quinta-feira, 19 de maio de 2016

Desabafo, ou, "meu credo epistemológico"



Há um certo tempo, que eu tenho algo meio engasgado pra dizer, um desabafo. Na verdade, sempre me esquivei de fazê-lo, apesar de não parecer, sou uma pessoa reservada. Muitos conhecem meus posicionamentos políticos e intelectuais, mas apenas um número muito reduzido de pessoas pode dizer o mesmo acerca dos meus sentimentos, mas creio que já é chegado a hora de fazê-lo. O motivo de fazer algo que, no fundo, me desagrada tanto, é a reação de duas pessoas queridas ao se aproximarem um pouco mais de mim, e sua expressão de um certo receio no que concerne a mim, o que me entristeceu profundamente. A primeira foi uma reação a uma frase banal pra mim, quando afirmei desconhecer algo e tive, dessa pessoa querida, a seguinte resposta “então você admite que não sabe de tudo?”. O intuito das palavras não foi o de ferir, mas esse foi o resultado, e me senti na obrigação de me explicar. Certa feita, meu amigo Filipe, me disse que quando eu estou falando, lecionando ou proferindo uma conferência eu sempre mostro o melhor, não titubeio, não duvido, sempre tenho uma resposta rápida e sagaz, e que isso é algo um tanto demoníaco e assustador, pois o tropeço é justamente o que desperta a nossa compaixão, ou, para usar a expressão de outra pessoa querida, sou “assertivo”. Levei a sério essa admoestação, e acrescentei uma dose maior do humor judaico ao meu repertório, mas creio que a impressão causada foi duradoura. Quando me expliquei a essa amiga, lhe expus algumas das minhas mais caras convicções, o que lhes faço agora.
Eu não creio que qualquer teoria seja capaz de dar conta do mundo, assim como Popper, creio que nosso conhecimento é finito enquanto nosso desconhecimento é infinito, e que a postura intelectual e moral adequada ao cientista é aquela expressa pelo racionalismo crítico “eu posso estar errado e você estar certo”, tenho fé na minha razão, mas maior é a minha fé na razão dos outros. Acredito na tolerância, que deve ser dada aos outros a oportunidade de expor seus pontos de vista mesmo que sejam opostos aos meus, e, o mais importante dessa postura, acredito firmemente que, mesmo alguém culto e inteligente, ou bem preparado ou o que seja, deve rejeitar qualquer pretensão de autoridade, ninguém deve ser o seu próprio juiz. Nenhum conhecimento genuíno vem da autoridade e todo ele é conjectura. Assim como Aristóteles expos em sua retórica, eu creio firmemente que o papel do professor não é convencer, mas ensinar. Assim como William James, um dos meus heróis intelectuais, não creio na existência da “Verdade”, única e com v maiúsculo, não penso que o universo seja um enigma que possui uma resposta, uma palavra de poder que ao ser encontrada me permite descansar, os “nomes dos demônios” que Salomão possuía. Ao contrário, acredito em verdades operacionais que servem até o momento em que puderem ser veículos para me levarem mais longe, como atalhos conceituais que organizam o caos da experiência e geram mais trabalho. Assim como Jung, de quem sou discípulo póstumo, creio que há um limite existencial, e inalienável a toda e qualquer pretensão de saber, que há coisas que ignoramos e ignoraremos (e essa postura ele retira, em parte, de Kant), que por melhor que seja o meu ponto de vista, as minhas teorias, ele depende, em larga medida, da minha equação pessoal, logo, é necessariamente limitado. O que me anima como professor, especialmente de Psicologia Junguiana, é saber que há coisas que eu jamais seria capaz de formular e que apenas outras equações pessoais, poderão. Assim, me anima a esperança de ver meus alunos, ao descobrirem quem são, serem capazes de formular sua verdade a partir de sua individualidade, dizendo coisas novas para mim e ampliando, assim, o meu horizonte. Muitos são os fatores que me limitam, eu sou um homem, falo da perspectiva do logos, e, há coisas que eu não vejo e nem sinto, e que devem ser ditas e formuladas não por mim, mas pela alma das mulheres, pelo eros. Assim como acreditava outro dos meus heróis, Marc Bloch, também creio que só posso afirmar aquilo que o tempo em que vivo me permite, sou limitado por uma mentalidade coletiva, e dela posso escapar apenas sutilmente. Mas, fundamentalmente, eu acredito nos outros, que sentido haveria em ensinar se assim não fosse? Há na vida um aspecto artístico, as grandes verdades devem ser ditas novamente a cada geração, de uma maneira adequada a essa geração, nas palavras que eles possam compreender, assim, o trabalho da cultura é um que jamais cessa. Creio, assim como Jung, que se eu tento formular uma grande verdade, mas finjo que não sou atingido por ela, que ninguém está a falar eu falho miseravelmente, mas que se falo a partir da maneira como um problema que atinge a todos, também me atingem, estando visceralmente implicado nisso eu posso enunciar uma verdade, que é minha, mas é uma experiência comunicável que pode traduzir a experiência dos meus semelhantes.
