senhor das águas, depois ele escalou uma montanha onde encontrou uma mulher nua e começou a mamar em seu peito, em seguida o marido dessa mulher, o senhor do inferno, lhe deu dois guias animais para levá-lo ao inferno e lá encontrou sete tendas com os tetos rasgados ao entrar na primeira encontrou os habitantes do inferno e os homens da grande doença que arrancaram seu coração e o jogaram em uma panela. Após inúmeras outras peripécias e visões aterradoras e beatíficas, o candidato a xamã chegou a um deserto lá ele encontrou um homem nu trabalhando com um fole. No fogo havia uma panela do “tamanho da metade da terra”, o tal homem o viu e o agarrou com uma enorme tenaz, “estou morto” pensou o candidato a xamã. O homem cortou-lhe a cabeça, retalho-o em pedaços e colocou tudo no caldeirão. Cozinhou tudo durante três anos. Havia três bigornas e o homem nu forjou sua cabeça na terceira, e depois jogou a cabeça na terceira panela que lá havia, cuja água era mais fria. O ferreiro recolheu-lhe os ossos, que boiavam num rio, montou-os e os cobriu de carne. Após contar os ossos disse-lhe que havia três peças a mais, logo deveria arrumar três vestes de xamã, trocou seus olhos, furou suas orelhas tornando-o capaz de compreender a linguagem das plantas.
A riqueza de detalhes dessa narrativa iniciática se coaduna e é coerente com um sistema ritual e simbólico bem conhecido na história das religiões: o tema universal da morte e da ressurreição mística do candidato por intermédio de uma descida ao inferno e uma ascensão aos céus. Outros relatos de xamã, como os siberianos, são mais sucintos: o candidato a xamã permanece desacordado por vários dias e sonha que é cortado em pedaços pelos espíritos e depois levado ao céu e ao inferno.
O xamã tungue Ivan Tcholko relata que o futuro xamã deve ficar doente, ter o corpo cortado em pedaços e ter seu sangue bebido por maus espíritos, que na verdade são na realidade as almas dos xamãs mortos (vemos novamente o ritual de beber sangue, como entre a iniciação dos jovens aborígenes). Jogam sua cabeça num caldeirão onde é forjada com outras peças metálicas que farão parte de suas vestes cerimoniais. As mesmas experiências são observadas em outros lugares, uma mulher teleuta tornou-se xamã após ter tido uma visão em que homens desconhecidos lhe cortavam o corpo em pedaços e cozinhavam-nos numa panela. Entre os xamãs altaicos, reza a tradição que os espíritos dos ancestrais comem suas carnes, bebem seu sangue, abrem seus ventres etc. os xamãs esquimós também conhecem a experiência extática do despedaçamento do corpo seguido da renovação dos órgãos. Eles falam de um animal que fere o candidato a xamã, despedaça-o ou devora-o e depois cresce carne nova em seus ossos. Não raro o animal que tortura o futuro xamã torna-se seu espírito auxiliar. Muitos dos xamãs esquimós, ao procurarem a iniciação passam pela experiência mística de morte e ressurreição provocada pela contemplação de seu próprio esqueleto. Em toda a parte, seja a experiência extática de sonhos e visões, seja nos rituais, o esquema da iniciação segue esses passos morte (que pode ser antecedida por uma crise nervosa, doença, acidentes, ferimentos, luta com animais ferozes), descida aos infernos, ascensão às regiões superiores e por fim a ressurreição.
Em todos os processos iniciatórios descritos até agora, centenas mais poderiam ser elencados, os deuses e espíritos desempenha um papel fundamental, Campbell assim define os deuses.
(...) os deuses representam as forças protetoras que sustem o indivíduo em seu campo de ação. Ao contemplar as divindades, esse indivíduo ganha uma espécie de força estabilizadora que o coloca, por assim dizer, no papel representado por uma das divindades particular. (Campbell, 2008, p.17).
