Eis
que se aproxima o final do ano, o Hanukkah, o natal e, com eles, o meu aniversário.
Este ano faço 34 anos. Sou um historiador, entretanto, ironicamente, tenho uma
terrível dificuldade para registrar a passagem do tempo, de saber quando algo
aconteceu ou há quanto tempo. É comum que eu nem mesmo saiba ao certo em que
ano, ou mês estou, e, tinha muita dificuldade em lembrar a minha idade, que,
afinal, muda todos os anos, anos esses que eu não sei bem quais são ou quando
passam. Esta dificuldade me confina no presente, o que acaba por ser uma
vantagem, pois me torna alguém não tão ansioso ou preocupado quanto às pessoas
que vejo ao meu redor. É importante, todavia, ao menos algum grau de
historicidade, de se saber, se não quando, ao menos o que se passou. Minha professora
de budismo, Ani Zamba Chozom, costuma repetir que o nosso caminho espiritual é
a nossa confusão mental, e nada mais. Por isso precisamos conhecê-la, examiná-la,
tornar-nos amigo de nossos padrões habituais e neuroses, do contrário, estamos
fadados a repeti-los. Freud falava em repetir, recordar e elaborar, e, Michel
de Certeau, inspirado em Freud, dizia que o tempo da psicanálise é outro tempo,
diferente do da história, nesse tempo o passado se mistura ao momento presente,
sem a hierarquia de presente e passado tão habitual aos historiadores. Já
Campbell, de quem sou discípulo póstumo, afirmava que a eternidade é o aqui e
agora, o aspecto transcendente do momento presente, este mesmo ao qual a minha
estranha psicologia me agrilhoa. O passado não existe e o futuro é uma ilusão,
diz o aforismo Zen tão conhecido, mas eu invoco agora, por meio da magia das
palavras o meu ano que se passou ao presente, mas como bom historiador, sei bem
que se trata da minha imaginação sobre esse ano, pois a res gestae é para sempre
perdida, vapor dos vapores, e toda a tentativa de reencontrá-la é vã, no
entanto, o rememorar, essa atividade da fantasia, me é mais fácil por ser também
escritor...
Este
meu ano que passou começou há mais de um ano, começou em novembro do ano
precedente, quando, após muitas de conversas pelo facebook, eu finalmente
conheci a mulher que viria a ser a minha esposa. Para não ser mentiroso, eu já
a tinha visto uma única vez antes disso, e depois nunca mais a vi ou tive notícias.
Ela me procurou pela internet para falar de uma malfadada especialização que
tentei criar, mas que, acabou por não acontecer. Começamos a conversar e, por
fim, decidimos nos encontrar, no dia dos mortos, numa festa em uma boate, lá
tudo começou. Me disse ela, algum tempo depois, que ouvira coisas variadas ao
meu respeito, entre elas, que eu era arrogante, e um tanto propenso a
grosseria, ouvira também dizer que eu era inteligente, e muito versado em
psicologia complexa e que, nesse campo em particular, tinha muito a oferecer. Apesar
de, naquela época e ainda hoje, eu nutrir uma certa desconfiança das pessoas
que se dizem Junguianas por essas terras alencarinas, eu a tratei de maneira
cordial e bastante polida, e não lhe dei mais atenção. Como é comum nesses
tempos hipermodernos, ela passou a acompanhar minhas postagens, e, até mesmo, a
se incomodar com a profusão de belas ruivas que eu sempre postava. O contato
comigo, mesmo que virtual, desfez um pouco a imagem de arrogante grosseirão,
mas, me disse ela depois, meus escritos foram os grandes responsáveis por
demolir a minha fama de mau.
Começamos
imediatamente a namorar, eu a pedi em namoro, e, algum tempo depois, não muito,
semanas depois eu diria, ela me pediu em casamento. A desculpa que tivemos para
nos encontrar influiu no pedido de casamento. Ela me pediu minha data e hora de
nascimento, essa que se avizinha, pois é astróloga, e eu imediatamente lhe
passei a data e a hora. O interessante é que, no dia anterior, em uma conversa
com um amigo psicanalista, Rafael Lobato, ele dizia que, se um paciente lhe
narrava um sonho com uma mulher e depois lhe dizia “mas essa não é a minha mãe”,
se não era, agora é. Pois bem, ela emendou, dizendo que tinha curiosidade em
saber o perfil das pessoas metidas com Jung na cidade, para que eu não pensasse
que ela era apenas “mais uma a fim”, por essa época eu era bem popular. Bom, se
não era agora é, eu entendi perfeitamente a mensagem e usei a desculpa do mapa
para tomar um café e ter meu mapa natal explicado, ela, é claro, topou. De qualquer
sorte, o tal mapa só foi lido para mim em Guaramiranga, no restaurante alemão
que tem por lá, e, segundo o meu mapa, é tudo culpa do mapa, eu me casaria esse
ano (tá vendo como astrologia funciona!), ao que ela completou “bom, se não for
comigo vai ser com alguém”, ao que eu retruquei “quando você acha que é uma boa
data, aí segundo a astrologia, para nos casarmos?”, e foi assim...
