Poucos temas se
revestem de tão grande importância em nosso país, nos sombrios dias que vivemos,
quanto o fascismo. Autores melhores do que eu, como Adorno, Reich e Jung, se
debruçaram longamente sobre essa temática e eles serão os proverbiais gigantes
em cujas costas tentarei escalar para ver um pouco mais longe. Os três que
citei de início são justamente aqueles que se preocuparam com a psicologia do
fascismo, e essa é a inflexão específica da minha reflexão, especialmente no
tocante ao ponto que já anunciei no título, e que considero uma característica
peculiar do fenômeno como hodiernamente se manifesta no Brasil.
O humor faz parte
de nossa política desde longa data. Desde o Barão de Itararé no primeiro
quartel do século vinte, até o colunista da folha José Simão, auto intitulado o
“esculhambador geral da república”, a crônica política vem sendo encarada com
bom humor e galhofa, tendo o mesmo Simão imortalizado o epíteto de “país da
piada pronta” para a nossa nação. Mais recentemente, nesses tempos velozes de
internet, o site Sensacionalista, produz notícias de primeira capa absurdas,
que tem tido cada vez mais verossimilhança em virtude do caráter absurdo e
surreal pelo qual nossa política tem, cada vez mais, enveredado. No Youtube, o
grupo Porta dos Fundos é outro exemplo, porém, minha reflexão se dirige a
outros atores no que concerne ao humor, atores esses que, suspeito, são tanto o
público quanto a inspiração desses e outros comentadores jocosos da cena
política.
O “homem comum”,
ou o eleitor, o homem médio, a massa silenciosa, ou como queiram chamar os
anônimos que observam de maneira mais ou menos distante o circo de horrores de
nossa política também se manifestam desde há muito com escárnio, galhofa e
ironia. Nos tempos idos do voto em cédula de papel, muitos dos eleitores
tornavam o momento cívico do voto em uma piada coletiva. No meu Ceará, terra
famosa pela gaiatice, o bode Ioiô, boêmio e andarilho famoso de Fortaleza no
primeiro quartel do século XX, foi eleito vereador, e teria sido morto em um
atentado político, pois se julgava que o bode poderia vencer a disputa para o
cargo de governador, ridicularizando os políticos de duas patas. Em São Paulo,
no ano de 1959, sob o governo do venal Adhemar de Barros, o rinoceronte
Cacareco (que era uma fêmea, e carioca) recebeu 100 mil votos para a câmara
municipal. Até aqui nada novo sob o céu, basta lembrar o cavalo Incitatus, que
foi Senador em Roma, no reinado de Calígula. Diversos candidatos, com maior ou
menor grau de sucesso, assumem o ridículo como estratégia de campanha, alguns
são apenas pessoas “comuns” que se contentam em aparecer, outros são utilizados
como uma ferramenta pelos seus partidos para conseguir eleger candidatos
nanicos em virtude da bizarra matemática eleitoral de nossas eleições. O mais
famoso exemplo desse fenômeno, e o mais bem sucedido, foi o palhaço cearense
Tiririca, eleito por mais de um milhão de paulistas abestados. Tirica usou e
abusou da galhofa e do escárnio em sua campanha, com um slogan excessivamente
otimista “pior do que tá não fica” (ficou!) e teve uma votação inacreditável. O
palhaço, a rigor, carece absolutamente de qualquer posição política
identificável, não se prestando muito a análises que o coloquem à direta ou à
esquerda. Ainda no Ceará, o delegado de polícia, Cavalcante, era uma figura tão
exótica e caricata com sua dificuldade de fala e carregado sotaque matuto,
repetindo interminavelmente a expressão fática “ói, ói, veja bem”, seguida de
todo o tipo de platitude incompreensível, que foi satirizado pelo grupo de
humor Nas Garras da Patrulha, que fizeram um boneco inspirado no tal policial
(que nem chegava a ser tão ridículo quanto o original), o que fez com que,
quando Cavalcante se candidatasse, fosse um dos deputados mais votados do
estado. Quando ele resolveu se distanciar de sua imagem pitoresca, e do grupo
de bonequeiros, sua votação despencou vertiginosamente.
O dado que me
parece novo, e me tem chamado cada vez mais atenção, é o humor que vem ganhando
cada vez mais espaço na extrema direita brasileira, desde os liberais
anarco-capitalistas, até aos abertamente fascistas, como Bolsonaro. Jair
Messias Bolsonaro é uma figura bizarra e sem graça, que, quando muito usa de
humor negro (como no caso em que comparou a busca das famílias de mortos da
ditadura pelos corpos de seus entes queridos a cães que desenterram ossos), são
os seus eleitores, admiradores e simpatizantes que tem me chamado mais a
atenção.
