sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Esquerda Caviar uma ova!

Inicio com a frase do humorista Gregório Duvivier, proferida em entrevista concedida a Jô Soares, ao comentar o episódio em que foi hostilizado por ser de esquerda e estar almoçando no Leblon. Algo parecido, mas ainda mais vil e desonesto ocorreu em março desse ano, a jovem deputada do PCdoB Manuela D’ávlia foi assaltada no domingo dia 9 e, quando essa notícia atingiu as redes sociais ela foi vítima de todos os tipos de comentários maldosos – até mesmo alguns afirmando que ela deveria ter sido sexualmente atacada – pois Manuela faz parte de um partido comunista e defende os direitos humanos (que por sinal foram criados pelo liberalismo burguês durante o iluminismo filosófico). Mas, antes de atirar a primeira pedra nos chacais atacadores de Manuela, vou lhes contar uma anedota da minha juventude, para mostrar o quão “demasiado humana” é essa reação e, o quão demasiada pueril ela também o é.



Estava na faculdade de história e tinha um colega de quem gostava bastante chamado Leandro Mathews Gascon (ele vinha de uma família judia irlandesa, daí o sobrenome um tanto exótico) e tínhamos o hábito de não perder uma oportunidade de fazer troça com as pessoas que julgávamos hipócritas ou desonestas intelectualmente. Pois um dia, um rapaz que era anarquista – e que torrava a paciência de todos com o seu discurso anarquista – apareceu na universidade vendendo um monte de livrinhos vermelhos sobre anarquismo. Achamos aquilo o cumulo do absurdo – lembrem de que éramos jovens inconsequentes – um anarquista com práticas capitalistas!? Vendendo livros! Absurdo dos absurdos! Ele precisava aprender uma lição, e nós íamos ensinar essa lição. Eu e o Leandro – também conhecido como sapão – fomos até a banquinha de livros, cada um de nós pegou uns cinco livros e saímos do pátio, anarquicamente, sem pagar.



Acontece que ao presenciar a insólita cena do roubo de livros de anarquia ele ficou tão perplexo que não conseguiu agir, outro anarquista que estava ao seu lado lhe deu um conselho que ele resolveu seguir, disse ele “não vai atrás não, eles não são doidos não, vão já voltar”. Anarquistas não são os melhores para compreender o caráter das pessoas e sim, nós éramos doidos e infantis e inconsequentes. Esperávamos que ele viesse reclamar os livros e nós iríamos jogar toda a hipocrisia na cara dele, mas, como não apareceu, fomos cada um para a sua casa, livros e tudo. Quando João Paulo viu que tínhamos fugido com o “produto do nosso roubo” ele se desesperou, imaginou o pior, pois teria que pagar pelos livros furtados. O outro anarquista lhe ofereceu mais um excelente conselho “chama a polícia, cara! Isso o que eles fizeram é roubo!”. Por mais irônico que pareça um anarquista chamar a polícia, ironia das ironias, ele estava certo, nós roubamos os livros. No dia seguinte encontramos um João Paulo emburrado e chateado e lhe devolvemos os livros, ele não disse uma palavra e seguiu sua vida de anarquista meia boca que vendia livros de anarquismo. Acontece que estávamos errados, e, caso você esteja lendo isso, mil desculpas pelo incidente com os seus livros, João Paulo. Em primeiro lugar, eu e o Sapão não podíamos nos arvorar a ser a “palmatória do mundo”, ninguém pode, a nossa atitude foi infantil, egoísta e inconsequente. Não bastasse tudo isso, as pessoas são contraditórias, paradoxais e, na maior parte do tempo, incoerentes. Coerência absoluta é algo demoníaco e desumano.



