quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Mestre e o Golpe com a Vara de Bambu



Eu tenho a sorte de ter estudado sob a tutela de grandes mestres, seja na seara das artes marciais, sejam mestres espirituais, muita sorte mesmo. Recentemente tive um ensinamento importante, em meio a vários outros, algo que muito me inspirou.  Estava eu recebendo ensinamentos de minha mestra de budismo tibetano, tendo eu chegado atrasado, quando, lá paras tantas, estando sonolento e cansado, abandonei a posição de lótus, que normalmente adoto nessas ocasiões, e me deitei meio de lado nos colchonetes com a cabeça apoiada em uma das mãos e o cotovelo nos colchonetes. Minha professora interrompeu o que dizia me admoestou severamente, por um bom tempo, sobre a minha falta de compostura diante dos ensinamentos. Eu rapidamente me aprumei e ela emendou no pito, uma explicação.
Disse-me ela, que no Zen, há um mestre que caminha pela sala de meditação com uma fina vareta de bambu, e que, ao notar que alguém cochila ou se distrai, se aproxima, e fica diante do aluno distraído, o aluno o reverencia, ele devolve a reverência se inclinando, e o fustiga violentamente em um ponto específico do deltoide por onde passa um nervo, esse golpe imediatamente acorda o aluno, que pode voltar a meditar. Segundo ela, esse é um papel de extrema importância, e requer uma enorme habilidade para se golpear na velocidade correta no ponto exato que causa o maior efeito, além de produzir um som de chicotada impressionante.
Mas o mais importante aqui, não é o fato em si, mas a intenção, o aluno é chicoteado com o fino bambu em respeito ao seu potencial de atingir a iluminação, ao se distrair, cochilar, ou qualquer outra coisa do tipo, ele está negligenciando seu potencial de se liberar para ajudar todos os seres sencientes a encontrar uma saída para o sofrimento e as causas do sofrimento. Fazendo isso ele se emaranha nas teias do samsara e deixa de lado sua natureza genuína. Ao receber o golpe do bambu, ele desperta de seu estado de indulgência, e pode voltar a se dedicar diligentemente a prática que irá libertá-lo de suas fabricações mentais e de suas emoções aflitivas, o golpe de bambu no nervo, que causa um som espalhafatoso, uma dor aguda, e uma sensação de profundo despertar do estado de desânimo ou cansaço é um ato de profunda compaixão, movido pelo desejo sincero de que o potencial daquele aluno se realize.
Funakoshi, pai do karatê moderno, em seus livros, sempre falava com admiração e reverência por seus mestres, sua gratidão a eles era imensa. Em um desses livros conta como Matsudaira, o ensinava em segredo nas madrugadas e que o fazia repetir exaustivamente o mesmo kata incontáveis vezes e, se percebia que em qualquer dessas vezes o jovem Funakoshi esmorecia, mandava que ele lambesse todo o tatami. Funakoshi tinha Matsudaira na conta de um dos maiores homens que ele teve a ventura de conhecer, e nutria por ele uma imorredoura gratidão. Em nossa insensatez julgamos que empatia e compaixão só podem se expressar por meio de atos carinhosos, desprezando a necessidade do despertar que apenas um preciso golpe de bambu pode trazer, um golpe dado em respeito ao nosso potencial. Funakoshi tornou-se o maior divulgador da arte e da ética de seus mentores, ele realizou muito de seu potencial. A maioria de nossos professores, em nosso tempo, não nutre mais qualquer respeito por nosso potencial e, se esquivam, sempre que podem, de nos despertar com um golpe preciso de bambu, isso é uma pena. Eu me sinto grato por todas às vezes, em que meus mestres, vendo em mim grande potencial, não demonstraram a tola piedade dos falsos mestres, e me fustigaram sem pena, na esperança de ver esse potencial florescer, espero que um dia, depois de também ter lambido os meus tatames, eu possa fazer como Funakoshi o fez, e ser uma encarnação e um exemplo vivo da arte de seus mestres que, nesse caso, se torna sua também.

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