Fascismo é um
termo que, em geral tem como referência histórica o regime de Mussolini na
Itália, ou mesmo, adicionando o problema do racismo (antissemitismo), o governo
Nazista na Alemanha. Uma definição do que considero fascismo se faz necessária
de início, especialmente pelo uso cada vez mais corriqueiro desse termo no debate
político atual, utilizado especialmente como adjetivo, todavia uma precisão do
termo nesse ponto não nos levaria muito longe. Não creio que a maior
compreensão sobre um tema surja da precisão, mas justamente da imprecisão e
incompreensão, eu não sei muito bem o que é esse fascismo eivado de sarcasmo
que vigora hoje no Brasil, e toda e qualquer definição é arbitrária e não
explica os fenômenos que denota. Parto, portanto, de uma incompreensão inicial.
Como o meu intuito é tentar compreender esse tema, com os recursos de que
disponho, eu sugiro uma conceituação meramente operacional para nos levar mais
adiante, sem falsas ilusões de que realmente sabemos do que se trata, pois não
sabemos, nem eu e nem você, estimado leitor. Vivemos momentos de uma enorme confusão,
e qualquer pretensão ao saber, nesses tempos interessantes, é apenas presunção
e desfaçatez, confusão travestida de saber, desonestidade intelectual e nada
mais. Nesse sentido, compreendo o fascismo essencialmente como uma disposição
ao autoritarismo, ao uso da coerção e a violência, ao não reconhecimento da
individualidade, um desejo pela substituição da decisão moral individual pela
razão de estado e um apelo sempre reacionário a manutenção de uma norma que
nega o devir minoritário. Essa disposição, esse traço de caráter, pode ser à
base de um discurso político, que se empenha em virar as costas ao mundo
contemporâneo e sua complexidade e oferecer saídas simples, quase franciscanas,
que se apresentam como verdades elementares, e pouco fazem para disfarçar um
desejo de destruir o outro, todo aquele que não faça parte dessa norma que é
tida como natural e transhistórica. Não à toa, a aliança dos fascistas com os
pastores reacionários que creem numa verdade revelada. A inflexão fundamental
da minha reflexão vai não tanto para os aspectos políticos e sociais, mas para nascedouro
desses aspectos e aquilo que sustenta o lado político, social e econômico dessa
equação, a alma dos fascistas (partindo da hipótese de que eles possuem uma).
Minha atenção foi
atraída para esse aspecto (do humor) ligado ao fascismo, especialmente pelas
consequências de um fato insólito ocorrido em Fortaleza, mas que é
paradigmático do que vem ocorrendo de maneira mais ampla. Um fulano foi vestido
com uma camisa com a fotografia do deputado Bolsonaro para o Centro de
Humanidades da UFC (Universidade Federal do Ceará), e, obviamente, a provocação
foi prontamente respondida e filmada. Houve um confronto em que foram gritadas
palavras de ordem, em especial “fascistas, fascistas, não passarão!” e o aluno
do curso de letras, também inspetor da polícia civil, foi expulso do campos.
Ele acionou a polícia, que não pôde entrar na Universidade, mas foi escoltado
para fora do campus e prestou queixa, além de argumentar que teve sua liberdade
de expressão tolhida de maneira autoritária. O mais curioso, para mim, é que eu
conheço esse sujeito, ele trabalhou para mim há muitos anos quando tentei (de
maneira malfadada) ser comerciante. Era um rapaz simpático e afável, que em
nada demonstrava tendências autoritárias ou violentas, mas o nosso mundo é
famoso por dar voltas...
O que ocorreu
logo em seguida foi uma intensa mobilização nas redes sociais em defesa do
simpatizante e seguidor de Bolsonaro, vítima de atroz intolerância e cruel
cerceamento dos seus direitos de pedir pelo fim dos direitos de todo mundo, e
se organizou um evento pelo Facebook para fazer um “rolezinho” no CHII em
homenagem ao referido deputado, que galvaniza a admiração desses espíritos
autoritários. Ao observar os comentários no tal evento, eu me deparo com as
seguintes frases (lugares comuns entre esse tipo de gente):
[...] Levem suas
armas (Pão com mortadela, bandeira, carteira de trabalho e cartazes.) [...]
Seguido do
comentário: “A esquerda chega esperneia” seguido de 3 carinhas chorando de rir.
