Vou iniciar esse modesto escrito analisando algumas piadas
que eram contadas sem nenhum pudor na minha infância, por essa época não havia
celulares e nem tampouco redes sociais por onde esse ódio em forma de chiste
pudesse se espalhar (e a manutenção dos mamutes peludos que usávamos pra nos
locomover também tomava muito tempo), mesmo assim eram contadas sem grandes
preocupações ou pudores, sequer era preciso inventar um discurso que as
legitimasse baseado no pressuposto da liberdade de expressão.
A primeira delas começava com a singela pergunta “onde o
cabelo da mulher é mais ruim?” (não é pior não, viu? É mais ruim mesmo),
seguida de uma pausa dramática para dar tempo do interlocutor a quem era
dirigida a espirituosa pergunta pensar que se tratava de uma alusão de teor
sexual aos pelos pubianos femininos (que à exceção das orientais em geral, é
crespo). A deixa para seguir adiante era o constrangimento de quem não queria
dizer em voz alta o nome científico ou vulgar do púbis feminina, esse silêncio
constrangido era cortado pela resposta correta “na África”. Essa é uma piada
que, a mim me parece, sintetiza o que há de pior na nossa cultura, pois consegue
ser: machista, xenofóbica, racista e sem graça. O tipo de piada que esperaríamos
ouvir de um Danilo Gentili com o mal disfarçado intuito de ofender. Perceba a
lógica insidiosa que subjaz a essa piada, é motivo de pudor e vergonha falar
dos pelos femininos (que por sinal nossa cultura procura abolir a todo custo),
mas não é vergonhoso, aliás, é engraçado ser racista. O adjetivo “ruim” é
associado não apenas aos cabelos crespos, mas as mulheres negras e África. O continente
africano é visto como algo monolítico, sem contradições ou uma história e
culturas, é apenas aquele lugar de onde vieram os negros, que por sinal, têm
cabelo “ruim”. Sendo o crespo “ruim”, por oposição o “bom e o belo” se situa do
lado do liso (branco ou índio).
A próxima piada é ainda pior, mas ainda mais reveladora do
nosso racismo trivial e cotidiano. Um negro estava andando de bicicleta por uma
estrada quando ela quebrou. Ele pediu carona a um caminhão que passava
carregado de bolas de boliche e foi em cima da carga. Ao passar por uma cidade
um homem o viu em cima das bolas de boliche e correu a ligar para a polícia e
disse “vocês precisam vir rápido! Tem um caminhão carregado de ovos de negro e
um deles chocou e já roubou uma bicicleta!”. A piada desumaniza o negro, ele
pode até se parecer com um ser humano, mas nasce de “ovos” e já nasce com uma
tara genética que o leva ao roubo. O teor dessa piada expressa com clareza o
que vai na alma do racista; negros não são seres humanos e são naturalmente
propensos ao crime.
Freud, já em 1905, falava sobre os chistes (Witz) como um produto do inconsciente
assim como os sonhos e sintomas, é uma forma de retorno do recalcado em que se
diz (sem dizer realmente, ou sob disfarce) aquilo que realmente se deseja, por
isso provocam um enorme alívio e uma profunda descarga de tensão. A primeira
piada tem algo de chiste no sentido aludido por Freud, pois causa uma certa
tensão ao resvalar em um tema sexual, mas o desvia em direção a um, não tão
velado, racismo. O mesmo Freud, em 1927 escreveu sobre o humor, para a abertura
de um congresso de psicanálise (vê-se tratar-se de um assunto sério),
diferenciando o humor do chiste (Witz).
Na lógica da primeira tópica, o humor se situa já em um estágio pré-consciente,
por ação do super-ego (Über-Ich) para
evitar um sentimento doloroso eminente. Na lógica de Freud nesse momento de sua
obra, ambos estão a serviço do princípio do prazer. O chiste é a habilidade de
descobrir similaridades escondidas, expressas de maneira econômica por meio dos
mecanismos de deslocamento (Verschiebung)
e condensação (Verdichtung). No humor
se procura evitar desprazer causado pelo mecanismo do recalque. Em nosso caso,
creio que existe a expressão de uma cultura que sobrevive a despeito de ter
sido rechaçada formalmente, e que constitui esses sujeitos que contam tais piadas,
pois confirmam seus preconceitos afetivos e lhes dão acesso a um outro abjeto
que finda sendo um reflexo especular distorcido deles mesmos, seu quadro de
Dorian Gray, onde eles veem sua desumanidade e suas piores falhas de caráter no
outro, nesse outro absoluto a quem é negada até mesmo o status de ser humano. Infelizmente,
para essas pessoas, há um certo interdito, pois o racismo não é mais aceito
abertamente, como já o foi.
