Me
proponho a escrever sobre esse tema não para analisá-lo, tampouco com qualquer
intuito expresso ou velado de denegri-lo, mas para refletir sobre esse
fenômeno, que a mim, a minha sensibilidade me espanta, e o que fazer desse
espanto? Justamente, talvez, esteja aqui a falar desse meu sentimento de
espanto e menos do tema que me proponho, quase de uma maneira impressionista me
ponho a falar sobre esse movimento que em seu nome procura ter relação com a
liberdade, mas me parece um tanto autoritário, todavia, esse não é o ponto.
Para
nós que somos velhos militantes de esquerda, sim essa palavra que parece tão
gasta já, ele parece eivado de contradições, no mínimo tão contraditório em si
mesmo quanto o nosso próprio movimento. Não compartilho da opinião de que se
deve cunhar palavras novas para designar as coisas, isso por dois motivos. O primeiro
é o de que não sou animado pelo preconceito de que as palavras ou os conceitos
explicam aquilo que denotam, não se trata por certo de palavras carregadas de
poder, um poder adâmico de nomear, ou a força numinosa de um demiurgo, não, as
palavras são carregadas sim, mas de história. O que me leva ao meu segundo
motivo, que é justamente a história, as palavras existem no tempo e na
sociedade e são pelo tempo e pela sociedade significadas e ressignificadas,
assumem sentidos e perdem significados com a polissemia que lhes é uma
característica tão marcante. Abrir mão dessas velhas e gastas palavras é abrir
mão dessa história venerável que elas carregam, e, com isso abrir mão da
potência que possuem para o novo, ou para o novo de novo. Por isso, e não por
um maneirismo de velho militante – talvez também por isso, mas não apenas isso –
use essas velhas amigas. O fato é que enxergo esses “novos” movimentos que
agora parecem ter certo apelo entre nossos jovens em uma estreita relação com
aquilo que foram nossas utopias, nossas da esquerda.
Nossas
utopias, nosso desejo de mudar o mundo, parece a um certo olhar que se fez em
pedaços quando a cortina de ferro caiu junto do muro de Berlim e, por um
instante fugaz, pudemos crer que nosso mundo era novamente um só, mas se
tratava apenas de um jogo de espelhos e fumaça, um truque. Esse olhar iguala nossas utopias com os processos sociais e históricos que com ela se
identificaram, fazendo tabula rasa de suas diferenças no tempo e no espaço,
lhes conferindo uma unidade ilusória, e, por fim, lhes atribuindo uma
fidelidade impossível tanto a essas utopias quanto a origem histórica dessas
ideias que reconhecem com exclusividade em Marx, como se fosse ele o profeta
dessa verdade que, em virtude desse fracasso que se lhe atribui deve
logicamente ruir e ser jogada no lixo da história.
O
que me proponho a problematizar de uma maneira um pouco menos míope – visto que
todos nós sofremos de algum mal da vista causado pelo tempo e pela geografia,
bem como por nosso constituição mais íntima – é que o fracasso de diversos
modelos que possuem sua origem direta ou indireta nessa utopia de esquerda,
nesse desejo de mudar o mundo no sentido de uma maior igualdade entre os homens
por meio da redistribuição da riqueza e do poder, não significa de maneira
necessária o fim dessa utopia. Ideias além de uma história possuem um valor que
talvez ultrapasse ainda mais o peso de seus movimentos no tempo, muitas ideias
possuem um valor simbólico inestimável que servem como guia em uma determinada
direção, que produzem os homens e suas lutas e cujo significado não parece
poder ser esgotado nos compêndios de filosofia ou sociologia de onde aparentam
terem surgido. Nenhuma utopia pode ser alcançada, desse modo, a rigor, nenhuma
utopia fracassa. A utopia se constitui em um horizonte de ampliação as possibilidades
do presente, e quanto mais essas possibilidades se alargam em direção ao que
parece ser esse horizonte mais ele se afasta. O valor simbólico dessas ideias
de utopia são justamente um dos fatores que engendram num sentido íntimo os
movimentos da história, em uma ação paradoxal que acontece de fora para dentro
e de dentro para fora ao mesmo tempo e sem contradição. A ideia da morte de uma
utopia, em virtude da impossibilidade dessa morte é, em si mesma, uma utopia. Mas
o que essa ideia engendra em nós e na nossa sociedade?
Parece-me
que há, de maneira insidiosa, animando esse movimento essa ideia negativa, a
utopia do fim das utopias, e ao invés de uma tentativa de mudar o mundo, há,
isto sim, uma ação no sentido de tornar ainda mais profundas e acentuadas
justamente as características contra as quais nos levantávamos. O intuito
parece ser tornar o mundo ainda mais igual ao que ele é, não a mudança, ou ao
menos a mudança em direção ao máximo de imobilidade, mudar para que nada mude. Não
há um horizonte, não se pode olhar além, as utopias morreram. Sobre esse
cadáver deve-se erigir um mundo novo, mas ele é o velho mundo só que sem
qualquer outra possibilidade, sem espaço para o outro, a liberdade é uma
liberdade de ser mais do mesmo. A minha impressão é que esse pensamento só é
possível em desafio as nossas utopias, o que mostra uma profunda dependência,
daí a necessidade da utopia da morte das utopias.
