Estamos
em meio a uma crise institucional, política e econômica, mas me ocorre pensar
não a crise, mas numa análise simultaneamente histórica e psicológica, para
refletir sobre como a crise é imaginada. O material de que se faz a história é
a memória, a nossa argamassa, ao mesmo tempo tão sólida e tão diáfana,
evanescente. Nossa memória é influenciada pelos monumentos que erigimos, sejam
eles feitos de pedras ou de palavras. A memória coletiva atual é a negação da
histeria como proposta por Freud em seus primeiros anos, dizia ele que as
histéricas sofriam de reminiscências, nós padecemos pela ausência delas, somos
histéricos ao avesso. Ao debatermos essa crise, implicitamente e de maneira
insidiosa a debatemos como se fosse a primeira e a última das crises. Quando
evocamos a história, o fazemos apenas para ratificar como um efeito retórico a
nossa falta de historia em frases grandiloquentes e vazias como “o maior
escândalo da história”. Frases como esta são reveladoras mais de uma tentativa
de erigir um monumento fúnebre a história do que a de realmente qualificar o
que se passa em nosso tempo, são um monumento à estupidez e que se coloca
ativamente numa posição impossível de costas para aquilo mesmo que parece
evocar para justificar nossa amnésia.
Historiadores
não são, como dizia Marc Bloch, Juízes dos mortos, não somos Osíris. Tampouco somos
juízes dos vivos, pois ao julgar perdemos a oportunidade de compreender, e
devemos ao menos perceber que nossa capacidade hermenêutica, como sociedade, é
baixa, quase nula. A frase a que aludi antes, que representa um gesto de má fé
de quem a produz e de estultice de quem nela crê, é uma negação fundamental da
história, lembremos-nos do que disse Le Goff ao tratar daquilo que reivindicam
os historiadores, eles pretendem que todo fenômeno da atividade humana seja
estudado tendo em conta as condições históricas em que existiram, não é o caso
de explicar o fenômeno por meio dessas condições históricas, estabelecendo uma
relação de causalidade pura, mas recusar a validade de toda explicação que
negligencie as condições históricas. As narrativas sobre a crise fazem
justamente isso de maneira acintosa, evocando a história apenas para melhor
negá-la, numa atitude que, na melhor das hipóteses é perversa. O perverso na
psicanálise é aquele que recusa (Verneinung),
ele conhece a lei, mas a nega. Se formos parcimoniosos com os que criam essas
narrativas, ou seja, considerarmos que compreendem minimamente sobre história,
sua atitude é marcada por esse traço perverso. Tal narrativa, ou a maneira como
a crise é imaginada, é uma narrativa perversa, ou marcada por uma perversidade
que é o avesso do anacronismo, ao invés de ver o passado sempre com as lentes
do presente, enxerga o presente abandonando propositalmente o passado.
A
nossa mídia, aludindo uma vez mais a Le Goff, criam um novo acontecimento e um
novo estatuto do acontecimento histórico, impingindo a história um regresso do
acontecimento. Ainda mais perigoso, a mídia homogeneíza o imaginário social,
tal pasteurização compromete o sentido histórico de nossa sociedade e a
validade de uma verdade histórica. A verdade nos é informada todos os dias pela
televisão e nos cremos, tolamente, testemunhas oculares desses fatos como
acontecem e assim que acontecem, voltamos ao ideal impossível de Rank de uma
história “was eigletlich gewesen”. As
escolhas que são feitas nessas narrativas, para se privilegiar alguns pontos e
sonegar outros, mesmo o cuidado com as palavras usadas, as ênfases e eloquentes
silêncios são sutilezas que a ilusão de testemunha encobrem, pois está tudo ali
e eu estou vendo, presenciando. Esse é um tipo curioso de cegueira, em que é
justamente a possibilidade de ver e a imagem que cegam, ou talvez fosse melhor
dizer, a ilusão de naturalidade dessas imagens. Essa ilusão de naturalidade
desfaz em nosso espírito o desejo de interpretar, pois não há nada a ser
interpretado, está tudo simplesmente lá, tudo às claras. Justamente essa
falsidade luminosa é o que nos cega e compromete o nosso julgamento, nossa
capacidade de compreender. Num deserto espiritual caminhamos em direção a uma
miragem, sem nos percebermos que deserto e miragem se retroalimentam, que o
deserto é fruto da miragem e vice versa. A metáfora da terra devastada (Waste Land) de Eliot nos mostra seu
poder fecundo ao descrever com perfeição o que significa a maneira como essa
crise é imaginada, pois a terra devastada é aquela onde as pessoas vivem vidas
inautênticas. Ao perseguirmos coletivamente essa miragem que é posta diante dos
nossos olhos, sem questionar, sem interpretar, apenas repetindo, dizendo e
fazendo o que outros determinaram para nós, nossa nação se converte nessa terra
inóspita, devastada onde nada cresce.
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