Qualquer
um que possua um mínimo de interesse em política, ou, mesmo que não tenha nem mínimo,
já deve ter visto ou ouvido em algum lugar o neologismo “petralha”, utilizado
para achincalhar membros ou simpatizantes do PT (partido dos trabalhadores). Devo
confessar a minha ignorância quanto a sua origem, mas suspeito que o neologismo
tenha sido criado por Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja. Petralha se
tornou um xingamento que denota alguém de esquerda – notadamente petistas –
envolvidos em corrupção, mas que já ampliou seu significado para abranger
qualquer um que não se alinhe a agenda liberal de: redução da maioridade penal,
estado mínimo, meritocracia; ou que defenda a agenda de esquerda como: bolsa
família e outros programas de transferência de renda, mais médicos, ou qualquer
iniciativa do governo, e, em especial, qualquer um que demonstre qualquer
defesa do ideário marxista ou comunista, nesse sentido, Thompson, Hobsbawn,
Zizek, David Harvey, Noam Chomsky, são todos petralhas.
Ficando
razoavelmente claro o campo de significado dessa jovem palavra, passo ao meu
interesse em sua etimologia. Mesmo não sendo filólogo, não é complicado
perceber que se trata de uma fusão de duas palavras – quase uma condensação
freudiana – Petista e metralha. Creio que todos acreditam saber o que petista
significa: um membro ou simpatizando do partido dos trabalhadores o PT. Pode parecer
simples, mas é bem mais complicado, visto o termo “petista” se referir aos
membros de um partido de massas com mais de 1.500.00 filiados, e divido em
dezenas de “correntes” internas que disputam de maneira democrática a hegemonia
partidária por meio de um processo chamado PED (processo de eleições diretas)
em que todos os filiados votam. Logo, “petista” designa céus e infernos, há
desde marxistas convictos a trabalhistas moderados de centro esquerda e
neo-petistas que se juntaram a agremiação depois da eleição de Lula e que
oscilam no espectro ideológico de acordo com suas conveniências. A única coisa
que o termo “petista” designa com precisão é alguém filiado ao partido, mas, como
vimos, “petralha” pode ser qualquer um com uma camiseta do Che, ou, para não
sermos tão seletivos, uma camiseta vermelha.
O
termo “metralha” é ainda mais revelador e merece uma consideração mais atenta e
meticulosa. Esse termo se originou nos quadrinhos infantis da Disney, mais
especificamente das histórias do Tio Patinhas. O herói desse quadrinho estadunidense
é um homem riquíssimo, o homem mais rico do mundo e um rematado avarento. Patinhas
é um típico “selfmade man”, nasceu na Escócia e teve uma infância pobre, até
que lhe caiu em mãos o seu primeiro centavo “sua moedinha número um”, a moeda,
imbuída de poderes miraculosos tornou-se um poderoso fetiche e, com muita
sorte, imigrando para os Estados Unidos para tomar parte da “corrida do ouro”
ele se tornou imensamente rico. Tão estupendamente rico que construi uma imensa
caixa forte onde guarda seu dinheiro e, não satisfeito em apenas admirá-lo,
nada em uma piscina de moedas. Sua caixa forte, bem como a sua “moedinha número
um” é cobiçada por bandidos chamados “irmãos metralha”. Tanto o Tio Patinhas
como os irmãos metralhas são alegorias incrivelmente reveladoras de nossa
civilização. Todos os membros do bando de assaltantes dos metralhas vêm da
mesma família, e todo e qualquer bandido que surja nessas histórias é um parente
em algum grau dessa extensa família de facínoras, desde a matriarca até os mais
distantes primos, todos fora da lei. Como qualquer pessoa inteligente pode ver
por si mesma, subjaz aqui a inocente figura dos antagonistas do Tio Patinhas a
ideia de Lombroso de “criminoso nato”. Todos os membros dessa famigerada família
são facínoras, todos com suas máscaras pretas e números dependurados no
colarinho, já nascem fadados a sua sina de criminosos, e, assim, aprendemos