Pessoal, somos a
galera da zoeira, mas preciso falar uma coisa séria com vocês... Podemos
mostrar que a direita se preocupa com o próximo, mas pra isso precisamos da
ajuda de cada um de vocês que compõem esse movimento, essa ideologia, esse
estilo de vida. [...]
Eu não sou de
nenhum dos dois, mas quero ir ver as tretas como faz? Rolezinho dos
divergentes? Apoio.
pode ir zuar os
idiota? Rsrs
PESSOAL, BORA LÁ
OPRIMIR...GO GO!!!
Eu vou huahua só
preciso conseguir a camisa do mito pra oprimir huahua
Bora começar a
compor as palavras de ordem, galera. Tem nada pior pra esquerdista do que umas
verdades cantadas em coro bem na cara dele. Kk
Fiquei sabendo
que vai ter distribuição de presto barba para as feminazi.
Aqueles imundos
podem usar camisa do Che Guevara e querem proibir camisas do Bolsonaro????? Nos
aguardem.
Só pra deixar bem
claro: n me sinto nem um pouco insultada por ser chamada de
"bolsominion", me sentiria mal se vcs me chamassem de petista, isso
sim. Beijos!
Sadia e Perdigão
acabaram de anunciar que vão parar de produzir mortadela por uma semana,
galera, depois do impeachment pra aumentar o choro de nossos amigos petistas.
Em nome de CARLOS
ALBERTO BRILHANTE USTRA
Cabra Macho!!!
Pro esqurdista que diz que pedófilo tem que ser tratado em vez de pegar cadeia
pra sempre, o Mito tem um bom doutor pra indicar: o Dr. Peixeira!!!
Queria que o
nosso Mito Presidente da Republica cearense tivesse vivo pra ver essa zuera.
(seguido de um coraçãozinho)
Levem as
carteiras de trabalho, geralmente isso aterroriza à esquerda.
EI GALERA
BOLSOMINIONS BOLSOMITOS OU APENAS AMANTES DA ZUERA CONTRA A ESQUERDA RAIVOSA OU
MANAS DA ESQUERDA ALALALAÔ ou insentões
Meus amigos da
direita, Levem cédulas de 5 reais pra distribuir lá pra esse povo da esquerda,
entendedores entenderam
Iai esquerdosos,
maconheiros, idiotas e analfabetos....
Vão colocar todo
mundo pra correr ou vão ficar com medinho, já que só agem em bando iguais a
covardes?
Tô aguardando uma
cuspida, seus maconheiros.
Maconheirada
pira!
A livre expressão
só é defendida pela esquerda quando convém, não passam de vagabundos!
Os Zé Droguinhas
já estão se organizando para atrapalhar a manifestação a favor do companheiro
que foi coagido.
Se fosse no
campus de exatas, nada disso teria acontecido.... Kkkk
A palavra “Zuera”
se repete diversas vezes, e muitos revelam como motivação de suas ações,
justamente o aspecto pretensamente humorístico de seus atos. A esquerda é
identificada com a burrice, a preguiça e a subserviência, assim como no passado
os índios e negros foram igualmente representados dessa forma. Como é um evento
originado no Ceará, um estado do Nordeste, não se viu a xenofobia normalmente
dirigida a essa região pelas pessoas que se identificam com essa ideologia. O tom
conservador (no mau sentido) e policialesco é quase onipresente, assim como o
escárnio, Escarnecer dos adversários virou regra, bem como a acusação de
intolerância e fanatismo. Jung, certa feita, asseverou que “se é aquilo que se
combate”. Algumas das postagens fazem referência explícita à ditadura militar,
outras (que não coloquei) apontavam para um revisionismo histórico do período
de exceção. O humor aqui, diferente do papel libertador que já teve
historicamente, é utilizado para escarnecer e humilhar, a graça está justamente
em poder dar livre vazão ao ódio sem nenhum pudor ou restrição. Freud ao falar
dos chistes (Witze), via neles a lógica do retorno do recalcado, eles encobriam
algo de vergonhoso ou imoral incompatível com a consciência, mas que retornava
pelo mecanismo do deslocamento ou da condensação como algo engraçado, mas por
trás da graça espreitava o horror. Aqui o horror não se esconde, mas é
traduzido com ainda mais maldade pelo veículo do humor. A zueira surge como o
substituto de uma reflexão moral, como sucedâneo de uma ética, é ela que
justifica a minha ação e é manejada como arma e argumento contra os inimigos
reais e imaginários.