A
prova que se procura dar dessa ideia se faz por meio de um discurso que nega
toda a diferença que é inerente aos diversos processos históricos e culturais. Negam-se
as evidentes diferenças e contradições internas do que houve na China, na
Rússia, em Cuba, no Vietnam na Coréia e se busca uma unidade justamente na
utopia compartilhada. Ora, nada mais contrário a si mesmo que a esquerda, nada
mais avesso a ideia de unidade, nada mais contraditório e fugidio. Faz-se uma
história capenga, feita de “fatos” pretensamente objetivos e inelutáveis (nunca
leram Marc Bloch) e cria-se essa unidade que demonstra o fracasso e a morte da
utopia comunista. Todavia essa pretensa unidade é apenas o efeito de um
discurso, faz parte de uma certa retórica que se parece muito com o conceito
nefasto de ideologia como pensado por Marx. Fundamentalmente a morte utopia
parece ser cega ou avessa à diferença. Assim, o que importa salientar no que
concerne a história da Rússia, China, Cuba etc., é a sua unidade no fracasso e,
segue o argumento, na morte da utopia que os anima. Resta-nos então, de maneira
inelutável o capitalismo em sua face liberal. Nesse ponto a vulgata
historicista dá espaço ao argumento econômico que assume o lugar cimeiro, tudo
se explica pela economia – essa ciência tão exata e precisa – e, por uma ironia
carregada de significado, nesse ponto se aproximam da forma de explicação do
Marxismo vulgar.
A
economia e seus dogmas (livre mercado, empreendedorismo, estado mínimo,
meritocracia etc.) leva a um determinado tipo de sociedade em que há uma
negação dos direitos usando o argumento da liberdade. Surge de maneira redentora
o indivíduo, não o indivíduo em sentido psicológico – esse que é fundamental as
sociedades – mas sim um tipo de indivíduo que me parece atomizado, apartado ou
liberto dos laços culturais e sociais, detentor de uma vontade poderosa que é o
ideal vitoriano redivivo (o horror das duas grandes guerras que fez esse ideal
cair por terra só é lembrado para se provar por meio da economia que o nazismo era
um movimento de esquerda), um ser racional e guiado por essa luz da ração em
suas escolhas econômicas, um ser mítico que qual um São Miguel vitorioso, pisa
na cabeça de Freud e o declara de uma vez por todas morto. De uma maneira
insidiosa faz-se do egoísmo uma virtude e toda explicação social deve dispensar
a sociedade e a cultura, pois a ação individual é o motor da explicação, da
racionalização da sociedade e da vida dos povos. Retorna-se, talvez sem que se
perceba, a velha e caduca história narrativa que sabia bem que eram os sujeitos
dela: os grandes homens. Eis que o aspecto ideológico desse discurso, dessa
retórica se revela: é a vontade que faz os grandes homens, diante do malho da
vontade nenhum muro pode resistir. Ainda assim esse poder quase demoníaco é
usado em prol de que as coisas permaneçam imóveis.
Zizek,
quando realça a qualidade psicológica da utopia comunista por meio de um
raciocínio Hegeliano, ao nos dizer o óbvio, que essa ideia funciona como um
universal concreto hegeliano, no sentido de ter a potencialidade, a habilidade de
ser reinventada em cada nova situação histórica. Isso aponta que a maneira como
o século XX encarnou essa ideia está morta e fracassou, ninguém nega tal coisa.
Mas a ideia de uma emancipação humana radical está além do tempo e da morte. O que
urge fazer é reinventá-la novamente. Deleuze, ao definir a esquerda, a definiu
justamente pela sua preocupação primeiro com o coletivo, é um tipo de percepção
que se interessa em primeiro lugar não por mim e por meus problemas
individuais, mas que enxerga em primeiro plano os grandes problemas sociais, ao
avesso do que é o endereço postal. Parece-me que a ideia de liberdade, pautada
por um egoísmo insidioso, deixa de lado qualquer noção de solidariedade, e
coloca como o modelo ideal de sociedade a competição (justamente a única
relação ecológica em que os dois lados saem prejudicados). A noção de esquerda
de Deleuze me faz pensar no ideal de Bodsatva do budismo Mahayana, que ao invés
de buscar a libertação individual percebe que não pode libertar-se até que o
último talo de grama atinja o estado de libertação das ilusões.
Se
aceitarmos essa retórica que nos oferece um mundo sem utopias, sem compaixão,
sem direitos (pois podem entravar a liberdade), cujo leitmotiv é o "direito" a
propriedade (que vem em graus, no grau máximo aos super-ricos e no mínimo a todos os demais), verdade dogmática e inquestionável, temo pelo nosso futuro. Nós velhos
militantes precisamos deixar que o século XX acabe, e sem nenhum temor viver
plenamente no século XXI, pois esse século precisa que reinventemos essa ideia emancipação
humana radical. A esquerda vê primeiro o horizonte, nosso horizonte é a nossa
utopia que segue viva e bem, mas ainda não a conhecemos, apenas pelos seus
velhos nomes que já não lhe servem mais, precisamos tomar esse palavra,
comunismo e reinventá-la, ou então seremos mais um desses potentes indivíduos
senhores da razão que devem se contentar em ser obedientes.
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