A frase de Simone de Beauvoir que caiu no ENEM tem causado espécie e
celeuma, e, uma vez mais, vemos a terrível polarização que impede o
diálogo em nossa sociedade. As respostas indignadas à frase “não se
nasce mulher, tornar-se mulher”, são imensamente reveladoras. Para além
do velho macartismo, e da “doutrinação marxista” (nesse pensamento
simplificador todo pensamento de esquerda é marxista), surgiram ataques
reveladores, pautados por um determinismo biológico que está na moda no
espírito do ocidente, o velho materialismo médico que William James já
atacava no início do século passado.
Gostaria de oferecer uma
reflexão histórico psicológica dessa reação tão exacerbada. Temos uma
longa história de determinismos, desde Gustave Le Bon, Galton, Lombroso,
em que o peso recai sobre a matéria, o físico e o biológico.
Psiquiatras como Jeanne Pierre Falret, Xavier Bichat e Augustin Morel,
que defendia a tese da “degeneração mental” que imprimia um caráter
hereditário as condições psicológicas, passando por Wilhelm Griesinger, A.
Zeller, e o professor de neuropsiquiatria de Freud Theodor Meynert que
acreditavam piamente que a psiquiatria deveria ser reduzida a anatomia
patológica. Toda a explicação para a loucura e, por tabela, para
diversos outros comportamentos estava no cérebro e em suas localizações,
numa determinação biológica, anatômica. Lombroso falava de um criminoso
nato, o comportamento criminoso era definido ao nascer, novamente o
biológico, Le Bon, que é citado no Mein Kampf de Hittler, também
desdenhava da vontade individual. Desde o último quartel do século XIX
que tentam fazer a biologia nos definir. Mas existiram homens como
James, Freud, Jung, Janet, Charcot que se levantaram contra isso, se
colocaram contra o fisicalismo, o materialismo médico, e, é claro, temos
os filósofos como Simone.
Aqueles que parecem tomar o partido de
Lombroso nos ataques a filósofa, esquecem que “mulher” é igualmente uma
construção histórica e social. Ser mulher hoje não é, culturalmente
falando, o mesmo que ser mulher no tempo de nossos avós. Noções que
parecem naturais como: homem, mulher, família, criança, não o são. Todas
elas são, por certo, influenciadas pela biologia, mas são históricas,
culturais. Entre os povos tribais, o jovem precisava passar por um
cruento ritual para se tornar cultural e psicologicamente homem, ele não
nascia homem, mas se tornava homem. Há um segundo nascimento,
simbolizado nas metáforas dos diversos rituais, como os monges que
raspam as cabeças e se tornam “quase modo genitus”, como recém-nascidos.
Nossa sociedade parece ter perdido seus ritos, parece que estamos
aprisionados, mesmerizados pelo saber médico, pelo tacanho materialismo
médico de um Meynert, ou pior, de um Lombroso.
Cada um de nós é
um ser inacabado, nosso biologia é um ponto de partida e não de chegada.
Temos sempre uma criança em nossa alma, para sempre passível de
crescimento, desenvolvimento, mudança, o puer aeterno dos mitos gregos e
latinos. O pedaço de nossa alma que transcende a história e mesmo o
aparente determinismo biológico, somos seres em construção, cultural e
psicologicamente. Se alguma mulher já nascesse mulher ela teria que se
conformar com a sua sina biológica, seu papel social estaria
pré-estabelecido, determinado pelos seu duplo gene X. Todos nós nascemos
mudos e somos recebidos na cultura, na linguagem que nos cria e nos
recria e nos transforma e, pasmem, nós a transformamos também! Nós nos
tornamos homens e mulheres de nosso tempo, de nossa cultura, de nossa
sociedade e podemos transcender isso até certo ponto e mudar e nos
transformarmos. Antes da grande guerra as mulheres não votavam, há 30
anos uma mulher “desquitada” era uma puta, há 50 anos garotas de 13 anos
já se casavam grávidas, os exemplos podem se multiplicar ad infinitum.
Eu fico feliz que Simone cause incômodo, a filosofia deve incomodar!
Mas para além do mero xingamento, da mera polarização, a filosofia nos
convida a pensar. Mesmo para discordar precisamos pensar. Aqueles que
revivem em seus preconceitos afetivos e desejos quiméricos o que de pior
o materialismo médico produziu, perdem a oportunidade de pensar, de
refletir sobre a frase de Simone, a discordância, meus amigos, é
fundamental a filosofia, discordem, mas antes aceitem o outro e a
diferença e pensem ao invés de serem meros marionetes de preconceitos de
toda espécie. Esse tipo de discurso que tenho visto é estéril, pois é
taxativo e faz parar de pensar. Abram mão, nem que seja por um mero
instante de suas certezas e, talvez, vocês escapem do determinismo do
preconceito, esse mais poderoso do que o determinismo biológico.
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