Em
1910, Jung publicou um pequeno escrito intitulado “Contribuição à psicologia do
Boato”, por essa época ainda era o “príncipe herdeiro” da psicanálise, e o
texto traz a marca da influência freudiana sobre a perspectiva de Jung, todavia
não deixa de ser um texto de uma psicanálise no mínimo peculiar, visto Jung ter
se colocado como um autor desde o princípio de sua relação com Freud, mais de
interlocução e menos de discipulado. Apenas 3 anos depois, ele romperia com o
pai da psicanálise em virtude de sua concepção de libido exposta no livro que
funda a psicologia complexa “Wandlungen
und Symbole der Libido” (metamorfoses e símbolos da
libido). Jung expunha, apoiado em amplo material empírico, em um texto confuso
e um tanto incoerente no qual ele trabalharia pelos próximos trinta ou quarenta
anos, que o inconsciente não sabe apenas desejar, mas sabe também cancelar seus
desejos.
Até
onde li de Jung (só há pouco comecei a lê-lo em alemão e ainda de maneira um
tanto lenta), não me recordo de qualquer outro de seus escritos que verse sobre
o boato. Meu interesse sobre o tema se deve ao advento dos boatos da internet,
a princípio com os emails com
histórias e relatos estapafúrdios (que passei a ter o hábito de checar e,
enviar a mesma lista que recebera o boato um desmentido), e posteriormente os
boatos que se alastram pelo facebook. Meu trabalho de Sísifo, de tentar rebater
esses boatos, me despertou a curiosidade de pensar um pouco mais sobre eles,
mas a gota aconteceu há poucos dias, numa conversa à toa, duas pessoas me
afirmaram, com inatacável certeza, inabalável segurança, inelutável convicção,
dignas de fazer corar um Descartes ou um David Hume, que a Forbes publicara que
Lula era Bilionário. Eu que deixasse de ser ignorante e, diante de uma prova
tão contundente, parasse imediatamente de defender o Lula, ricaço reconhecido
pela imprensa. Obviamente, mesmo diante dessa certeza toda, de toda essa
autoridade, e serena e inabalável confiança na veracidade da internet e
congêneres, desconfiei. Bom, esse boato é tão antigo (2006), que demorei até
para achar, para ser mais exato, nem mesmo achei o dito boato, só o desmentido.
Ainda estou surpreso, não com o boato, mas com seus efeitos, quisera eu pudesse
lhes transmitir a inatacável certeza com que fui confrontado, nem mesmo meus
dotes literários me permitem reproduzir o sentimento de verdade absoluta de
meus interlocutores, não era simples má fé, não, com isso estou mais do que
acostumado, era uma certeza plena e cristalina.
Circulam,
ou circularam (e circularão), pela internet diversos boatos. Sobre o filho do
Lula, o Lulinha, já houve tantos, que me espanta que as pessoas ainda acreditem
nesses boatos, mas elas ainda acreditam. Barak Obama também já foi vítima de
vários, até mesmo o boato maldoso, de quem nem mesmo seria americano. Bush teve
sua cota de boatos (no caso dele eram mais piadas, dando conta de sua
proverbial estultice), como o boato de que ele não passava de um fantoche de
seu vice-presidente. Muitos mais poderiam ser elencados, centenas, milhares
talvez, desse tipo de boato. O número aumenta consideravelmente se levarmos em
conta os boatos que circulam sobre a vida pessoal das celebridades, e, creio
que chegaria a cifras astronômicas se pudéssemos de alguma forma contabilizar
os boatos que afetam a vida das pessoas comuns. Sua recorrência estatística é
assustadora, e trata-se fenômeno arraigado, e antigo, por exemplo, na guerra
dos trinta anos, se atribuíam a Wallenstain os mais disparatados boatos, desde
traições mil, até o poder de atrair desgraças e catástrofes – como incêndios –
com sua mera presença. Na velha Hélade, sobre Alcebíades, circulavam tantos e
tais boatos que se imaginava que ele fosse um general imbatível, e que quando
era derrotado, só podia significar traição. Sobre o pirata Francis Drake,
também corriam de boca em boca, os mais rocambolescos boatos. Seu
conservadorismo, em termos psíquicos, nos dá pista de que corresponde em algo
de arcaico na estrutura de nossa alma.