Na perspectiva de Campbell, mito não é o mesmo que história, o mito é o transcendente na relação com o presente. O mito proporciona um campo em que você pode se situar, como os exemplos anteriores demonstram de maneira dramática! O que o mito faz é apontar o transcendente além do terreno dos fenômenos. Uma figura mítica é como um compasso, com uma ponta na esfera do tempo e a outra na eternidade. A imagem dos deuses, ou dos espíritos, xamãs ou heróis, podem assumir forma humana ou animal, como vimos, mas sua referência transcende a isso. O mito não é uma alegoria, não funciona verdadeiramente de forma denotativa, um mito genuíno aponta para algo indescritível que está além de si mesmo. Quando alguém possui uma divindade como modelo, sua vida se torna transparente ao transcendente.
Segundo Campbell, o xamã é aquele que passou por uma crise psicológica e se recuperou. Um xamã mais velho dá ao jovem candidato a xamã as instruções que o ajudarão a escapar dessa situação difícil. A iniciação inclui a representação de certos ritos psicológicos que permitem ao futuro xamã retornar ao contato uma vez mais, passando a ser capaz de cantar seu próprio canto. Ele descobre o sentido transcendente e anagógico de seus sonhos e visões, e o destino que elas encerram. Ao mergulhar em seu próprio inconsciente o que esse indivíduo encontra é o inconsciente de toda a sociedade ao qual pertence – nas sociedades primitivas as pessoas estão atadas a um horizonte estreito e compartilham um sistema limitado de problemas psicológicos – dessa forma, o xamã se converte num professor e guardião da tradição mítica, torna-se assim isolado e temido, pois adquire aquilo que Jung chamou de prestígio mágico, torna-se uma “personalidade mana”. Não é fácil ser um xamã, tão pouco é uma posição invejada ou desejada pelos demais.
A maneira como atua o xamã, e a maneira como atua a iniciação é a maneira como o mito atua. Campbell considerava que o mito podia desempenhar quatro funções, chamadas por ele de: mística, cosmológica, sociológica e psicológica. Os símbolos míticos proporcionam um sentido de efetiva participação na transcendência, esses símbolos possuem a função de auxiliar o indivíduo a atravessar vários estágios e crises da vida de maneira significativa, isto é, a compreender a vida de maneira íntegra. A metáfora religiosa nos coloca em harmonia com nossa cultura, consigo mesmo, com o universo e com o mysterium tremedum da existência. A primeira função de uma mitologia viva e atuante é conciliar a consciência com as precondições de sua própria existência. A vida é algo bastante horrendo, um ciclo sem fim de morte e sofrimento, e vida está constantemente se alimentando de vida. A primeira função de uma ordem mítica é reconciliar a consciência com esse fato. A segunda função consiste em apresentar uma imagem coerente do cosmos, uma imagem que conserve e induza uma sensação de assombro. A terceira função de uma ordem mitológica é validar e preservar um dado sistema sociológico. Uma iniciação não tem qualquer sentido se o segundo nascimento que ela proporciona não permitir a adaptação a uma dada sociedade. Quando há uma ordem mítica vigente, viva e energizada pelo poder de suas metáforas, as leis da sociedade em que ela atua têm a mesma autenticidade das leis do universo. Por fim chegamos a quarta função apontada por Campbell.
O mito deve fazer o indivíduo atravessar as etapas da vida, do nascimento à maturidade, depois à senilidade e à morte. A mitologia deve fazê-lo em comum acordo com a ordem social do grupo desse indivíduo, em comum acordo com o cosmos – conforme o grupo o defina – e em comum acordo com o mistério estupendo. (Campbell, 2008, p.37).
O xamã, ao atender ao seu próprio canto, as imagens visionárias que os acometem se tornam centrados, e garantem paz a si mesmos quando entoam canções e executam ritos. O que é um rito? Todos nós deveríamos saber, pois mesmo em nossa sociedade fluida vivemos em meio a muitos deles, seja o batismo, o casamento, a comunhão, a primeira eucaristia, o Bar Mitzvah, o Brit Milá, todos são ritos que, infelizmente, para a maioria, degeneraram em formalidade vazia e sem sentido. O ritual é simplesmente a representação do mito. É a repetição do mito vezes sem conta que torna o indivíduo transparente ao transcendente. É assim que o mito funciona.