Creio que nesse
ponto, não é ocioso uma reflexão, mesmo que ligeira, sobre as redes sociais. Parece-me,
que as redes sociais deram ao homem comum uma possibilidade antes restrita a
políticos e celebridades, a de possuir uma “persona pública”. No passado, a
exposição pública pelos meios de comunicação, de maneira espontânea ou
calculada, permitia que a imagens fossem criadas ou destruídas, que se
fomentasse amor e popularidade ou antipatia e ódio. O que antes era restrito a
um número reduzido de pessoas de interesse público, que eram conhecidas da
grande massa apenas por esse recorte midiático que lhes induzia o olhar,
hodiernamente é algo acessível a qualquer um que use Instagram, Twiter, Youtube
e Facebook. Celebridades seguidas por milhares de pessoas surgiram nesses veículos
sem ter qualquer relação com os veículos tradicionais de mídia. Além das novas
celebridades, qualquer um com tempo e disposição pode ter uma imagem pública
que atinge desde algumas centenas de amigos a alguns milhares de pessoas. Antes,
apenas nossa família, vizinhos e colegas de trabalho, talvez nem meia centena
de pessoas, tinha alguma consciência da nossa existência, ideias, anseios e
problemas. Com as redes sociais podemos afetar uma imagem pública, vocalizar
nossa opinião para um número muito maior de pessoas (sem apelar para os meios
tradicionais como rádio, jornais e televisão) e, simultaneamente, num jogo de
claro e escuro, encobrir ou desvelar quem somos. Todos nós usamos máscaras,
alguns são mais ou menos consciente desse fato. Quando o professor assume um
tom mais sério e sisudo ao entrar em sala de aula, na esperança de tourear com
a atenção de alunos mais ou menos alheios ao que ele tem a dizer, isso é uma máscara.
Ou o manto da autoridade vestido pelo Juiz, que é um investimento coletivo e
depende dessa mesma coletividade tendo pouco ou nada a ver com sua
personalidade. Aquilo que aparece com clareza no fenômeno da esquizofrenia, a
capacidade da nossa psique de se dissociar, só se diferencia da normalidade por
uma questão de grau. A psicopatologia não é um ens per se, mas o exagero de características corriqueiras da nossa
alma. Assim, além do fator de cálculo que envolve a criação de uma persona pública,
existem também fatores irracionais que interferem ativamente, fazendo com que a
máscara revele ao invés de esconder. Conheço pessoas de uma placidez tocante
que, nas redes sociais, vomitam um ódio que, numa primeira visada, pareceria
completamente estranho a sua atitude mais corriqueira. Há na maneira como as
pessoas se comportam na internet um viés performático, uma encenação, mas
muitas vezes essa encenação dá lugar a uma verdade profunda desses sujeitos que
transparece, frequentemente, a revelia de sua vontade. Outras, mais recatadas,
preferem observar esse circo, se resguardando de aparecer de maneira mais ativa,
sua relação com os objetos virtuais (ideias, imagens, opiniões, vídeos) não nos
é imediatamente evidente, pois eles conseguem manter essa relação em foro íntimo,
não reagindo a elas, apenas observando. Assim, além do aspecto performático, a
internet possibilita a atuação de aspectos menos visíveis e mais carregados de
aspectos primitivos, especialmente em virtude do fato desses afetos não terem a
possibilidade de serem espelhados pelos afetos de outro ser humano, o que
permite uma escalada dessa afetividade indiferenciada sem que o horror no rosto
de alguém nos alerte para as profundezas nas quais estamos nos afundando, há,
portanto, nessa comunicação um elemento importante de isolamento autoerótico. Comentários
e postagens findam sendo confissões mais ou menos involuntárias daquilo que
medra em nossos corações, mesmo que não estejamos cientes disso, logo, estamos
possuídos por isso que nem sabemos haver em nós. O papel do humor, nesse caso,
o da vocalização de intolerância e ódio, consiste igualmente em fugir a
responsabilidade pelos atos, palavras e omissões praticados, pois se trata
apenas de uma piada. O humor não esconde o horror, mas despotencializa suas consequências,
isenta de maiores responsabilidades aqueles que se expressam de maneira
odienta. A intenção de destruir, aniquilar, é mascarada pela intenção de fazer
graça, mas a graça está no outro que jaz ferido de morte pelas setas certeiras
que são essas palavras pretensamente jocosas. A piada é o prelúdio da pedrada e
do linchamento, mas não se assume enquanto tal. É um ato juvenil e irresponsável,
e que deve ser encarado como inconsequente (no sentido de não ter consequências
mais sérias), ou, ao menos, assim creem aqueles que fazem uso desse humor
sombrio.