Retornando
ao texto de Jung a que me referi no início, em uma escola, uma garota havia
espalhado uma história maldosa de teor sexual sobre seu professor, em virtude
desse fato fora expulsa. O golpe gerado pelo castigo forra demasiado para a
menina e sua família e o colégio resolveu aceitá-la de volta com base em um
laudo médico. O boato se originara a partir de uma sonho, este inofensivo em si
mesmo, que ele relatara imediatamente a 3 amigas. Esse sonho fora corretamente
interpretado em sentindo sexual por cada uma das amigas que contou uma versão
do sonho original.
Creio
que, ao tratar aqui do boato, precisamos deixar claro, assim como no caso do
sonho de velado teor sexual que os vários boatos interpretaram, que ele diz
menos respeito à vítima do boato (no caso de Jung o referido professor) e mais
aqueles que o escutam ou que o propagam. De alguma maneira, o boato formula
conscientemente algo de seu inconsciente. Como bem sabemos, por meio de uma
enorme quantidade de dados empíricos (sonhos, visões, lapsos de fala, gestos
involuntários, e os assim chamados, estados patológicos), há em nosso psiquismo
um fator irracional, existencial inalienável, aquilo que Jung chamava de fato
psicológico real, o inconsciente psíquico. Em bem menor escala, o boato
trata-se, a meu ver, como um tipo de contágio psíquico, mas de escopo limitado
e que, para além de reforçar nossa própria inconsciência, na maioria dos casos,
não traz maiores prejuízos àqueles que os ouvem ou espalham (o mesmo nem sempre
se dá com a vítima do boato). Nesse sentido, para compreender a psicologia do
boato, devemos nos perguntar o que, em nosso psiquismo, permite que ele surja,
se propague, se alastre parece um termo mais preciso, e possua um tal poder de
convencimento que solapa na maioria das pessoas a capacidade de discernimento racional.
Um
boato não é simplesmente uma mentira, apesar de existir uma mentira em seu
núcleo, é, todavia uma mentira que formula algum dado elementar do psiquismo
coletivo, logo, em certo sentido uma verdade coletiva que diz menos respeito ao
alvo do boato e, bem mais, a coletividade de onde se originou e onde se
alastra. Na realidade, o boato necessita de algo fantástico, ou fabuloso, do
contrário não teria a força que advém justamente de sua irracionalidade, que o
coloca, para a maioria das pessoas, num patamar imune, ou impermeável, a toda e
qualquer crítica racional (consciente). Acontece que o boato, não é contado, ou
percebido, pelas outras pessoas (talvez nem mesmo pela pessoa em que ele se
originou) como uma mentira deliberada, seu incrível poder de sugestão se dá,
paradoxalmente, por seu caráter, geralmente fantástico e inverossímil, ser
tomado como verdade. O texto de Jung é precioso, pois remete aquilo que há de
mais primitivo na psicologia do boato, naquilo que há de mais arcaico de uma
maneira mais evidente do que os boatos mais arraigados sobre pessoas de grande
importância coletiva, que me fizeram deitar a pena ao papel. O boato, assim
como o sonho, deve ser, ao menos em parte, uma produção espontânea do
inconsciente, principalmente no que diz respeito aos boatos mais comezinhos que
envolvem pessoas mais ou menos próximas, ou os boatos, geralmente de teor
sexual, que envolvem a vida das celebridades. No que diz respeito aos boatos
que envolvem em sua complicada teia, políticos como Lula e Obama, ou seus
parentes, há certamente uma dose bem maior de logro e má fé. Por certo alguém
deliberadamente e movido pelo desejo de causar dano à imagem desses políticos
inventou alguma história incrível e a disseminou. Mesmo nesses casos, como as fabulosas
histórias que circulam sobre o filho do ex-presidente Lula, há sem sombra de
dúvida, uma participação do inconsciente daqueles que leem a tal história, a
tomam por verdade (num sentido até mesmo mais elevado do que a verdade
corriqueira que tem por base, em nossa sociedade, algum fato material) e o
disseminam e, até mesmo se orientam por ele em suas decisões e juízos.
Tenho
um exemplo interessante sobre o caráter fantástico e extravagante do boato.