Chegamos assim a uma encruzilhada, falei antes que justamente o que nos faltava era o rito. No título desse ensaio, logo depois de rito há reticências, pois sem mito não há rito, ou talvez, apenas formalidade vazia de sentido e de efetiva atuação. Todavia, mesmo em nossos dias, ainda há aqueles que decoram seus corpos com tatuagens, ou que o escarificam ou o marcam de maneira permanente. Essas práticas não possuem – ou apenas algumas como o Brit Milá – relação de causalidade com essas práticas ancestrais que utilizei como exemplos e amplificação, todavia elas possuem uma conexão, e aqui as palavras de Certou de inspiração psicanalítica adquirem seu sentido devido, aqui vemos como o passado ressurge no presente sob disfarce. Aqui não há nada de líquido, mas assim como a experiência do xamã, de ser reduzido aos ossos, aquilo que há de indestrutível e adamantino em seus corpos e almas, nos deparamos com algo sólido como rocha, onde as águas do presente se quebram incapazes de mover ou desgastar essa rocha que se eleva sobre as ondas, impassível, pois já viu quebrar águas de eras sem fim desde que o homem adquiriu a maior das maravilhas cósmicas: a consciência. Me parece, que existe uma conexão entre os ritos primitivos, as marcas escarificações e tatuagem utilizadas nos brutais ritos de passagem e as tatuagens e marcas corporais dos nossos dias, entretanto essa conexão não é causal, mas uma conexão pela raiz, irracional e psíquica (Jung, 1981).
Nossa espécie possui uma característica que a faz diferente dos outros mamíferos, nascemos muito cedo, e passamos por um período de dependência com relação aos nossos pais muito longo, que dura por volta de doze anos, durante esse período somos incapazes de cuidar de nós mesmos.  Devemos, em determinado ponto de nossas existências, passar desse estado de dependência a um estado de independência com relação aos nossos pais. Isso certamente leva a uma crise, ao menos para a maioria, essa transformação nesse momento de crise é um problema recorrente em todas as sociedades. A psique do adulto jovem deve abandonar o padrão de dependência e adotar o padrão adulto de responsabilidade. Em todas as sociedades essa transformação é alvo de grande preocupação e é justamente para esse momento que servem os ritos de iniciação das sociedades primitivas (Campbell, 2008).
O “pai”, psicologicamente falando, faz às vezes de educador do espírito, ele transmite as regras e anseios da sociedade e representa e informa a criança o papel que o adulto deve assumir. Esse é um tema que ressurge incontáveis vezes nos mitos das mais variadas culturas: a mãe gera o corpo físico, o pai o ser espiritual. O que a sociedade requer de nós é que sejamos capazes de assumir responsabilidades de imediato, sem nos corrigirmos. Espera-se que não voltemos correndo ao papai e a mamãe, mas que nos tornemos papai e mamãe. Alguém que está dividida entre as duas atitudes – de dependência e de responsabilidade – é ambivalente e neurótica e só será genuinamente um adulto quando conseguir enfrentar os desafios sem voltar correndo, internamente, para os pais. A função dos ritos de puberdade nas culturas mais antigas era pôr em prática essa transformação psicológica, que torna o individuo capaz de assumir responsabilidades. Eles serviam para nos acordar, para despertar para a vida adulta e deixar a infância para trás. O ritual garante essa Metanóia através da transferência das imagens anteriores de pai e mãe para as imagens ancestrais da tribo. Quando o ritual termina, o garoto não é mais um menino, seu corpo e sua psique mudaram. Ele se alimentou do sangue dos homens da sua tribo, foi banhado no sangue desses homens, seu corpo foi marcado de forma indelével. Depois ele é enviado de volta a para junto das meninas, lá lhe aguarda a sua futura esposa, filha do homem que o circuncidou, ele não tem escolha. Nas sociedade de cultura tradicional a maturidade é conditio sine qua non viver dentro das fronteiras da cultura. O indivíduo se torna o veículo da ordem moral, ele se torna a própria ordem moral. Essas sociedades enfrentam problemas de sobrevivência em confronto com a natureza que a própria existência da sociedade depende dessa transformação. O indivíduo deve ser iniciado de tal maneira na ordem social que suas reações espontâneas estejam de acordo com as necessidades da sociedade (Campbell, 2008).