O racismo já teve até mesmo o verniz de ciência, Lombroso,
um dos pioneiros da psicologia forense, ao examinar os dados das populações
carcerárias e perceber que em sua maioria eram negros, procurou encontrar aí o
protótipo do seu “criminoso nato”. Na tipologia física (assim como se fez na
frenologia e fisiognomia que também gozaram do status de ciência) ele procurou
encontrar as determinantes do comportamento, a invisibilidade de alma se
revelava na carne, ou, em nosso caso, na pele. Desconsiderando a história e o
contexto social dos negros que estavam encarcerados, ele supôs (o que já se
supunha por meio da teologia no período colonial), a inferioridade física e
moral dos negros. Nossa segunda piada revela um parentesco muito próximo com
essas ideias, pois o negro já nasceria com uma propensão ao crime. Essa ideia,
de um criminoso nato, é um dos preconceitos afetivos mais fortes em nossa
sociedade, e é o combustível invisível e insidioso de jornalistas que lucram
com o sofrimento alheio e se fazem de porta-vozes do ódio e da intolerância. Jung,
em um escrito pouco lido, mas fundamental, Presente
e Futuro, assevera que aquilo que compreendemos por autoconhecimento é um
conhecimento muito restrito e na maioria das vezes dependente de fatores
sociais, e por isso tropeça no preconceito de que tal fato não acontece
conosco, com a nossa família ou em nosso meio mais imediato.
Por outro lado, a pessoa se defronta com pretensões ilusórias sobre suposta presença de qualidades que apenas servem para encobrir os verdadeiros fatos (Jung, 2011, p.13).
Esse “outro” é fundamental para mantermos essas aparências,
para nos sentirmos possuidores de uma virtude que na verdade não possuímos,
encarar a individualidade desse outro, passando por cima de nossos desejos quiméricos
e fantasias mórbidas exige que primeiro nos voltemos a nós mesmos e
compreendamos esse outro como um espelho a nos refletir nele vemos nosso ódio,
nossa baixeza e pusilanimidade. Nossa miopia confunde nossos defeitos com a
realidade desse outro, com isso nós roubamos deles o direito a individualidade,
resta, como dizia Caco Antibes “aquela massa marrom”. Lamentavelmente, uma
parte privilegiada de nossa sociedade prefere ainda a saída de Maria Antonieta “se
não tem pães por que não comem bolos?”. Negando a existência do racismo (são
apenas inocentes piadas), e negando a necessidade de um combate a ele. Não se
trata apenas de um viés ideológico, infelizmente, mas de uma mentalidade
largamente enraizada em preconceitos e quimeras as mais irracionais e muito difícil
de ser atacada pela crítica que apela justamente a razão. Fala-se cinicamente
em meritocracia, e citam-se exemplos os mais raros para com eles justificar todo
e qualquer argumento. Temos uma imensa facilidade de esquecer a história, de
esquecer séculos de miséria, sujeição e brutalidade. Ao ponto do historiador
Jacob Gorender ter sugerido que os negros escravos eram sempre tratados como
animais ou objetos, a não ser quando cometiam um crime, aí eram tratados e
julgados como seres humanos. Essa cegueira aludida por Jung nos leva a um
comportamento similar aos de nossos antepassados coloniais, ignoramos os negros
e suas vicissitudes, não ligamos para os massacres promovidos pela polícia nas
periferias (ou os aplaudimos, o que é pior), mas basta que um crime ocorra na
porta de um condomínio de luxo para bradarmos a plenos pulmões. Nesse instante
a capa de invisibilidade desaparece e passamos a nos importar com aquele indivíduo
que até então fora um nada, um ninguém, pois ele deve ser julgado e preso, ou
pior. Nesses momentos de aparente rasgo da nossa civilidade e normalidade,
surge o que há de pior em nossa sociedade, pois rapidamente as ideias caducas
de Lombroso são exumadas e, como zumbis apodrecidos, tentam nos devorar.
O diálogo nessas situações é extremamente comprometido,
pois a nossa inconsciência nos torna prisioneiros de certezas inelutáveis,
nossas opiniões se convertem magicamente em fatos e as ideias mais estapafúrdias
e caducas, alijadas de sua historicidade, passam a ser potentes argumentos,
quase auto evidentes. Quando estamos metidos nessa seara, em que a indigência
argumentativa e moral (essa não percebida) são a regra, precisamos com mais
força ainda da história, precisamos recolocar essas ideias em sua historicidade
e lembrar que nossa nostalgia de um passado melhor e mais belo é uma fantasia
(ela tem todo o direito de existir, mas não podemos nos pautar por ela sem que
seja criticada), precisamos de maneira ainda mais urgente da filosofia para não
termos tantas certezas assim e, duvidando metodicamente, estaremos mais abertos
a ouvir. Como é difícil simplesmente ouvir nos nossos dias! Nossa própria voz
parece ter o efeito de um canto de sereia e nada mais importa (pois a verdade já
está do nosso lado). Precisamos da psicologia, para nos dizer que o
conhecimento do mundo começa com o conhecimento de nossa alma, lá onde medram
preconceitos e ódios, que se tornam mais poderosos quanto mais ignorados, e
agem como demônios a nos possuir. Precisamos lembrar, que não podemos supor que
a nossa psicologia possui uma validade universal, e que outras maneiras de
sentir, pensar, sonhar existem e possuem igual direito a existência.
Criticar o racismo é, ao mesmo tempo, criticar uma ideia
que possui uma história, uma mentalidade social, uma ideologia que está a
serviço de setores de nossa sociedade, uma prática social nefasta e que causa
profundo sofrimento, mas é igualmente criticar a nossa inconsciência que é a
pedra fundamental sobre a qual o racismo repousa, sem esse fundamento ele
desaba.
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