Certa feita, meu dileto amigo Filipe Jesuíno ministrou uma palestra sobre o
Batman, dias depois uma de suas alunas lhe contou a seguinte história
inusitada. Estava essa aluna tirando fotocópias de textos para uma das
disciplinas que meu amigo lecionava quando, outro aluno, que jamais fora aluno
do Filipe e sequer o conhecia, ao ver o nome dele nas cópias teceu os seguintes
comentários "poxa você é aluna do Filipe Jesuíno?! Muito massa, ele é
muito bom, teve aquela palestra sobre o Batman, o cara tem muita atitude, muita
atitude, o cara foi dar a palestra vestido de Batman!". Creio que eu não
preciso acrescentar que ele não ministrou a tal palestra fantasiado...
Temos
aqui duas categorias interessantes no que diz respeito ao boato: mentira e
verdade. Não é ocioso salientar que, essas categorias não são absolutas no que
concerne ao entendimento da psicologia desse fenômeno. Em termos puramente
racionais (até onde isso é humanamente possível), certamente as informações
contidas nos boatos são falsas, pois não correspondem a uma verdade factual,
por exemplo, o Lulinha não é dono de fazendas fabulosas com palacetes (que na
verdade eram fotografias do prédio histórico de uma reitoria), tão pouco Obama
era um estrangeiro, mas, essas ideias, por mais mórbidas que possam parecer a
crítica racional, tão pouco, em termos psicológicos, são falsas. Teremos,
estimado leitor, que lidar com o fenômeno em sua paradoxalidade se quisermos
entendê-lo. Ao invés de utilizar esses termos verdade/mentira, devemos procurar
apoio não, nas corriqueira formas tradicionais de pensamento (esse em
re, esse in intelectu solo), ambas quedam prisioneiras dessas categorias, que as
agrilhoam e não nos permitiriam avançar por nenhuma dessas sendas. Nosso ponto
de Arquimedes é a perspectiva psicológica (esse
in anima) como formulada por Jung. O boato trata-se ou de uma produção
espontânea da fantasia, ou de algo (uma mentira deliberada) que justamente pelo
seu exagero e teor fantástico, ativam a fantasia dos que têm contato com ela,
não se tratando por isso, em termos psicológicos, nota bene, de uma
inverdade simplesmente. Como no exemplo do casal que acreditava piamente na
existência de uma revista Forbes que mostrava o Lula como um dos cem homens
mais ricos do mundo, o boato é sentido como real, como verdade, e o seu caráter
fabuloso, ao invés de ter o efeito de diminuir seu poder de sugestão e
persuasão, o aumenta. Mas em termos psicológicos o que é real? Por incrível que
pareça, a resposta é simples, tudo aquilo que age, que atua, é real.
Vejam
o caso do boato que ouvi com inabalável convicção do casal que o professava com
um temor quase religioso (a força de expressão literária que uso, esconde uma
verdade psicológica, basta para isso remover o quase, mas me adianto), para
ambos, independente de o Lula ser ou não um bilionário, aquilo agia de maneira
poderosa sobre seu psiquismo, como um fator numinoso que atraía sua atenção e
libido de uma maneira irresistível, enfeitiçando a sua consciência e impedindo
qualquer reflexão. Ingenuamente, eu ainda tentei raciocinar e disse “bem, isso
é impossível, talvez haja alguma confusão aí. Não seria uma lista dos cem
homens mais influentes? Uma lista que diz respeito ao poder político e não
financeiro?”. O meu argumento, por mais que lógico e sensato, foi sumariamente
dispensado, a senhora elevou o tom de voz e com um gesto autoritário para
reforçar sua fala, retrucou de maneira lacônica “não! Rico!”. Seu gesto em
seguida foi significativo, ele virou o rosto na direção contrária a minha, em
seguida seu marido falou de uma maneira como se ele possuísse um exemplar da
revista, revista essa que não existe! Disse até mesmo que o levaria como prova
a um amigo incrédulo. Percebem que, aquilo que nossa consciência coletiva
desperta tem como mais sacrossanto, nossa tendência irracional da preferência
sentimental e universal pelo mundo físico, não significava nada diante do poder
da irracionalidade desse boato, que funcionava, exatamente com o mesmo poder
nefasto de sugestão de um sintoma histérico. A ideia mórbida, de que Lula é um
bilionário que está numa lista da Forbes, atua na consciência de maneira
autônoma – quase demoníaca – de maneira compulsiva, carregada de tal carga de
afeto que o complexo do eu é mais um objeto dessa ideia do que seu sujeito.