Aprendi poucas coisas úteis com o meu pai, uma delas foi a postura de educador. Há muitos anos, o governo do estado fez um curso para velhas professoras, para que tivessem o diploma de curso superior, e meu pai lecionava para elas, mas era muito atarefado. Como tinha muitas ocupações, vira e mexe mandava o filho, estudante de história lecionar para elas, e ele (eu) se esforçava para falar tudo o que podia e dar uma ótima aula, e, invariavelmente tinha uma resposta plácida das senhorinhas, que diziam que eu falava coisas bonitas e interessantes, porém entendiam pouco ou nada. Nunca me queixei disso ao meu pai, mas um dia, depois de uma dessas aulas, meu pai se queixou, não das alunas, mas de um colega professor. Esse colega, sempre falava mal delas, e não tinha pudores em considerá-las um caso perdido, ao me narrar isso, ele se virou pra mim e disse que retrucou ao tal colega desdenhoso “falar mal delas é fácil, o difícil mesmo é trazê-las para o seu nível”. Desde esse dia, eu tomei como regra jamais subestimar meus alunos ou meus ouvintes, evitar pedantismos, mas, igualmente evitar me colocar num patamar de superioridade, sempre que eu falo, sou animado pela crença na inteligência do meu público. Ainda mais novo, meninote, vi o meu pai lecionando nas salas vazias da UFC da década de oitenta. Havia 5 alunos, duas o ouviam com atenção falar sobre a Grécia, uma se sentava mais distante e alheia, e um outro lia um jornal. Ao final da aula eu perguntei a ele o motivo de não ter ralhado com o sujeito do jornal, achava a atitude acintosa, sem pestanejar, ele disse “é problema dele, assiste aula quem quer”. Nenhum de nós pode ser coagido, fundamentalmente somos livres, e isso implica a liberdade de não querer estar ali, ou não ouvir, por mais que seja o meu dever tentar tornar as coisas o mais interessante possível.
Por fim, ainda com Jung, tenho descoberto de novo e de novo, a verdade de que tudo o que julgamos saber sobre nossos semelhantes é um preconceito ou uma projeção. As pessoas são muito mais do que julgamos, nosso julgamento é limitado e só podemos ver nos outros o que medra em nosso coração, dependemos da trave em nosso olho para ver o cisco no olho do nosso próximo. Eu tenho tido, sempre, a grata surpresa de me espantar com as pessoas que me cercam, ou com aqueles que só via ao longe, há ali tanto que desconheço, que seria uma pretensão genuinamente diabólica crer que meu preconceito sobre alguém pode ser a verdade daquele sujeito. Cada ser humano com que me deparo, por melhor que seja a minha intuição ou percepção é um grande mistério, e, igualmente, um milagre irrepetível. Sim, minha querida, eu não sei de tudo e nem pretendo saber, apesar de saber bastante, paradoxalmente, quanto mais eu sei, mais devo compreender que não sei. O mundo pode não ser um enigma, mas, certamente, é um mistério.
