quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Sobre a estranha e fantástica etimologia de "Petralha"

Qualquer um que possua um mínimo de interesse em política, ou, mesmo que não tenha nem mínimo, já deve ter visto ou ouvido em algum lugar o neologismo “petralha”, utilizado para achincalhar membros ou simpatizantes do PT (partido dos trabalhadores). Devo confessar a minha ignorância quanto a sua origem, mas suspeito que o neologismo tenha sido criado por Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja. Petralha se tornou um xingamento que denota alguém de esquerda – notadamente petistas – envolvidos em corrupção, mas que já ampliou seu significado para abranger qualquer um que não se alinhe a agenda liberal de: redução da maioridade penal, estado mínimo, meritocracia; ou que defenda a agenda de esquerda como: bolsa família e outros programas de transferência de renda, mais médicos, ou qualquer iniciativa do governo, e, em especial, qualquer um que demonstre qualquer defesa do ideário marxista ou comunista, nesse sentido, Thompson, Hobsbawn, Zizek, David Harvey, Noam Chomsky, são todos petralhas.



Ficando razoavelmente claro o campo de significado dessa jovem palavra, passo ao meu interesse em sua etimologia. Mesmo não sendo filólogo, não é complicado perceber que se trata de uma fusão de duas palavras – quase uma condensação freudiana – Petista e metralha. Creio que todos acreditam saber o que petista significa: um membro ou simpatizando do partido dos trabalhadores o PT. Pode parecer simples, mas é bem mais complicado, visto o termo “petista” se referir aos membros de um partido de massas com mais de 1.500.00 filiados, e divido em dezenas de “correntes” internas que disputam de maneira democrática a hegemonia partidária por meio de um processo chamado PED (processo de eleições diretas) em que todos os filiados votam. Logo, “petista” designa céus e infernos, há desde marxistas convictos a trabalhistas moderados de centro esquerda e neo-petistas que se juntaram a agremiação depois da eleição de Lula e que oscilam no espectro ideológico de acordo com suas conveniências. A única coisa que o termo “petista” designa com precisão é alguém filiado ao partido, mas, como vimos, “petralha” pode ser qualquer um com uma camiseta do Che, ou, para não sermos tão seletivos, uma camiseta vermelha.



O termo “metralha” é ainda mais revelador e merece uma consideração mais atenta e meticulosa. Esse termo se originou nos quadrinhos infantis da Disney, mais especificamente das histórias do Tio Patinhas. O herói desse quadrinho estadunidense é um homem riquíssimo, o homem mais rico do mundo e um rematado avarento. Patinhas é um típico “selfmade man”, nasceu na Escócia e teve uma infância pobre, até que lhe caiu em mãos o seu primeiro centavo “sua moedinha número um”, a moeda, imbuída de poderes miraculosos tornou-se um poderoso fetiche e, com muita sorte, imigrando para os Estados Unidos para tomar parte da “corrida do ouro” ele se tornou imensamente rico. Tão estupendamente rico que construi uma imensa caixa forte onde guarda seu dinheiro e, não satisfeito em apenas admirá-lo, nada em uma piscina de moedas. Sua caixa forte, bem como a sua “moedinha número um” é cobiçada por bandidos chamados “irmãos metralha”. Tanto o Tio Patinhas como os irmãos metralhas são alegorias incrivelmente reveladoras de nossa civilização. Todos os membros do bando de assaltantes dos metralhas vêm da mesma família, e todo e qualquer bandido que surja nessas histórias é um parente em algum grau dessa extensa família de facínoras, desde a matriarca até os mais distantes primos, todos fora da lei. Como qualquer pessoa inteligente pode ver por si mesma, subjaz aqui a inocente figura dos antagonistas do Tio Patinhas a ideia de Lombroso de “criminoso nato”. Todos os membros dessa famigerada família são facínoras, todos com suas máscaras pretas e números dependurados no colarinho, já nascem fadados a sua sina de criminosos, e, assim, aprendemos desde cedo que há um tipo físico, biológico, e mesmo um modo de vestir criminoso. Esse preconceito afetivo é uma das ideias insidiosas que mais permeia a nossa cultura. Recentemente a revista Veja fez uma matéria sobre viciados em crack e, o grande destaque, foi uma ex-modelo branca e loira em meio aos viciados. Há algunas anos, o país se chocou com a história da menina rica Suzane von Richtofen que, mesmo sendo jovem, linda, loura, heterossexual e rica assassinou brutalmente seus pais. Por essa época li uma reportagem em que uma jornalista levara a seu editor um caso idêntico ocorrido em uma favela, e ele disse que essa notícia não interessava, mas a jovem Suzane ocupou por meses as primeiras páginas de nossos jornais. Suzane seria o equivalente a Huginho matando a pauladas o Tio Donald. Quando um dos metralhas descumpre a lei, isso não é motivo de espanto, eles nasceram assim e morrerão assim: criminosos. Em nossa jovem nação, é um imponderável que pessoas brancas, ou com alguma distinção, algum traço de nossa nobreza, nossa aristocracia, seja um bandido: juízes, dentistas, médicos estão acima dessa condição que assola apenas um tipo bem específico de pessoa.



