Meu
grande amigo e parceiro, Rodrigo Passolargo, algumas vezes já me instigou a
falar sobre o meu processo criativo, mas eu sempre refutei, um tanto incomodado
pela pergunta, que não podia falar nada a respeito, visto depender em larga
medida da inspiração. Todos aqueles que possuem uma criatividade pródiga, também
conhecem bem sua natureza mercurial e quase demoníaca, sabem, por experiência
própria, que a vontade e a criatividade dão coisas distintas. A posição de alguém
criativo é, muito mais, a de alguém que observa algo de invisível e inefável,
que parece se passar em nossa mais profunda intimidade, mas que escapa ao nosso
controle. Sua natureza é fugidia, arisca e indomável, aqueles que são tocados
por essa natureza estranha e caprichosa, logo se dão conta de que veem e
escutam coisas invisíveis e de uma natureza que ultrapassa aquela da
materialidade vulgar, mas que, paradoxalmente, anseia por se encarnar em nosso
mundo, anseia por comunicar algo aos demais, pois esse espírito pode falar com
poucos, mas anseia por ser ouvido por muitos. Essa relação é delicada, e deve
ser protegida, como a prima matéria na retorta do alquimista, resguardada de
interferências exteriores, pois sua natureza é, a princípio, frágil. Somente depois
da laboriosa transformação ela pode enfrentar as agruras do mundo, nunca antes.
O autor, nesse caso, é um mero servo, que permite que tais coisas possam ser
reconhecidas por todos, que, ao finalmente poder vê-las, as reconhecem de
imediato, pois já as intuíam há tempos, sem, contudo, poder dizer do que se
tratava.
Meu
amigo Rodrigo, em sua insistência, conseguiu arrancar de mim a “inspiração”
inicial para escrever o meu romance OBAKEMONO. Isso não significa que se trata
de uma “fórmula” para escrever romances de fantasia, nem, tampouco, que seja a
minha “fórmula”, quem chegar a essa conclusão equivocada certamente não
compreendeu nada do que afirmei antes... Mas, deixando de tantos prolegômenos,
eu leio Monteiro Lobato desde os 9 anos, não é exagero afirmar que as palavras
desse homem moldaram e marcaram de maneira indelével a minha alma. Meu amor por
história, filosofia, mitologia tudo isso pode ser rastreado até Lobato, minha dívida
para com ele é enorme e impagável. Acontece que anos depois, comecei a ler
Sandman, ao mesmo tempo em que estudava de maneira diletante budismo, taoismo,
orientalismo, ocultismo e toda sorte de coisas dessa ordem. À medida que ia
lendo Sandman, de Neil Gaiman, minha dedicação a esses assuntos aumentava, e,
com isso, minhas leituras se tornavam mais especializadas, é debalde falar que
Jung e Campbell foram, e são, leituras fundamentais para a minha formação, mas
essa história necessita de um outro autor, Mircea Eliade.
Quando
li uma passagem de Sandman, ela me causou um impacto insuspeito e se gravou na
minha memória, Loki e Puck queimavam uma criança nascida no mundo dos sonhos até
que as chamas consumissem a sua mortalidade. Algum tempo depois, eu lia O Conhecimento
Sagrado de Todas as Eras, de Eliade, quando me deparo com uma narrativa mítica
idêntica aquela usada por Neil Gaiman, tratava-se de um dos mitos relacionados
aos mistérios dos Elêusis, em que Deméter, disfarçada de mortal, tomava conta
de um bebê, e todas as noites o colocava no fogo de uma lareira com o intuito de
queimar sua mortalidade e deixar apenas o aspecto divino de sua constituição,
tornando-o imortal. A princípio eu fiquei perplexo, mas logo algo me disse “isso
não é novo, para você”, não demorou para que eu me recordasse de Monteiro
Lobato, que já fazia uso de tal recurso muito antes do genial Neil Gaiman, bem,
eu deixei que essa revelação queimasse no meu íntimo.
Tempos
depois, estava no mestrado em Psicologia, passando por uma das fases mais difíceis
e complicadas da minha vida até então, quando me deparei com a lenda de
Minamoto no Yoshitsune e a famosa batalha naval de Dan no Ura contra o clã Taira.
Nessa fatídica batalha, Yoshitsune conseguiu derrotar seus inimigos e livrar o Japão
de seu jugo, mas a espada Murakumo no Tsurugi (Kusanagi) foi perdida, jogada ao
mar e desapareceu em suas profundezas. Essa lacuna (ou ao menos assim me
pareceu) foi um convite irresistível para continuar o mito, prosseguir do ponto
onde ele tinha parado, descobrindo o destino da espada sagrada, herança de
Amaterasu. Ainda durante o mestrado eu escrevi os três primeiros romances da série
em que OBAKEMONO é o primeiro – escrevi outros também, com outras temáticas,
mas apenas para me distrair, dificilmente serão publicados – e, depois
continuei escrevendo. Meu primeiro leitor foi o meu amigo e parceiro Filipe
Jesuíno, que sempre me incentivou a publicá-los, mas. Sabe-se lá por quais
motivos, sempre fui relutante a esse respeito.
Além
da história de Yoshitsune, alinhavei em minha própria obra diversos mitos, direta
ou indiretamente, mais de uma década de estudos de história das religiões e
mitologia comparada, estavam borbulhando em minha alma e se transformando em
uma nova velha história, mas contada por mim, se alimentando da minha vida e
das minhas experiências para criar algo novo, assentado sobre bases as mais
arcaicas e veneráveis possíveis, dando nova vida a antigos espíritos e demônios,
conhecendo novos heróis e dialogando com deuses e deusas de idade venerável. A maneira
como tudo isso tomou forma ainda é para mim um mistério, muitos escritores já
sabem exatamente como suas obras vão findar, eu, ao contrário, nunca sei. Costumo
ser surpreendido pelas reviravoltas da trama, e o final da história é, para
mim, tão misterioso quanto para os meus leitores.
Não sei ao certo se, depois desse curto escrito, fui
bem sucedido em explicar a maneira como eu escrevo, entretanto creio que isso é
o mais próximo que consigo descrever dos mistérios que presencio quando
escrevo. Escrever, todavia, não é apenas inspiração divina – ou demoníaca – mas
também trabalho duro, por certo há um deleite em ir colocando uma palavra
diante da outra até que algo tome forma, mas sem uma profunda dedicação a esse
artesanato, pouco ou nada de valor se produz. As musas, por mais que sejam
caprichosas, parecem favorecer aqueles que se dedicam de coração ao árduo
trabalho de ouvi-las.
Parece que dá trabalho ouvir essas musas, hein? Mas ainda bem que tem gente para realizá-lo, cara. O resultado é uma beleza... Continue temperante e de ouvidos abertos. Quem ganha somos nós!
ResponderExcluirTenho que dar ouvidos também a um dos meus maiores incentivadores! Obrigado Filipe
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