Restou
a mim o silêncio resignado e, depois de muito matutar por meses observando esse
tipo de boatos no facebook,
finalmente me resolver a escrever. Perceba estimado leitor, que mesmo eu e meus
complexos, tão autônomos quanto os do casal que possuía uma revista fantasma,
fui atingido pelo poder do afeto desse boato e mobilizado a escrever. Ninguém
está realmente a salvo desse tipo de influencia demoníaca, não se iludam.
Quando o meu interlocutor falou que possuía a tal revista, por um instante eu titubeei,
uma semente insidiosa de dúvida foi plantada em meu espírito, a ponto de me
levar a pesquisar a veracidade de algo que, de tão estapafúrdio, deveria ter
descartado como mera quimera sem pensar duas vezes, mas o segredo do poder
sugestivo é justamente a absoluta certeza com que se faz a sugestão, não uma
certeza fingida, mas uma certeza real e inamovível. A realidade psíquica (Realität) se baseia na constatação de
que vivemos imediatamente num mundo de imagens (representações) psíquicas, toda
a nossa realidade é mediada pelo psiquismo, não temos acesso direto a matéria,
ou as coisas que nos cercam como elas o são em si, temos acesso exclusivamente às
representações psíquicas das coisas, por isso nossa única realidade imediata é
a realidade do psíquico, a tal ponto que Jung chega mesmo a afirmar, em
Psicologia e Religião, que a psique é a realidade.
Nosso espírito não pode apreender sua própria forma de existência, pois falta-lhe seu ponto de apoio de Arquimedes, externamente, e não obstante, existe. A psique existe, e mais ainda: é a própria existência. (Jung, 1995, p.14).
Tanto
o espírito quanto a matéria, estes dois conceitos, são símbolos usados para
expressar fatores desconhecidos, quaisquer explicações da realidade, que se
baseiem em um ou em outro, são igualmente lógicas, igualmente metafísicas,
igualmente arbitrárias e igualmente simbólicas. Todo o nosso processo físico de
percepção, altamente complexo está,
automaticamente e quase simultaneamente, relacionado a um mais complicado ainda
processo de apercepção, que
transforma os dados sensoriais em imagens psíquicas altamente complexas. Veja,
estimado leitor, existem dois tipos de apercepção: apercepção ativa e apercepção
passiva. Estamos tratando aqui de um fenômeno que diz respeito à apercepção
passiva. A apercepção é um processo psíquico pelo qual se articula um novo
conteúdo com conteúdos semelhantes e já existentes. A apercepção ativa ocorre
quando o sujeito apreende conscientemente, por motivação própria, um novo conteúdo
e o assimila a outros conteúdos já a disposição. A apercepção passiva, que nos
interessa mais de perto em virtude do fenômeno do boato, é o processo pelo qual
um novo conteúdo se impõe de fora (pelos sentidos) ou de dentro (a partir do
inconsciente) à consciência, forçando a atenção e apreensão. No segundo caso, a
despeito do eu, o novo conteúdo força a sua presença.
Veja,
estimado leitor, voltemos ao nosso objeto de estudos, o boato, em particular
aquele que foi a proverbial gota d’água que me levou finalmente a organizar
minhas reflexões. Para meus dois interlocutores, Lula não passa daquilo que
Jung Chamou de “mitologia jornalística”, eles jamais tiveram contato com ele
pessoalmente, ou o conhecem, ele é uma imagem na televisão, ou fotografias nos
jornais e revistas, o que acontece aqui, é um fenômeno de mitopoiesis, porém
mórbido e capenga. Em seu Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, ao falar dos
mitos dos primitivos, Jung asseverou que o homem primitivo não estava
interessado na explicação objetiva do óbvio, seus mitos não procuravam explicar
a realidade externa, não, o mito é a essência da alma. As figuras míticas
correspondem a vivências interiores que as produziram originariamente. A alma
inconsciente possui uma necessidade imperativa de assimilar toda experiência
sensorial externa a acontecimentos anímicos, não se trata de mera alegoria, mas
sim expressões simbólicas do drama interno da alma, que o homem só conseguia
apreender por meio da projeção. O drama inconsciente era encontrado
analogicamente em todos os fenômenos da natureza. O que acontece no que diz
respeito ao boato é que a imagem de Lula com todas as suas qualidades e
defeitos, é assimilada pelo complexo inconsciente para representar, de maneira
espelhada, um drama inconsciente. Em virtude desse processo, no nosso caso
Lula, ganha características grandemente exageradas, sobre-humanas, ou sub-humanas
(o que também significa um tipo de exagero), tão radical é a projeção que quem
se enfeitiça pelo boato, sequer desconfia que se trate de um drama que diz
respeito a sua própria alma inconsciente. No nosso caso, ele é um bilionário,
não um mero ricaço, ou milionário, mas bilionário, o excesso, o exagero, nos
indica a intensidade do afeto que sua imagem constela.
A
“projeção”, na realidade a identidade arcaica, pois para ser preciso só se pode
falar em projeção quando se começa a quebrar a identidade, não é um arbítrio,
ela é um fenômeno inconsciente e automático, e como todo fenômeno inconsciente
é compulsivo. A consciência não a cria, ela já está lá de antemão. Pois bem, a
identidade/projeção é um fenômeno inconsciente e automático por meio do qual um
conteúdo inconsciente para o sujeito é transferido para um objeto, que cessa no
momento que se torna consciente (um penoso processo composto de 5 etapas
sucessivas). Para esse processo, passa a importar muito pouco o Lula de carne e
osso, na verdade esse processo tem por consequência o isolamento do sujeito em
relação ao mundo exterior, passando a existir uma relação ilusória.
As projeções transformam o mundo externo em concepção própria, mas desconhecida. Por isso, no fundo, as projeções levam a um estado de auto-erotismo ou autismo, em que se sonha com um mundo cuja realidade é inatingível. (Jung, 1988, p.7).
No
nosso caso, de nosso boato, vê-se com clareza que o conteúdo inconsciente
projetado é algo negativo, aquilo que Jung denominou de sombra, em certa
medida, esses boatos que fazem uso dessas pessoas de elevado valor coletivo,
Lula, ou Lulinha (psicologicamente seu duplo), se prestam a carregar essas
projeções negativas, de nossa ambição, ganância, falta de ética, pouco
importando o Lula de carne e osso. O oposto é igualmente verdadeiro, e esse
aspecto psicológico foi magistralmente explorado na campanha eleitoral de
Dilma, a admiração que há por Lula (que é enorme, muito maior do que o aspecto
negativo e sombrio) se deve a projeção da imago parental de seus eleitores, a
propaganda foi altamente sugestiva ao colocar Lula como pai da nação, com isso
atingiu-se o âmago do espírito de seus admiradores e eleitores.
A
identidade/projeção é incrivelmente conservadora, e somente por meio de um
trabalho árduo e penoso de autoconhecimento (compreensão) pode ser desfeita,
pois a sombra constitui um delicado problema de ordem moral que desafia o homem
todo. Uma parte do poder do boato vem do caráter numinoso dos conteúdos
inconscientes projetados. O númeno é a energia psíquica própria do arquétipo, numinoso
é toda existência ou efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. A
consciência é severamente perturbada, ela não criou esses efeitos dinâmicos o
efeito de apodera do indivíduo, o numinoso é uma condição do sujeito, que
independe de sua vontade (o quantum de energia disponível a consciência). Esse
aspecto, que está ligado àquilo que foi projetado e que circula por meio do
boato, é irracional, e imune a qualquer tipo de boa vontade ou lógica, o
sujeito já não pode mais argumentar, é uma suprema verdade que se impõem com
força avassaladora, uma experiência emocional que move o sujeito e que nenhum
argumento pode abalar sua realidade imediata e poder sugestivo. Em nosso caso
trata-se de uma ideia mórbida, altamente comovedora, que pensa no lugar do
sujeito, e que é tão convincente e imediatamente real, e tão carregada de afeto
que perturba a hierarquia da consciência. Como já aludi anteriormente, há um
estado auto-erótico, de isolamento da realidade em virtude da
identidade/projeção, e acontece que à medida que a realidade perde a sua influência
as fantasias interiores aumentam sua força. A libido que deveria estar
investida na realidade reanima regressivamente as fantasias inconscientes
aumentando ainda mais o alheamento da realidade e confere a essas fantasias uma
força determinadora insuspeita. Mas por que tais boatos se alastram? A resposta
é que eles tocam uma corda comum.
O
inconsciente é uma psique impessoal comum a todos os seres humanos, que
paradoxalmente se expressa por meio de uma consciência pessoal. Jung utiliza
uma alegoria interessante para ilustrar isso, todos nós respiramos, mas nem por
isso a respiração deve ser interpretada como um fenômeno pessoal, assim como o
inconsciente, a respiração é um dado coletivo. As imagens míticas, mesmo as
projetadas em Lula ou Obama, ou mesmo Justin Bieber, pertencem à estrutura do
inconsciente, que mais possui a maioria das pessoas do que é por elas possuída.
Lembremos, ao analisarmos esse fenômeno, estimado leitor, das palavras de Jung
em uma de suas obras – uma das mais importantes em minha opinião – Presente e
Futuro, de que o dom da razão e da reflexão crítica não constituem uma propriedade
incondicional do homem. Quando a temperatura afetiva se eleva, em virtude das
emoções provocadas por uma situação terem ultrapassado certo ponto crítico, a
razão dá lugar a irracionalidade compulsória, o que surge no lugar da razão são
desejos quiméricos, slogans e preconceitos afetivos, e que podem se transformar
em uma espécie de possessão coletiva. Convém salientar, que o estado de
identidade caracteriza a consciência da criança, do primitivo e o inconsciente
do adulto civilizado. O nosso boato, dos bilhões de Lula publicados na Forbes,
extrai sua força desse estado psíquico, veja, como afiança Jung, quem quer que
se identifique com a psique coletiva tentará impor aos outros as exigências de
seu inconsciente, pois esse tipo de identidade acarreta um sentimento de
validez geral que provém da universalidade da psique coletiva. Graças a esse
sentimento essa pessoa ignorará por completo as diferenças pessoais dos demais.
Uma atitude coletiva pressupõe, obviamente, esta mesma psique coletiva nos outros. Isto significa, porém, um menosprezo implacável frente às diferenças individuais (...). (Jung, 1997, p.26).
Vejam,
a despeito de minha boa vontade em debater a tal história extravagante dos
bilhões de Lula publicados na Forbes (um “mero boato”) a resposta a minha
argumentação foi um enfático “Não! Rico!”, o dom da razão, em virtude da
identidade/projeção, do caráter numinoso da ideia mórbida que se achava
espelhada na imagem de Lula, do desprezo às diferenças individuais que a
sensação de validez geral causa, já tinha ido há tempos pras cucuias. Vejam que
mesmo eu (ciente de todas essas coisas psicológicas de nomes estranhos) não
estava imune ao efeito sugestivo dessa ideia mórbida extravagante, e titubeei quando
vi meu outro interlocutor afirmar que possuía a tal revista que sequer “existe”
– ela existe e é real, pois tudo aquilo que age que atua é real e, a tal
revista fantasmagórica agiu até mesmo em mim. Há em todos nós um aspecto
individual[1]
(que é único, imprevisível e não interpretável) e um aspecto coletivo. Existem
inúmeras pessoas cujo traço principal é o coletivo, e outros em que o traço
preponderante é o individual. O homem com traço coletivo preponderante é o
“homem genérico”, o homem genérico possui características primitivas, no
sentindo de estar sujeito de maneira mais acentuada à identidade arcaica, nesse
caso, tem efeito sobre ele, como no primitivo, tudo aquilo que impressiona.
Jung, ao tratar dos métodos terapêuticos, inclusive os métodos que se baseiam
na sugestão, afirmou que no que se refere aos últimos “Só importa o método em
que o terapeuta tem confiança. Sua fé no método é decisiva.” A sugestão deita
suas raízes lá onde à consciência claudica e, essa brecha na muralha, aumenta
em decorrência do contágio psíquico, típico da psicologia de massa, e, vejam, a
fé de meus interlocutores em seu boato extravagante era tanta que fez com meus
demônios despertassem e se rissem de mim e de minhas certezas, abismo convoca
abismo. Em virtude dessa certeza, e do caráter numinoso da ideia mórbida que
estava no coração da identidade/projeção fui tomado pela dúvida, mesmo que
momentânea, e, ao mesmo tempo, instigado a finalmente pensar sobre um fenômeno
que há tanto tempo me incomodava. Esse traço coletivo, do “homem genérico”,
está presente em todos nós, daí a força sugestiva desses boatos, que apelam à
inconsciência, a nossa inferioridade, pois o homem primitivo (primevo, arcaico)
vive ainda em nós sob uma pátina muito delicada de consciência e cultura,
bastando aquilo que Jung chamou de abaixamento do nível mental (termo cunhado
por Janet), seja causado pela fome, cansaço, ou um baralho estranho numa noite
escura e sem lua, para que ele se manifeste e junto dele retorna o mundo das
origens, repleto de seus fantasmas e demônios, que hoje em dia se disfarçam na
forma de “ismos”, preconceitos afetivos, slogans, e histeria de massas. Mas
como esses boatos se espalham tanto?
Mutatis Mutandis, eles são um tipo sutil e discreto de histeria de massas,
representam um tipo de contágio psíquico que podem significar o sintoma de um
mal coletivo mais grave. Há ainda algo a que apenas aludi, e que antes de
começar estas considerações, é importante salientar, o boato não apenas formula
algo de nosso inconsciente de maneira projetiva, é muito comum que nosso
inconsciente acrescente algo a ele, como no caso estudado por Jung em 1910, o
que o torna ainda mais crível, o que a maioria das pessoas não se apercebe, por
ser inconsciente, é que a maioria de suas ações, gestos ou mesmo opiniões e
pensamento são atuações do inconsciente na consciência por meio de lacunas
desta. Certa feita, eu estava em um grupo de estudos de meu dileto amigo e
parceiro de estudos e pesquisas Filipe Jesuíno, quando um dos participantes
disse algo desdenhoso e francamente maldoso ao meu respeito. A despeito de ser
um tanto atrevido, em um raro rasgo de grandeza, eu preferi ser elegante e
ignorar o comentário maldoso. Meu amigo, numa flagrante inversão de nossos
papéis habituais, ficou imediatamente vermelho como um pimentão, vociferou com
o fulano ao mesmo tempo em que batia com força na mesa enquanto o outro fazia
uma careta apavorada e se encolhia covardemente. No dia seguinte a esse
episódio inusitado ao falar com meu amigo, ele sequer se recordava de ter
levantando a voz, ou mesmo ter batido na mesa, sua memória era a de ter dado
uma resposta direta e elegante e, simplesmente “respondido a altura” a
grosseria, pois eu era seu convidado no tal grupo, somente quando eu lhe contei
a história, ele, por ter confiança em mim e não por ter podido se recordar de
outra maneira, pôde se dar conta do afeto que o tinha tomado. Até então as
batidas na mesa, a voz alta, tudo isso fora inconsciente. Mesmo pessoas as mais
sãs e normais, não estão a salvo da autonomia de seus próprios complexos, para
piorar a situação, Jung supunha (de maneira otimista) que para caso manifesto
de doença mental existem ao menos dez casos latentes, que não manifestam
sintomas claros de seu estado, porém suas condutas e concepções se encontram
sob a influência de fatores inconscientes doentios e perversos. O estado mental
dessas pessoas se acha coletivamente exaltado por preconceitos afetivos e
fantasias de desejos impulsivas, tais pessoas são o combustível ideal para que
se alastre uma epidemia psíquica, ou um boato. Mas como mostra o meu exemplo
(tanto o do efeito de sugestão que a ideia extravagante de que Lula era um
bilionário, quanto o de meu dileto amigo Filipe) mostra que mesmo pessoas
normais (peço ao leitor parcimônia com a minha suposição de nossa normalidade)
estão sujeitos, em um momento ou outro a fantasias de desejos impulsivas e
preconceitos afetivos. Mas, por quê?
Infelizmente,
muito poucos de nós despendem as energias morais necessárias para ser capaz de
encarar sua própria sombra, isto é, suas inferioridades, traços obscuros de
caráter que, entregues a si mesmos possuem uma natureza emocional, certa
autonomia e uma tendência a se tornarem obsessivos, e até mesmo, possessivos.
Considerem o meu momento de dúvida diante de uma ideia estapafúrdia, ou a ira
do Filipe, em nenhum dos dois casos tratou-se de um arbítrio. Esses e uma
miríade de outros exemplos nos mostra, que a emoção não é uma atividade, mas um
evento que sucede ao indivíduo. Mesmo
pessoas normais possuem quimeras que fazem apelo a ressentimentos fanáticos, e
não é difícil encontrar em uma vasta gama de pessoas motivos os mais variados
para esse tipo de ressentimento. Nos boatos que vemos se espalhar pelo facebook, essa chega quase a ser a
regra, em um espetáculo terrível de se observar a partir de uma perspectiva
psicológica. Isso acontece, pois a vasta maioria das pessoas confunde
autoconhecimento com o conhecimento da personalidade consciente do eu, mas,
afiança Jung, o eu só conhece seus próprios conteúdos desconhecendo o
inconsciente e seus respectivos conteúdos.
O que comumente chamamos de “autoconhecimento” é, portanto, um conhecimento muito restrito na maior parte das vezes, dependente de fatores sociais – daquilo que acontece na psique humana. Por isso, ele muitas vezes tropeça no preconceito de que tal fato não acontece “conosco”, “com nossa família”, ou em nosso meio mais ou menos imediato. Por outro lado, a pessoa se defronta com pretensões ilusórias sobre a suposta presença de qualidades que apenas servem para encobrir os verdadeiros fatos.
O campo amplo e vasto do inconsciente, não alcançado pela crítica e pelo controle da consciência, acha-se aberto e desprotegido para receber todas as influências e infecções psíquicas possíveis. Como sempre acontece quando nos vemos numa situação de perigo, nós só podemos nos proteger das contaminações psíquicas quando ficamos sabendo o que nos está atacando, como, onde e quando isso se dá. (Jung, 2011, pp. 13, 14)
A
longa citação foi necessária para mostrar de maneira clara o quanto estamos
todos sujeitos a em algum momento, acreditar, ampliar, ou divulgar um boato (ou
coisas bem piores). É preciso ter claro, e isto nossa época parece ignorar, e
até mesmo deseja ignorar, que a identificação entre consciência e psique é no
fundo, uma presunção do intelecto, uma cara ilusão iluminista. Mas o fenômeno
desses boatos, com seu conteúdo algumas vezes francamente fantásticos,
alimentados por quimeras que fazem apelos a ressentimentos fanáticos (a
infindável série de histórias absurdas sobra a prodigiosa fortuna do filho do
Lula dão testemunho eloquente disso), mostra que a sombra de nosso racionalismo
iluminista, as forças psíquicas inconscientes ainda se movem esquivas. Os
velhos deuses e demônios ainda se riem de nós quando, ao sucumbirmos à
irracionalidade e a seu poder de possessão, perdemos a dom da reflexão crítica
e movidos por nossos ressentimentos fanáticos (contra os políticos, contra os
pobres, contra a polícia, contra os bandidos, contra o PT, contra os ricos, a
lista é longa e contraditória) damos fé a ideias estapafúrdias sem nem ao menos
nos preocuparmos em saber se são fidedignas, ou se é correto espalhar calúnias,
nesse caso, quando agimos com essa certeza, agimos como deuses eis um dos
problemas éticos relacionados a essa boataria.nesses casos agimos segundo a
ideia disparatada de que nosso julgamento é válido, esquecemo-nos de que as
concepções morais são incrivelmente divergentes. Há um secreto orgulho
luciferiano quando compartilhamos boatos incríveis, pois isso nos exalta e nos
eleva, mais até do que diminui ou achincalha a vítima do boato, é uma imensa
presunção acreditar que se pode sempre saber o que é bom ou mal, nesse ponto,
pecamos todos por farisaísmo.
[1]
Segundo Jung, “(...) a individualidade é apenas relativa, isto é, apenas
complemente a conformidade ou a semelhança entre os homens (...)”
Muito bom ensaio. Mas qual é o nome do autor?
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