Essa premissa cruel tem moldado de maneira insidiosa nossa visão de mundo e se manifesta na etimologia fantástica da palavra “petralha”. Mas não paremos por aqui, a figura de Tio Patinhas é ainda mais reveladora, pois foi por meio de um sortilégio que ele alcançou a fortuna. Se pararmos para pensar, o avarento Patinhas e sua montanha de ouro é talvez o elemento menos conservador nessa revista e o mais revelador das entranhas do “sonho americano”. Vivemos em uma sociedade extremamente excludente, em que, pasmem, 10% da população mundial concentra 87% de toda a riqueza e que 1% da população responde por 48,2% de todos os ativos globais. Patinhas prefigurava essa situação há décadas! Além disso, os seus criadores, nos passam uma mensagem sutil sobre a ideologia da meritocracia: ela só é possível por meio de mágica. Em um mundo normal, desprovido de mágica, alguém pobre provavelmente, por maiores que sejam os seus esforços, será explorado por toda a vida e nunca ficará rico. Há uma estranha ironia aqui, a mesma história nos fornece essas duas visões, que desnudam a nossa sociedade de uma maneira assustadora, esses dois ícones: Patinhas e os metralha, são representações de algumas de nossas mais caras quimeras, do fator subjetivo, mas desconhecido que se interpõe entre nós e a possibilidade enxergar o mundo. O xingamento “petralha” condensa de maneira impressionante todos os nossos piores preconceitos afetivos e desejos quiméricos, bem como, a possessão coletiva por essas ideias que a palavra representa e que sempre nos ameaça de causar uma epidemia psíquica de resultados nefandos.



Tais neologismos expressam-se de uma maneira metonímica e tem efeito similar às palavras mágicas dos primitivos, são “palavras de poder”, quase como uma linguagem arcaica que nos priva da possibilidade entendermos o que estamos dizendo realmente ou de percebermos os sentimentos que expressamos por meio delas. O que significa “petralha”? ninguém sabe afirmar ao certo o complexo ideoafetivo que essa palavra evoca, não pensamos a respeito e não se reflete sobre isso, pois essas “palavras de poder” nos levam de volta ao passado e somos tornados inconscientes outra vez, simplesmente nos entregamos a impressão gerado pelo sentimento causado por essa palavra sem nos darmos conta, nem por um instante, de nossa atroz inconsciência, mas, ainda assim, ao dizermos a palavra mágica nos sentimos redimidos. Nossa preguiça de pensar, nos impede de conscientizarmos os nossos sentimentos e isso é uma necessidade para progredirmos, mas, ao invés disso, continuamos a repetir slogans que, no fundo, não passam de palavras mágicas, mas seu efeito encantatório é o de nos prender a inconsciência.

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