Em nossa sociedade contemporânea podemos nos dar ao luxo de sermos inadaptados. Além disso, a exigência que se faz as nossas crianças é outra bem diferente, a de que se tornam indivíduos, que desenvolva uma personalidade individual e não simplesmente que se transforme num papel social. Estamos imersos até o pescoço no que alguns chamam de “paradoxo da pós-modernidade”.
Nos ritos de puberdade se expressa uma premente necessidade de separar os jovens de suas mães, depois de findo o rito eles passam a conviver com os homens na cabana dos guerreiros, em algumas sociedades primitivas, o jovem recentemente iniciado na vida adulta tem relações sexuais com a mãe logo após os rituais, para comprovar que aquela não é mais sua mãe, seu corpo não é o mesmo que recebeu dela ao nascer e seu espírito não é mais o mesmo, ele renasceu no seio da tradição de seu povo. Há entre os povos primitivos um temor do poder feminino, que é aplacado de várias maneiras. Mesmo em sociedades mais sofisticadas, como as sociedades mulçumanas, por exemplo, ainda ouvimos claramente os ecos desse temor ancestral. Heinmirich Zimmer, grande orientalista e estudioso da arte e literatura indiana, ao se referir aos mistérios da tradição do subcontinente indiano disse.
Só a Deusa conhecia aquela energia secreta e onimovente dos mundos, que levou os deuses à segunda vitória; era o poder que possuíam, do qual não tinham consciência. Eles achavam que eram fortes por si mesmos, mas sem essa força, ou contra ela, mal poderiam vergar uma folha de grama. A deusa conhecia a força universal, que os sacerdotes védicos chamam de brahman e que os hindus chamam de sakti, pois sakti, ou seja, a energia, é a essência e nome da própria Grande Deusa, e por isso ela podia explicar a misteriosa essência para os seres, ela podia ensinar-lhes esse segredo – pois era o próprio segredo (Zimmer, apud Campbell, 2003, p.218).
Campbell citou Zimmer no início de uma de suas memoráveis palestras para falar desse poder feminino ao qual todos os ritos iniciáticos parecem servir de ritual apotropáico, de defesa e proteção, contra a mãe ogro, o espírito que é ao mesmo tempo fonte de todas as coisas e morte e aniquilação do mundo criado. No mito japonês, Izanagi que junto de seu irmão e esposo Izanami criou o mundo é, paradoxalmente, o espírito da morte que habita as profundezas do reino de Yomi, o mundo subterrâneo. Na perspectiva indiana, todo o poder, sakti ou brahman, é feminino, por isso o feminino representa a totalidade do poder, e o masculino é apenas um agente do poder feminino. No hinduísmo – bem como no xintoísmo japonês – o sol é feminino e a lua é masculina. No hiduísmo, a lua (shiva) nasce do sol e morre nela todos os meses, Parvati, a consorte do grande deus shiva é o poder solar. Em alto alemão, o sol die Sonnen, é feminino, num eco distante dessa ordem mítica que apresento aqui. Na simbólica egípcia, o céu é feminino. Na imagem egípcia do faraó em seu trono, o trono é a fonte de todo o seu poder e autoridade, o trono é a deusa Ísis. Campbell compara essa imagem ao simbolismo cristão do menino Jesus representado no colo da virgem Maria, assim como o faraó no trono, ela é o seu poder, o deus governa o mundo, mas ela está sempre por trás dele.
