Eu
tenho uma condição médica, que acredito seja um defeito de nascença, chamada
hérnia de hiato, isso causa algo chamado refluxo, que é um tipo muito forte e
incômodo de azia. O caso é que, por muito, muito tempo, eu acreditei que jamais
havia sentido azia. Quando fui fazer exames para determinar se eu estava ou não
com refluxo, um desses exames era um tubo enfiado pelo meu nariz e que descia
pela minha garganta esôfago abaixo até o estômago e uma caixinha com algum
aparelho eletrônico que, pelas próximas 24 horas iria monitorar objetivamente
cada um dos episódios de refluxo que eu tivesse. Eles também me deram uma
espécie de controle remoto, com botões, cada vez que eu sentisse os efeitos do
refluxo bastava registrar apertando o botão. A máquina registrou uns 15
episódios de refluxo, e eu apertei os botões umas dez vezes e, adivinhem, não
acertei nenhuma das vezes em que estava realmente tendo ácido corroendo meu
esôfago e a minha garganta.
Pelo
visto, eu sempre tivera azia, só não me dava conta disso. Não tinha qualquer
consciência do que se passava comigo, algo físico que envolvia ácido subindo
pelo interior do meu pescoço. Eu gosto de contar essa história para
exemplificar o quanto podemos ser inconscientes, mesmo de coisas tão grosseiras
e materiais. Depois passei a notar a sensação causada pelo refluxo, além de um
monte de outras sensações oriundas do meu corpo.
Uma
coisa muito similar aconteceu com algo bem mais sutil. Por anos, eu jamais
havia me dado conta dos efeitos dos meus sentimentos sobre mim. Assim como eu
acreditava que jamais tivera azia, tinha a viva impressão de que meus
sentimentos não me perturbavam nem um pouco. Acontece que mesmo não percebendo
a azia, o ácido estava lá, me deixando rouco, causando um estranho pigarro e
corroendo o meu esôfago, eu só não o notava, o que não anulava os seus efeitos
daninhos. Só é possível se defender de um inimigo que você sabe que existe. Eu
conseguia agir de maneira imensamente fria, direta e impiedosa ou simplesmente
ignorar coisas ruins feitas comigo e que deveriam ter tido o efeito de me
irritar, entristecer ou indignar, porque não notava qualquer efeito dessas
ações sobre mim. Isso me dava uma impressão muito, mas muito equivocada mesmo a
meu respeito. Além de eu ter uma ideia
bem esquisita sobre mim, essa minha inconsciência, passava uma imagem bem
estranha para as pessoas.
Assim
como aconteceu com a minha azia crônica, depois de alguns eventos da minha
vida, passei a perceber, a ter consciência, do quanto meus sentimentos me
afetavam. Isso me deixou menos durão e objetivo, mas também me humanizou
bastante, me deixou menos idiota e ampliou consideravelmente o escopo da minha
experiência e, por cosequência, da minha vida. A coisa é que, eu ainda não sei
muito bem o que fazer com essas impressões que eu percebo. Sei exatamente o que
fazer com os meus pensamentos, com a minha criatividade e poder analítico. Com
esses afetos que vem e vão quando querem, ou que são desencadeados por algum
evento ou pessoa, eu sou mais vítima deles do que seu criador. No começo, tentei fazer a coisa budista de
apenas observar como eles apareciam e depois seguiam seu curso e sumiam, ou
tentar me familiarizar com eles e entender como funcionavam. Talvez essas
realmente sejam boas estratégias, mas, com o tempo, percebi que precisava me
deixar afetar por tudo isso, e viver essas emoções, especialmente as negativas.
Isso
me permite ter uma visão mais ampla e colorida do mundo e das pessoas, além de
me dar elementos de avaliação que eu não dispunha antes. Não tem sido nada fácil,
abdicar da minha postura, na aparência, inatingível e ser ferido por essas
coisas. Afinal, elas sempre me feriram, eu é que não notava. Sentimentos são
pontes, que nos conectam as pessoas, que aquecem o mundo frio do pensamento. Os
afetos são a chama sem a qual os elementos de nossa personalidade jamais irão
se amalgamar.
No
meu caso, continuo a ser bem bocó no que concerne ao mundo dos sentimentos,
mas, ao menos, já não sou cego e surdo.
Os afetos são um problema das psicanálises, não? Tentamos racionalizá-los/torná-los consciência, mas isso não dá conta. Há sempre algo que escapa. Desculpe a overdose de comentários (Facebook, aqui, talvez já tenha passado do ponto da etiqueta virtual ou de qualquer outra), mas na verdade não deixa de ser algo que escapa a partir das impressões percebidas.
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