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com a frase do humorista Gregório Duvivier, proferida em entrevista concedida a
Jô Soares, ao comentar o episódio em que foi hostilizado por ser de esquerda e
estar almoçando no Leblon. Algo parecido, mas ainda mais vil e desonesto
ocorreu em março desse ano, a jovem deputada do PCdoB Manuela D’ávlia foi assaltada
no domingo dia 9 e, quando essa notícia atingiu as redes sociais ela foi vítima
de todos os tipos de comentários maldosos – até mesmo alguns afirmando que ela
deveria ter sido sexualmente atacada – pois Manuela faz parte de um partido
comunista e defende os direitos humanos (que por sinal foram criados pelo
liberalismo burguês durante o iluminismo filosófico). Mas, antes de atirar a
primeira pedra nos chacais atacadores de Manuela, vou lhes contar uma anedota
da minha juventude, para mostrar o quão “demasiado humana” é essa reação e, o
quão demasiada pueril ela também o é.
Estava
na faculdade de história e tinha um colega de quem gostava bastante chamado
Leandro Mathews Gascon (ele vinha de uma família judia irlandesa, daí o
sobrenome um tanto exótico) e tínhamos o hábito de não perder uma oportunidade
de fazer troça com as pessoas que julgávamos hipócritas ou desonestas
intelectualmente. Pois um dia, um rapaz que era anarquista – e que torrava a
paciência de todos com o seu discurso anarquista – apareceu na universidade
vendendo um monte de livrinhos vermelhos sobre anarquismo. Achamos aquilo o
cumulo do absurdo – lembrem de que éramos jovens inconsequentes – um anarquista
com práticas capitalistas!? Vendendo livros! Absurdo dos absurdos! Ele precisava
aprender uma lição, e nós íamos ensinar essa lição. Eu e o Leandro – também conhecido
como sapão – fomos até a banquinha de livros, cada um de nós pegou uns cinco
livros e saímos do pátio, anarquicamente, sem pagar.
Acontece
que ao presenciar a insólita cena do roubo de livros de anarquia ele ficou tão
perplexo que não conseguiu agir, outro anarquista que estava ao seu lado lhe
deu um conselho que ele resolveu seguir, disse ele “não vai atrás não, eles não
são doidos não, vão já voltar”. Anarquistas não são os melhores para
compreender o caráter das pessoas e sim, nós éramos doidos e infantis e
inconsequentes. Esperávamos que ele viesse reclamar os livros e nós iríamos
jogar toda a hipocrisia na cara dele, mas, como não apareceu, fomos cada um
para a sua casa, livros e tudo. Quando João Paulo viu que tínhamos fugido com o
“produto do nosso roubo” ele se desesperou, imaginou o pior, pois teria que
pagar pelos livros furtados. O outro anarquista lhe ofereceu mais um excelente
conselho “chama a polícia, cara! Isso o que eles fizeram é roubo!”. Por mais irônico
que pareça um anarquista chamar a polícia, ironia das ironias, ele estava
certo, nós roubamos os livros. No dia seguinte encontramos um João Paulo
emburrado e chateado e lhe devolvemos os livros, ele não disse uma palavra e
seguiu sua vida de anarquista meia boca que vendia livros de anarquismo. Acontece
que estávamos errados, e, caso você esteja lendo isso, mil desculpas pelo incidente
com os seus livros, João Paulo. Em primeiro lugar, eu e o Sapão não podíamos
nos arvorar a ser a “palmatória do mundo”, ninguém pode, a nossa atitude foi
infantil, egoísta e inconsequente. Não bastasse tudo isso, as pessoas são
contraditórias, paradoxais e, na maior parte do tempo, incoerentes. Coerência absoluta
é algo demoníaco e desumano.