O outro motivo desse pequeno desabafo, dessa confissão subjetiva dos valores que me animam, do meu “credo epistemológico”, é que outra pessoa muito querida, ao se avizinhar mais de mim e do meu coração, disse do receio de que a minha postura arrogante ser a base para uma atitude grosseira ou desrespeitosa, e isso me feriu ainda mais. Não é à toa que escrevi um livro sobre Naruto, todos os meus heróis empalidecem diante dele. O garoto idiota, sem talento e odiado, não reconhecido e que, contra tudo e contra todos afirmou sua individualidade, não para se vingar desses que o desprezavam, mas para ser o maior bastião para defendê-los (o hokage). Poucas imagens poderiam descrever melhor aquilo em que acredito quanto à narrativa de Naruto, a pistis, a fé confiante em si mesmo, necessária a consecução de quem se é. Eu posso ser assertivo, muitas vezes duro, pois quem quer ser professor deve abrir mão da necessidade de agradar sempre, mas jamais teria coragem de desencorajar ou humilhar. Por anos e anos minha maior luta foi para alcançar algum grau de Ahimsa (não violência), justamente para que minhas palavras pudessem encorajar e não desencorajar. Eu já traí o meu herói, e, como se trata de expor os meus sentimentos, que eu exponha também esse fato insólito da minha vida. Eu estudava com o Wilson, Psicologia Analítica, há época era um dos únicos que o fazia devido a sua antipatia (que ele mesmo admitia) e a minha proverbial teimosia em não ser desencorajado por nada nem ninguém, mas um dia eu me calei. Estava justamente falando sobre Naruto e o usando como metáfora, e ele me dizia como já estávamos derrotados de antemão, como a psicologia analítica estava morta e ninguém era capaz de compreendê-la e aceitá-la. Eu retruquei “que dizer que eu não posso ser hokage?”, sua resposta foi um sonoro não, seguido da poesia de Augusto dos Anjos “Vês, Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera, somente a ingratidão – essa pantera – foi tua companheira inseparável”. E eu me calei, nos afastamos depois, mas, fosse eu fiel a mim mesmo, teria dito, como Naruto diria que “esse é o meu jeito ninja, e ninguém vai me dizer que eu não posso ser hokage”. Minha postura é a antípoda dessa, sou um incorrigível otimista, e espero muito dos meus alunos, espero que eles sejam muito melhores do que eu, se assim não fosse, qual o sentido de ensinar? Não minha querida, eu jamais seria grosseiro de maneira gratuita, ou pedante e pernóstico, saber de algo não lhe faz melhor ou pior do que alguém, são nossas decisões e posicionamentos morais que nos fazem melhores do que nós mesmos. Jung, disse, acertadamente, que inteligência em gente ruim é defeito e não qualidade, eu preferia abrir mão da minha a ser alguém que trata mal as pessoas ou se sente superior. Minha vida é uma sucessão de erros e fracassos, não estou em posição de julgar ninguém, e, mesmo que estivesse, esse julgamento pertence apenas ao altíssimo e não a qualquer homem de carne e sangue.
Tenho ouvido, das pessoas que se aproximam de mim (tenho me tornado menos reservado), a rapidez com que essas quimeras que rodeiam a minha imagem se dissolvem, ou, como me disse uma pessoa, como isso se desfaz de maneira “espetacular”, mas ainda me dói um pouco que haja isso, e, me dói ainda mais saber que, por um longo tempo, a minha postura fomentou essa desconfiança. Eis um pedaço da minha alma exposta à luz do dia, um pouco da minha verdade, não fossem essas duas feridas, jamais teria tido estímulo para deitar a pena ao papel para deixar transparecer tanto assim de mim, mas aqui está, esse é o meu jeito ninja.

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