Na velha Hélade também se pode ouvir os ecos desse poder nas palavras enigmáticas de Heráclito. ψυχηισιν θάνατος ΰδωρ γενέσθαι, ΰδατι δε θάνατος γην γενέσθαι, εκ γης υδωρ γίνεται εξ ΰδατος δε ψυχή. “É mortal para a alma se tornar água, e é mortal para a água se tornar terra, água vem à existência saindo da terra e almas saídas da água”. Spengler certa vez disse “O homem faz a história, A mulher é a história”. Na perspectiva Junguiana, “o princípio básico do inconsciente é o Eterno Feminino”.
O poder masculino surge com os semitas e árias indo-europeus. Campbell, ao analisar praticamente todas as mitologias existentes chega a uma conclusão das mais interessantes sobre o lugar do feminino: onde a agricultura é o principal sustento, há poderes terrenos e deusas. Onde a caça predomina é a justificativa masculina que justifica a matança de animais. De modo simples, de toda a complexidade dos mitos de todas as épocas, Campbell articula que o “masculino” é igual à ordem social, o “feminino” a ordem natural. A “mulher” é a vida, a totalidade, na perspectiva simbólica a função do homem é agir, a função da mulher é existir. Segundo Zimmer, a mulher no simbolismo da mitologia representa a totalidade do que pode ser conhecido e o herói é aquele que passa a conhecer. Na mitologia sumeriana, Marduk para criar o mundo despedaça a deusa dragão Tiamat, que representa o oceano primordial fonte de toda a criação, e com seus pedaços ele recria o mundo a sua imagem. No mito de Perseu (que analisei em outro estudo) o herói só consegue cumprir o seu destino e desposar uma jovem princesa após decapitar a pavorosa medusa – paradoxalmente do pescoço da medusa, a face da morte, nasce o pégaso e o gigante Crisaor, morte e criação novamente unidas no símbolo mítico. O herói russo Ivan cumpre seu destino após subjugar a bruxa Baba Yaga, mesmo na moderna psicanálise lacaniana, o papel da assim chamada “mãe fálica” pode ser crucial para o destino de seu filho.
Na perspectiva mítica o homem precisa fazer, e para tanto, precisa desligar-se da mãe e encontrar um modo de “fazer” – pode ser o seu modo individual ou o modo da tribo – o que normalmente é algo doloroso, a mulher só precisa existir. Os rapazinhos precisam ser transformados em homens, de maneiras cruéis e chocantes. A menina ao chegar à puberdade percebe com clareza que seu corpo não lhe pertence, a natureza se encarrega através de seus meios misteriosos e maravilhosos de transforma-la numa jovem mulher, pronta para dar a luz a uma nova vida, o que mesmo em nossa sociedade líquida e cínica, é um milagre e tanto. O que não significa que a menina não sente medo e insegurança nessa passagem, e que sua atitude também pode ser ambivalente. Como no delicioso conto de fadas da princesa e o sapo, onde todas as imagens majestosas da jornada interior estão representadas de maneira singela.
O que todas essas histórias e ritos representam é um drama anímico, toda criança apresenta uma ligação inconsciente com os pais, um estado primitivo de indiferenciação. Esse estado primitivo de identidade inconsciente, em virtude de sua inconsciência apresenta uma enorme inércia e é capaz de se opor ferrenhamente a qualquer desenvolvimento espiritual mais elevado. No ocidente, a igreja representava o substitutivo espiritual mais elevado a essa ligação com os pais, sendo capaz de libertar o indivíduo dessa inércia inconsciente. Os rituais iniciáticos e seus simbolismos proveem aos jovens dessas tribos primitivas novos relacionamentos que os libertam dessa relação com as figuras parentais e isso permite que se desenvolvam plenamente como adultos. Jung afirmou certa feita que “Não há uma única forma de tragédia humana que não provenha realmente desta luta do eu contra o inconsciente” vemos a verdade dessa afirmação de maneira eloquente em tudo o que foi exposto.

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