Quem
defende a anarquia não defende o roubo, o comércio e o uso de dinheiro não é o
que caracteriza o capitalismo e nem foi inventado no sistema capitalista (leiam
Henri Pirrene). Quem defende os direitos humanos não defende bandidos, na
verdade defende todos os seres humanos e defende uma ideia liberal – a de que
todos nascemos iguais e portadores de direitos inalienáveis. Quem defende o
comunismo não luta pela universalização da pobreza, mas, para usar a expressão
de Zizek,
Comunismo é uma ideia eterna, então funciona como um universal concreto hegeliano, ele é eterno não no sentido de uma série de características abstratas que podem ser aplicadas a todas as situações, mas no sentido de ter a potencialidade, a habilidade de ser reinventada em cada nova situação histórica. Então, minha primeira conclusão, para ser verdadeiro com o que é eterno no comunismo, esse impulso em direção a emancipação humana radical, que persiste em toda a história, dos tempos antigos de espartacus e assim por diante, para manter essa ideia universal viva é preciso reinventá-la de novo e de novo, e isso se mantém especialmente hoje.
Quem
luta pelo comunismo não defende uma sociedade totalitária aos moldes da Rússia
Stalinista, mas combate em prol de uma ideia de emancipação humana radical,
pela construção de uma sociedade em que a liberdade seja um valor supremo. Mas
ainda estamos no jardim de infância da discussão política, ainda olhamos para
os nossos irmãos, aqueles de quem discordamos sem nem mesmo nos darmos ao
trabalho de tentar compreendê-los e dizemos “bem feito!”. Agimos como crianças
mimadas, que fazem birra e armarm escândalos sempre que não conseguem o que
desejam, e que vivem em um mundo egoísta e pautado pela mais atroz inconsciência.
Nossa infantilidade não nos permite
reconhecer a individualidade do nosso próximo, nossa inconsciência é
fundamentalmente um profundo desconhecimento acerca de nós mesmos. Nossa inconsciência
significa, como afiançou Jung, uma identificação com a psique coletiva que
acarreta um sentimento de validez geral que nos leva a ignorar por completo as
diferenças pessoais dos demais. Com isso sentimos um menosprezo implacável
diante das diferenças individuais, pois supomos, erroneamente, que nossa própria
psicologia tem uma validade universal e quando não a encontramos nos demais,
eles certamente estão errados, somos cegos para o outro, enquanto a nossa
individualidade padece de uma perigosa asfixia, nos esforçamos por asfixiar a
individualidade de nosso próximo. Os elementos individuais que poderiam nos
levar a um progresso moral, a capacidade de reconhecer o outro, se afogam no
oceano do inconsciente onde se transformam em algo pernicioso, destrutivo e anárquico.
E
assim seguimos discutindo política no playgroud das redes sociais, empurrando
nossos amigos e jogando barro no rosto daqueles que nos desagradam, e, o pior,
temos certeza absoluta de que essas convicções estão certas, sem nos darmos
conta de que nunca pensamos essas convicções, mas que somos pensados por elas. E
assim, continuamos a não nos compadecer de uma jovem que foi vítima de violência,
ora bolas, ela não concorda comigo, logo, deveria ter sido pior! Eu só posso
lamentar, pois a razão tem muito pouca força nessa terra de sombras lúgubre que
alimenta tanto ódio e tamanha incompreensão. Lamentar e reconhecer a minha
infantilidade e lutar por suplantá-la, além de escrever um pouco sobre os
pequenos progressos e grandes retrocessos que acontecem no teatro da minha
alma, quem sabe alguém se sinta tocado? Não estou aqui para julgar ou condenar
os ferozes detratores de Manuela, mas para lhes dizer que eu compreendo, já fiz
o mesmo e, sem o saber, vira e mexe o faço novamente, mas, isso eu sei, esses
atos são infantis e indignos e eu me solidarizo com você Manuela e com Gregório. Espero que
estejam bem e que nada de mal lhes aconteça e que vocês saibam compreender e
perdoar esses que te querem mal, sua luta também é por eles, nunca se esqueçam
disso.
Beleza. Pensando a esquerda com mais coerência. Ajuda a manter os pés no chão!
ResponderExcluiras críticas dos amigos ajudam a manter os pés no chão, algo pelo qual sou muito grato
ExcluirHeráclito parabéns pelo o blog, seus textos são um alento. Há outra rede social/site em que você faz publicações?
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