Quem defende a anarquia não defende o roubo, o comércio e o uso de dinheiro não é o que caracteriza o capitalismo e nem foi inventado no sistema capitalista (leiam Henri Pirrene). Quem defende os direitos humanos não defende bandidos, na verdade defende todos os seres humanos e defende uma ideia liberal – a de que todos nascemos iguais e portadores de direitos inalienáveis. Quem defende o comunismo não luta pela universalização da pobreza, mas, para usar a expressão de Zizek,



Comunismo é uma ideia eterna, então funciona como um universal concreto hegeliano, ele é eterno não no sentido de uma série de características abstratas que podem ser aplicadas a todas as situações, mas no sentido de ter a potencialidade, a habilidade de ser reinventada em cada nova situação histórica. Então, minha primeira conclusão, para ser verdadeiro com o que é eterno no comunismo, esse impulso em direção a emancipação humana radical, que persiste em toda a história, dos tempos antigos de espartacus e assim por diante, para manter essa ideia universal viva é preciso reinventá-la de novo e de novo, e isso se mantém especialmente hoje.


Quem luta pelo comunismo não defende uma sociedade totalitária aos moldes da Rússia Stalinista, mas combate em prol de uma ideia de emancipação humana radical, pela construção de uma sociedade em que a liberdade seja um valor supremo. Mas ainda estamos no jardim de infância da discussão política, ainda olhamos para os nossos irmãos, aqueles de quem discordamos sem nem mesmo nos darmos ao trabalho de tentar compreendê-los e dizemos “bem feito!”. Agimos como crianças mimadas, que fazem birra e armarm escândalos sempre que não conseguem o que desejam, e que vivem em um mundo egoísta e pautado pela mais atroz inconsciência.  Nossa infantilidade não nos permite reconhecer a individualidade do nosso próximo, nossa inconsciência é fundamentalmente um profundo desconhecimento acerca de nós mesmos. Nossa inconsciência significa, como afiançou Jung, uma identificação com a psique coletiva que acarreta um sentimento de validez geral que nos leva a ignorar por completo as diferenças pessoais dos demais. Com isso sentimos um menosprezo implacável diante das diferenças individuais, pois supomos, erroneamente, que nossa própria psicologia tem uma validade universal e quando não a encontramos nos demais, eles certamente estão errados, somos cegos para o outro, enquanto a nossa individualidade padece de uma perigosa asfixia, nos esforçamos por asfixiar a individualidade de nosso próximo. Os elementos individuais que poderiam nos levar a um progresso moral, a capacidade de reconhecer o outro, se afogam no oceano do inconsciente onde se transformam em algo pernicioso, destrutivo e anárquico.



E assim seguimos discutindo política no playgroud das redes sociais, empurrando nossos amigos e jogando barro no rosto daqueles que nos desagradam, e, o pior, temos certeza absoluta de que essas convicções estão certas, sem nos darmos conta de que nunca pensamos essas convicções, mas que somos pensados por elas. E assim, continuamos a não nos compadecer de uma jovem que foi vítima de violência, ora bolas, ela não concorda comigo, logo, deveria ter sido pior! Eu só posso lamentar, pois a razão tem muito pouca força nessa terra de sombras lúgubre que alimenta tanto ódio e tamanha incompreensão. Lamentar e reconhecer a minha infantilidade e lutar por suplantá-la, além de escrever um pouco sobre os pequenos progressos e grandes retrocessos que acontecem no teatro da minha alma, quem sabe alguém se sinta tocado? Não estou aqui para julgar ou condenar os ferozes detratores de Manuela, mas para lhes dizer que eu compreendo, já fiz o mesmo e, sem o saber, vira e mexe o faço novamente, mas, isso eu sei, esses atos são infantis e indignos e eu me solidarizo com você Manuela e com Gregório. Espero que estejam bem e que nada de mal lhes aconteça e que vocês saibam compreender e perdoar esses que te querem mal, sua luta também é por eles, nunca se esqueçam disso.

3 comentários:

  1. Beleza. Pensando a esquerda com mais coerência. Ajuda a manter os pés no chão!

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    1. as críticas dos amigos ajudam a manter os pés no chão, algo pelo qual sou muito grato

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  2. Heráclito parabéns pelo o blog, seus textos são um alento. Há outra rede social/site em que você faz publicações?

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