segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Processo Criativo

Meu grande amigo e parceiro, Rodrigo Passolargo, algumas vezes já me instigou a falar sobre o meu processo criativo, mas eu sempre refutei, um tanto incomodado pela pergunta, que não podia falar nada a respeito, visto depender em larga medida da inspiração. Todos aqueles que possuem uma criatividade pródiga, também conhecem bem sua natureza mercurial e quase demoníaca, sabem, por experiência própria, que a vontade e a criatividade dão coisas distintas. A posição de alguém criativo é, muito mais, a de alguém que observa algo de invisível e inefável, que parece se passar em nossa mais profunda intimidade, mas que escapa ao nosso controle. Sua natureza é fugidia, arisca e indomável, aqueles que são tocados por essa natureza estranha e caprichosa, logo se dão conta de que veem e escutam coisas invisíveis e de uma natureza que ultrapassa aquela da materialidade vulgar, mas que, paradoxalmente, anseia por se encarnar em nosso mundo, anseia por comunicar algo aos demais, pois esse espírito pode falar com poucos, mas anseia por ser ouvido por muitos. Essa relação é delicada, e deve ser protegida, como a prima matéria na retorta do alquimista, resguardada de interferências exteriores, pois sua natureza é, a princípio, frágil. Somente depois da laboriosa transformação ela pode enfrentar as agruras do mundo, nunca antes. O autor, nesse caso, é um mero servo, que permite que tais coisas possam ser reconhecidas por todos, que, ao finalmente poder vê-las, as reconhecem de imediato, pois já as intuíam há tempos, sem, contudo, poder dizer do que se tratava.

Meu amigo Rodrigo, em sua insistência, conseguiu arrancar de mim a “inspiração” inicial para escrever o meu romance OBAKEMONO. Isso não significa que se trata de uma “fórmula” para escrever romances de fantasia, nem, tampouco, que seja a minha “fórmula”, quem chegar a essa conclusão equivocada certamente não compreendeu nada do que afirmei antes... Mas, deixando de tantos prolegômenos, eu leio Monteiro Lobato desde os 9 anos, não é exagero afirmar que as palavras desse homem moldaram e marcaram de maneira indelével a minha alma. Meu amor por história, filosofia, mitologia tudo isso pode ser rastreado até Lobato, minha dívida para com ele é enorme e impagável. Acontece que anos depois, comecei a ler Sandman, ao mesmo tempo em que estudava de maneira diletante budismo, taoismo, orientalismo, ocultismo e toda sorte de coisas dessa ordem. À medida que ia lendo Sandman, de Neil Gaiman, minha dedicação a esses assuntos aumentava, e, com isso, minhas leituras se tornavam mais especializadas, é debalde falar que Jung e Campbell foram, e são, leituras fundamentais para a minha formação, mas essa história necessita de um outro autor, Mircea Eliade.

Quando li uma passagem de Sandman, ela me causou um impacto insuspeito e se gravou na minha memória, Loki e Puck queimavam uma criança nascida no mundo dos sonhos até que as chamas consumissem a sua mortalidade. Algum tempo depois, eu lia O Conhecimento Sagrado de Todas as Eras, de Eliade, quando me deparo com uma narrativa mítica idêntica aquela usada por Neil Gaiman, tratava-se de um dos mitos relacionados aos mistérios dos Elêusis, em que Deméter, disfarçada de mortal, tomava conta de um bebê, e todas as noites o colocava no fogo de uma lareira com o intuito de queimar sua mortalidade e deixar apenas o aspecto divino de sua constituição, tornando-o imortal. A princípio eu fiquei perplexo, mas logo algo me disse “isso não é novo, para você”, não demorou para que eu me recordasse de Monteiro Lobato, que já fazia uso de tal recurso muito antes do genial Neil Gaiman, bem, eu deixei que essa revelação queimasse no meu íntimo.

Tempos depois, estava no mestrado em Psicologia, passando por uma das fases mais difíceis e complicadas da minha vida até então, quando me deparei com a lenda de Minamoto no Yoshitsune e a famosa batalha naval de Dan no Ura contra o clã Taira. Nessa fatídica batalha, Yoshitsune conseguiu derrotar seus inimigos e livrar o Japão de seu jugo, mas a espada Murakumo no Tsurugi (Kusanagi) foi perdida, jogada ao mar e desapareceu em suas profundezas. Essa lacuna (ou ao menos assim me pareceu) foi um convite irresistível para continuar o mito, prosseguir do ponto onde ele tinha parado, descobrindo o destino da espada sagrada, herança de Amaterasu. Ainda durante o mestrado eu escrevi os três primeiros romances da série em que OBAKEMONO é o primeiro – escrevi outros também, com outras temáticas, mas apenas para me distrair, dificilmente serão publicados – e, depois continuei escrevendo. Meu primeiro leitor foi o meu amigo e parceiro Filipe Jesuíno, que sempre me incentivou a publicá-los, mas. Sabe-se lá por quais motivos, sempre fui relutante a esse respeito.

Além da história de Yoshitsune, alinhavei em minha própria obra diversos mitos, direta ou indiretamente, mais de uma década de estudos de história das religiões e mitologia comparada, estavam borbulhando em minha alma e se transformando em uma nova velha história, mas contada por mim, se alimentando da minha vida e das minhas experiências para criar algo novo, assentado sobre bases as mais arcaicas e veneráveis possíveis, dando nova vida a antigos espíritos e demônios, conhecendo novos heróis e dialogando com deuses e deusas de idade venerável. A maneira como tudo isso tomou forma ainda é para mim um mistério, muitos escritores já sabem exatamente como suas obras vão findar, eu, ao contrário, nunca sei. Costumo ser surpreendido pelas reviravoltas da trama, e o final da história é, para mim, tão misterioso quanto para os meus leitores.

Não sei ao certo se, depois desse curto escrito, fui bem sucedido em explicar a maneira como eu escrevo, entretanto creio que isso é o mais próximo que consigo descrever dos mistérios que presencio quando escrevo. Escrever, todavia, não é apenas inspiração divina – ou demoníaca – mas também trabalho duro, por certo há um deleite em ir colocando uma palavra diante da outra até que algo tome forma, mas sem uma profunda dedicação a esse artesanato, pouco ou nada de valor se produz. As musas, por mais que sejam caprichosas, parecem favorecer aqueles que se dedicam de coração ao árduo trabalho de ouvi-las.

2 comentários:

  1. Parece que dá trabalho ouvir essas musas, hein? Mas ainda bem que tem gente para realizá-lo, cara. O resultado é uma beleza... Continue temperante e de ouvidos abertos. Quem ganha somos nós!

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    1. Tenho que dar ouvidos também a um dos meus maiores incentivadores! Obrigado Filipe

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