No
mesmo dia que encontrei Roxane, também conheci alguém que se revelou um grande
amigo Rodrigo “Passolargo”, e com ele venho transformando em realidade alguns
de meus sonhos, e ajudando um pouquinho os dele, logo vocês terão notícias
nossas... Esse ano eu também estive em dificuldades com um dos meus mais
queridos amigos, Filipe Jesuíno, por algum motivo, e motivo nenhum, nossa amizade
andava estremecida, até que chegou ao ponto onde quebraria ou ressurgiria ainda
mais fulgurante. Talvez seja uma história interessante, eu comecei cursar a
faculdade de Psicologia na instituição particular em que o Filipe lecionava,
isso por causa de sua presença lá. Um dia, ele ia ministrar uma oficina sobre
interpretação de sonhos, em que ele limitara escrupulosamente o número de participantes
e, dera ordens expressas de impedir a entrada de quem não estivesse previamente
inscrito. Na noite anterior ele me mandou uma mensagem, preocupado com a tal
especialização (ela de novo), e por isso resolvi ir até lá falar com ele. Eu não
sabia de sua preocupação com as vagas, e achei que poderia ver sua aula e
depois conversávamos, afinal, começamos juntos a estudar Jung e o que ele ia
falar era algo para neófitos, que pouco me interessaria em qualquer outra
situação, mas ao chegar, ele me proibiu de entrar, para não quebrar suas próprias
regras, ao sair eu fiz uma piada, na frente de um fulano que ele desgostava,
que o irritou. Ele me ligou logo depois do término da tal oficina e tivemos uma
conversa dura, seguida de uma conversa pessoal dias depois, ainda mais dura,
mas depois disso, as coisas se ajeitaram. Nossa parceria de mais de uma década,
logo, logo dará um novo fruto, pelo qual nós dois trabalhamos arduamente esse
ano que passou. As coisas voltaram tão ao normal, que até voltamos a jogar RPG.
Já
estando casado, e novamente as boas com meu velho amigo, minha antiga
desconfiança com os “Junguianos” da cidade se mostrou acertada e, Filipe e
Roxane foram vítimas da torpeza e falta de compromisso dessas pessoas, mas isso
teve um desdobramento interessante. Filipe e Roxane pensam ainda sobre essa
especialização malfadada, e meu amigo pediu a uma de suas alunas que
pesquisasse pessoas interessadas, a resposta dela foi curiosa. Todas as pessoas
interpeladas se mostraram interessadas, isso até ouvirem o meu nome, pois,
segundo descobri, entre essas pessoas torpes que tentaram ludibriar meu amigo e
minha esposa, eu sou tido como, segundo minhas própria interpretação, “grosso,
feio e mau”. Disse a meu amigo a tal garota que o meu ensino era acintoso e
fragmentário, o que me levou a refletir sobre o meu papel em meio a isso tudo,
pois se alguém tem culpa do estado de coisas em que o opus junguiano se encontra, não são os farsantes e os charlatões
que dizem professá-lo, mas as pessoas sérias que se mantêm em silêncio diante
disso, em certo sentido, a culpa é minha. Neste mesmo ano, tive a oportunidade
de ser tradutor de um maravilhoso yogacharia indiano, e, uma das coisas que ele
disse me fez refletir ainda mais um pouco sobre tudo isso a que já aludi, ele
disse que na concepção da yoga, aquele que é enganado ou ludibriado, é tão
culpado quanto quem o ludibria. Isso em fez pensar longamente.
Esse
ano que passou eu resolvi, no segundo semestre, deixar de lado a sala de aula,
seja como aluno ou como professor. Mais de dez anos lecionando me cansaram para
além do que é possível descrever com palavras, e o último semestre desse ano,
que agora se esvai rapidamente, eu passei trabalhando para me tornar quem eu
realmente quero ser, olhando, para usar a expressão de Neil Gaiman, para aquela
montanha lá no horizonte aonde eu desejo chegar. Estranhamente, a despeito de
minha decisão de me afastar, de me recolher, fui convidado várias vezes para
falar em público, e, a cada uma dessas vezes, me pareceu que a minha máscara de
vilão se rachava mais um pouco, o que foi algo inusitado para mim, mas, ao
mesmo tempo, havia algo estranho nisso tudo. Em todos os outros meios que eu
circulo, seja na política, artes marciais e por aí vai, além de respeitado, sou
tido como um sujeito boa praça e, apenas no meio da psicologia junguiana, visto
sob este prima negativo, o que, no fundo, é algo deverás cansativo,
especialmente quando se está realmente interessado em estudar e pesquisar e não
em mise en scène.
Por
fim, eu me mudei de meu velho apartamento, mudei-me para o outro lado da
cidade, para uma casa grande e confortável, próxima a um bosque e a uma reserva
ambiental, onde ainda se pode ouvir os grilos e os pássaros, o que muito me
agrada. Ao chegar ao final dessas memórias do ano que finda, creio que falei
pouco de muito e muito de muito pouco. Minha dificuldade em colocar as coisas
na devida ordem me força a um olhar mais introspectivo do ano, deixando de lado
muito do aspecto social e político em que estive envolvido até o pescoço, mas
toda a busca é uma busca de si, e o que talvez eu espere encontrar nessas memórias
seja uma parte perdida de mim mesmo e que só se pode achar nas reminiscências e
em nenhum outro lugar. Fiz muito e muito pouco esse ano, talvez faça mais ou
quem sabe menos no próximo, quem pode ao certo dizer o que há de suceder? Especialmente
este pobre escritor que quis o destino que estivesse preso ao presente, a este
modesto escritor só resta à fantasia e as letras como refúgio, já que não posso
me refugiar na ilusão do passado nem na inexistência do futuro só encontro
guarida na realidade da fantasia, esta nunca me falha e, logo, não será mais
apenas minha.
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