É comum ver na
internet a reclamação de que o mundo está sem graça e de que há um
patrulhamento do politicamente correto que procura, autoritariamente, cercear a
nossa liberdade de expressão, ou nossa liberdade para sermos estúpidos. De maneira
muito interessante, a série de TV BoardWalk Empire retrata um pouco do humor
dos anos 30, um humor que deveria parecer grotesco para nós: anões lutando uns
contra os outros, músicas misóginas retratando as mulheres como estúpidas e
inferiores, e a odiosa “black face”. O mais curioso, é que o famoso programa de
TV pânico, utiliza-se de todos esses elementos grotescos e profundamente
horrendos com grande sucesso, inclusive a racista e intolerável “black face”. Nas
redes sociais, a reclamação da “falta de graça”, esconde, isso sim, a falta de
impunidade. No passado, podia-se escarnecer abertamente de todos os que não
fossem maioria (homem, branco, macho e cidadão), eles já eram essencialmente
uma piada em virtude de sua pretensa inferioridade, e o humor apenas salientava
isso enquanto exaltava a superioridade do homem, jovem, ocidental. O apelo à
graça é um apelo à impunidade, a inconsequência, a “graça” é poder destruir o
outro com palavras sem para qualquer preço por isso, destruir de graça. Assim,
o humor, no nosso fascismo é uma reclamação pela “ordem natural das coisas”, em
que há uma hierarquia social que a uns tudo permite e a outros tudo nega. No
nosso fascismo, o apelo ao humor é uma brecha no dique de civilidade e respeito
que construímos a duras penas, atrás dele permanecem a espreita uma onde de
lama racista, machista e xenofóbica. Quem diz que o mundo não tem graça, no
fundo diz, que não é engraçado não poder tudo. A mim me parece, que a violência
primeva que habita as profundezas de nosso peito está de prontidão, e surge num
primeiro momento como uma inocente piada. Mesmo a reclamação recorrente contra
os direitos humanos, é um disfarce para a noção de que nem todos somos humanos.
Por séculos se cogitou se as mulheres teriam mesmo uma alma, com os selvagens e
negros, tinha-se a certeza de que não possuíam uma, logo podiam ser tratados
como seres sub-humanos. O que houve com o meu povo sob o regime nazista
empalidece diante dos rios de sangue que correram nas Américas e nos horrores
perpetrados por séculos contra os povos nativos. São os herdeiros dos
conquistadores brancos que, agora, reclamam de volta seu direito de vida e
morte sobre os demais, mesmo que com novas categorias, pois os selvagens a
serem civilizados e exterminados são os “esquerdistas”.
Nesse sentido, o
humor é apenas a vanguarda da violência, ele gera o momentum necessário para
que a ação possa se concretizar numa esfera mais prática. A zuera, em seu
aspecto negativo, é a legitimação da ação efetiva de destruição do outro. O
humor visa, num primeiro momento, aniquilar o orgulho, o brio, a autoestima
daqueles que os fascistas julgam inferiores. A destruição significa também que
esses que estão “no topo” podem se servir à vontade dos subalternos, usá-los
como objetos, disso dá prova eloquente o nosso machismo cotidiano, mas não
apenas ele. Alguns dos comentários que utilizei como exemplo, mostram que chega
um ponto em que a piada apenas não basta, surge à necessidade da ação. Não
devemos, todavia, superestimar essa evidência, pelos motivos que já descrevi. Creio
que é preciso algum tipo de contrapeso para que se passe dessa vocalização a ação,
como o humor busca a irresponsabilidade, logo a entrega efetiva da moral
individual por alguma outra coisa, ou seja, um certo odium indignitatis, o contrapeso é a palavra do líder. Acho que o
aumento significativo de linchamentos depois do pronunciamento público da
jornalista de extrema direita Raquel Scherezade pode ser explicado por esse
mecanismo.
Também acredito
que o humor, que prescinde da lógica, que pode ser absurdo e insensato, também
faz um apelo ao aspecto irracional, existencial inalienável em nós, justamente
naquilo que ele possui de mais lúgubre. Ele toca essa corda comum que escapa a
qualquer explicação cartesiana e que é imune a toda e qualquer lógica e se
basta por si mesmo. Assim, tem-se uma estética da irracionalidade, que permite
que nossos preconceitos afetivos e desejos quiméricos venham à luz do dia e
possam ter uma forma comunicável. Essa estética do horror também engendra um
laço: os que riem da piada são os meus iguais. A identificação é imediata, sem
reflexão, apenas pelo tom do afeto que se mostra na risada, pelo riso o
ressentimento reconhece o ressentimento. Assim, seguimos com nossa piada
mortal, em que a loucura reverbera na loucura e o som que ela faz ao reverberar
é o riso.
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