desde cedo que há um tipo físico, biológico, e mesmo um modo de vestir
criminoso. Esse preconceito afetivo é uma das ideias insidiosas que mais
permeia a nossa cultura. Recentemente a revista Veja fez uma matéria sobre
viciados em crack e, o grande destaque, foi uma ex-modelo branca e loira em
meio aos viciados. Há algunas anos, o país se chocou com a história da menina
rica Suzane von Richtofen que, mesmo sendo jovem, linda, loura, heterossexual e
rica assassinou brutalmente seus pais. Por essa época li uma reportagem em que
uma jornalista levara a seu editor um caso idêntico ocorrido em uma favela, e
ele disse que essa notícia não interessava, mas a jovem Suzane ocupou por meses
as primeiras páginas de nossos jornais. Suzane seria o equivalente a Huginho
matando a pauladas o Tio Donald. Quando um dos metralhas descumpre a lei, isso
não é motivo de espanto, eles nasceram assim e morrerão assim: criminosos. Em nossa
jovem nação, é um imponderável que pessoas brancas, ou com alguma distinção,
algum traço de nossa nobreza, nossa aristocracia, seja um bandido: juízes,
dentistas, médicos estão acima dessa condição que assola apenas um tipo bem
específico de pessoa.
Essa
premissa cruel tem moldado de maneira insidiosa nossa visão de mundo e se
manifesta na etimologia fantástica da palavra “petralha”. Mas não paremos por
aqui, a figura de Tio Patinhas é ainda mais reveladora, pois foi por meio de um
sortilégio que ele alcançou a fortuna. Se pararmos para pensar, o avarento
Patinhas e sua montanha de ouro é talvez o elemento menos conservador nessa
revista e o mais revelador das entranhas do “sonho americano”. Vivemos em uma
sociedade extremamente excludente, em que, pasmem, 10% da população mundial
concentra 87% de toda a riqueza e que 1% da população responde por 48,2% de
todos os ativos globais. Patinhas prefigurava essa situação há décadas! Além
disso, os seus criadores, nos passam uma mensagem sutil sobre a ideologia da
meritocracia: ela só é possível por meio de mágica. Em um mundo normal,
desprovido de mágica, alguém pobre provavelmente, por maiores que sejam os seus
esforços, será explorado por toda a vida e nunca ficará rico. Há uma estranha
ironia aqui, a mesma história nos fornece essas duas visões, que desnudam a
nossa sociedade de uma maneira assustadora, esses dois ícones: Patinhas e os
metralha, são representações de algumas de nossas mais caras quimeras, do fator
subjetivo, mas desconhecido que se interpõe entre nós e a possibilidade
enxergar o mundo. O xingamento “petralha” condensa de maneira impressionante
todos os nossos piores preconceitos afetivos e desejos quiméricos, bem como, a possessão coletiva por essas ideias que a palavra representa e que sempre nos
ameaça de causar uma epidemia psíquica de resultados nefandos.
Tais
neologismos expressam-se de uma maneira metonímica e tem efeito similar às
palavras mágicas dos primitivos, são “palavras de poder”, quase como uma
linguagem arcaica que nos priva da possibilidade entendermos o que estamos
dizendo realmente ou de percebermos os sentimentos que expressamos por meio
delas. O que significa “petralha”? ninguém sabe afirmar ao certo o complexo
ideoafetivo que essa palavra evoca, não pensamos a respeito e não se reflete
sobre isso, pois essas “palavras de poder” nos levam de volta ao passado e
somos tornados inconscientes outra vez, simplesmente nos entregamos a impressão
gerado pelo sentimento causado por essa palavra sem nos darmos conta, nem por
um instante, de nossa atroz inconsciência, mas, ainda assim, ao dizermos a
palavra mágica nos sentimos redimidos. Nossa preguiça de pensar, nos impede de
conscientizarmos os nossos sentimentos e isso é uma necessidade para
progredirmos, mas, ao invés disso, continuamos a repetir slogans que, no fundo,
não passam de palavras mágicas, mas seu efeito encantatório é o de nos prender
a inconsciência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário