João era o mais novo de
quatro filhos, quando seu pai morreu, toda a herança ficou com os irmãos mais
velhos que o deixaram sem nada. Como não pudesse continuar a viver nas terras
da família só lhe restou à vida de caixeiro viajante. Ele perambulou como um
pobre coitado por várias vilas e cidades até que chegou a proximidade de uma
vila de pescadores numa praia distante e longe de tudo. Quando estava na estrada
ouviu rumores de que aqueles que iam para essa vila afastada nunca retornavam,
ou, se o faziam, voltavam sem partes do corpo e loucos. Devido a esses boatos
todos evitavam a estrada que levava até lá, mas João não deu bola para essa
conversa e foi até lá vender suas mercadorias, pois era um vendedor muito ruim
e pensou que ali não teria muita concorrência.
A vila era muito
pequena e pobre, o chão das ruas era de areia branca da praia e os telhados de
sapé, mas apesar da pobreza as pessoas pareciam satisfeitas com seu destino. A vila
era tão pequena que não tinha nome nem uma pousada, mas ele conseguiu abrigo na
casa de um velho pescador que lhe deu de comer em troca de algumas bugigangas. A
filha do pescador vivia com ele e com três órfãos, um menino e uma menina
gêmeos que deveriam ter dez anos, e um menininho de uns dois anos, louro e
bochechudo que ninguém sabia ao certo como havia ido parar ali.
Quando a noite caiu,
João resolveu sair para tomar uma bebida, a filha do pescador, que precisava
sair, pediu que ele levasse com ele o menino pequeno, e os dois irmãos também
resolveram segui-lo. No caminho para o bar, mesmo a vila sendo pequena, João
deu voltas e mais voltas por ruas que não havia visto antes, e quando já se
dava por completamente perdido, os gêmeos o levaram a entrar em uma porta
aberta numa viela em um beco sem saída. Ali, ele encontrou um estranho
labirinto, construído com os mesmos materiais das casas e repleto de corredores
e salas cheias de coisas estranhas e assustadoras. Depois de um tempo os gêmeos
constataram assustados que estavam perdidos no labirinto de bruxas que viviam
na vila chamadas blatskas, e que se fossem pegos ali seriam certamente mortos,
mas por mais que tentasse encontrar a porta por onde entraram não conseguiam,
por fim eles resolveram se esconder dentro do labirinto e João nunca mais os
viu. Esse tempo todo ele segurava na mão do garotinho e por fim, utilizando
suas pegadas na areia branca para saber por onde tinha passado, encontrou a porta
de saída.
Do lado de fora havia
um cercado de pau a pique e não se via nem sinal da vila, e nesse cercado um
imenso lobo de pelo negro como o piche. João jogou o garoto por cima da cerca
e, antes que o lobo pudesse mordê-lo ele também saltou por cima da cerca com
uma acrobacia. Do lado de fora, ele viu uma matilha de lobos que vinha da
imensidão vazia e selvagem, ao se aproximarem eles todos se transformaram em
pessoas, suas peles de lobos viravam apenas uma espécie de manto que lhes
cobria a cabeça e as costas. Ele logo soube que se tratavam das tais bruxas. Um
homem, segurando uma adaga curta de lâmina sinuosa se aproximou e lhe disse que
por ter entrado teria que pagar com uma parte de seu corpo e, como entrara no
labirinto com uma criança teria que se responsabilizar por ela também e perder
outra parte de seu corpo. Colocando a ponta da adaga perto do olho de João, o
homem lobo disse que na próxima lua cheia teria de entregar seu olho e um de
seus testículos. Sem muita opção ele concordou e entrou novamente no labirinto
e, dessa vez, foi capaz de encontrar a porta por onde entrara.
De volta à vila de
pescadores, João sentou-se no chão de areia branca e deixou-se ficar ali
abatido, precisava descobrir um meio de escapar das bruxas. Primeiro ele pensou
em matá-las, mas como poderia matar bruxas capazes de se transformar em lobos
selvagens? Ele estava assim, nesse estado de ânimo miserável e abatido quando o
garotinho se dirigiu a ele falando de maneira clara como se fora um adulto.
João ficou espantado, mas ouviu o que o garotinho lhe dizia. O menininho tinha
um plano para salvar João. Na vila existia um homem que criava porcos e o
primeiro passo era ir até lá e conseguir com o tal homem um olho e um testículo
de porco. João ficou animado, assim poderia escapar de ter que perder partes de
seu corpo, mas o menino o advertiu que isso não bastava, as bruxas mandavam uma
delas coletar os pedaços do corpo e experimentar, se a carne fosse saborosa as
demais iriam atrás do pobre infeliz para come-lo todo, se a carne fosse ruim
elas o deixavam ir, mas usavam sua magia negra para deixar o coitado que
caíssem em suas garras insano.
João se deixou cair
novamente abatido, suas esperanças haviam voltado apenas para perceber no
momento seguinte que a situação era ainda mais desesperadora do que pensara,
mas novamente o pequenino de cabelos loiros lhe disse “você cuidou de mim, e
evitou que aquele lobo negro me devorasse, mesmo arriscando a própria vida, por
isso vou retribuir o favor, não se desespere eu tenho um plano, mas primeiro
vamos conseguir o olho e o testículo de porco”. O menininho levou João até o
local onde ficavam os porcos e com as poucas moedas que tinha ele comprou um
olho e um testículo. Quando saíram do chiqueiro o menino disse. “agora você
precisa de uma planta que cresce na foz do rio, em um manguezal, mas ela é
guardada por uma bruxa em forma de serpente”. João se deixou cair novamente
abatido, como poderia encarar mais uma bruxa? O menino explicou que a bruxa
vivia num lago e que para pegar as planta João teria que entrar no manguezal e
ao chegar ao lago, nadar até a outra margem prendendo o fôlego, se ele tomasse
ar a cobra o morderia e ele morreria envenenado, mas enquanto segurasse o
fôlego ela nada poderia fazer.
Mesmo apavorado João
seguiu as instruções e entrou no manguezal e logo encontrou o lago de água
salgada. Ele tirou a roupa e prendeu o fôlego antes de mergulhar. Assim que ele
começou a nadar, uma imensa cobra coral de mais de três metros começou a segui-lo,
mas não o molestou. Na outra margem ele pegou a planta e nadou de volta. Enquanto
ele vestia as suas roupas na margem, ele viu no meio do lago uma mulher nua
muito bonita e teria pulado para salvá-la da cobra se o menininho não o tivesse
impedido “aquela é sua verdadeira forma, se você voltar para a água certamente
será morto”. De volta à vila, o menino ordenou a João que espremesse as folhas
até conseguir um suco e mergulhou no suco os dois pedaços de carne de porco. Em
seguida ele explicou o plano. Ao comer a carne o homem lobo seria acometido de
uma terrível dor de barriga, e nesse momento João poderia se apoderar de sua
pele de lobo e adaga, assim roubaria os poderes e poderia escapar. No dia
marcado o menino enrolou ao redor do olho de João um pano ensanguentado e disse
a ele que mancasse de uma perna, para fingir estar ferido. Quando chegaram ao
local combinado o homem lobo surgiu na forma de uma lobo branco imenso, mas
logo voltou a forma humana. João se aproximou receoso e lhe entregou um pacote
com o olho e o testículo. Salivando o homem agarrou o pacote e devorou os
pedaços que pensava serem de João. Rapidamente ele começou a se sentir muito
mal e muito enjoado e logo sentiu que precisava urgentemente correr para
atender o chamado da natureza. Nesse momento, ao ver o aperreio do bruxo, João
disse que era melhor deixar sua pele de lobo e adaga com ele ou elas acabariam
sujas. Sem pensar duas vezes o homem lobo lhe entregou seus objetos e correu
para uma moita.
Nesse momento o menino
disse a João que vestisse a pele de lobo e quando ele voltasse o atacasse e
matasse a mordidas. Assim que o bruxo retornou, encontrou no lugar de João um
lobo branco e antes que pudesse fazer qualquer coisa foi morto a dentadas. João
removeu a pele de lobo e voltou à forma humana e estava exultante, finalmente estava
salvo! Novamente o menininho lhe advertiu para que não fosse tão afoito, pois
ele ainda estava sob o encanto das bruxas, para escapar com vida precisava dar
cabo de todas elas e não apenas de um dos lobos da matilha. Mesmo desapontado,
João estava mais confiante em seu diminuto amigo e perguntou se ele tinha um
plano, e a resposta foi afirmativa. Na pele de lobo João precisava ir até o
lago e quando a bruxa estivesse se banhando sem a pele de cobra roubar a pele. Como
lobo ela nem ligaria para a sua presença, depois com a pele em seu poder
forçá-la a buscar no fundo da lagoa um erva muito venenosa.
João assim o fez, ele
se aproximou em forma de lobo enquanto ela se banhava e assim que ela se
distraiu despiu-se da pele e agarrou a pele de cobra. A bruxa ficou desesperada
e implorou que João lhe devolvesse seu couro de cobra. Com a pele em seu poder
ele ordenou que ela lhe desse a erva venenosa do fundo da lagoa. Imediatamente ela
mergulhou e retornou com uma bola de musgo verde. João pegou o veneno e estava
prestes a devolver a pele quando o menininho o reteve “se você devolver a pele
de cobra ela vai lhe matar aqui mesmo, sem a pele ela está indefesa”, ao ouvir
isso ele guardou a pele e a deixou em prantos no lago. “agora você vai colocar
esse musgo na boca e não vai engolir”, João ficou ressabiado, pois poderia
ficar ele mesmo envenenado. O menino percebeu a dúvida em seu rosto e disse “não
se preocupe, isso só vira veneno ao ser misturado na água, enrole em folhas,
vista a pele de lobo e vá até o covil das Blatskas, lá finja que vai beber água
do poço onde elas bebem e deixe o musgo cair na água e espere até que todas
tenham bebido, mas dessa vez não posso ir com você”. João engoliu em seco, e
começou a procurar folhas para enrolar o musgo.
Ele vestiu a pele de
lobo e farejou os outros lobos até uma caverna a beira mar, escavada pelo
movimento das ondas, o chão da caverna estava repleto de ossos humanos e todo o
lugar exalava um cheiro desagradável, em suas peles de lobo as demais bruxas e
bruxos estavam lá apenas esperando. João fez exatamente como o menininho lhe
instruíra, ao fundo da caverna existia um poço de água doce, ele foi até lá,
fingiu beber e deixou o veneno cair na água e se afastou. Os demais lobos o
encararam, esperando por uma resposta, ele pensou e lembrou-se do que o
garotinho havia falado sobre o que as bruxas faziam com as pessoas que entravam
no labirinto e resolveu simplesmente balançar a cabeça negativamente. Os lobos
se dispersaram e um deles tirou a pele revelando o corpo de uma mulher de
cabelos compridos e negros, ela começou a traçar alguns desenhos no chão com
sua adaga enquanto recitava palavras estranhas, João engoliu em seco novamente,
os lobos iam um a um beber no poço, mas a mulher parecia estar cada vez mais
próxima de terminar o feitiço que iria enlouquecê-lo. Alguns lobos ainda não
haviam bebido a água envenenada quando ela terminou seu feitiço e deu uma
gargalhada maligna, seguida pelo uivo da matilha. João deveria ter
enlouquecido, mas o encanto não surtiu qualquer efeito. Quando ele percebeu que
o último dos lobos bebeu da água envenenada, removeu a pele de lobo e esfaqueou
a bruxa com a adaga de lâmina sinuosa.
Os lobos o encararam
com os olhos brilhando de ódio, mas quando tentaram atacar caíram tomados de
convulsões e babando até que estavam todos mortos. João vestiu a pele de lobo e
retornou a cidade, mas não havia mais nada lá, apenas dunas e areia e, sentado
sobre uma pedra, o garotinho loiro e bochechudo. “o que houve aqui?” perguntou
João. O garoto explicou que eram todos fantasmas, presos a esse mundo pela
maldição das bruxas para atrair viajantes incautos, agora que estavam mortas, a
maldição estava quase totalmente desfeita “você só precisa me entregar a pele
de lobo e a adaga”. João relutou por um momento, pois aqueles objetos tinham
sido muito úteis, mas o garotinho tinha lhe dado bons conselhos e resolveu
acreditar nele uma vez mais e lhe entregou a pele e a adaga. O menino sorriu e
disse “graças a você tudo pode ficar bem novamente. Debaixo dessa pedra há uma
arca repleta de ouro, o bastante para que viva longe da pobreza pelo resto de
seus dias. Faça uma fogueira e queime a pele de cobra, assim você poderá
desposar a mulher na lagoa e vocês terão muita sorte e filhos juntos e ela
também se livrará de sua maldição. Quanto a mim, preciso que corte a minha
cabeça com essa adaga”.
João olhou para ele
espantado e retrucou “não posso fazer isso, você foi muito bom para mim, sem
sua ajuda jamais teria escapado”. O menininho não se impressionou com essas
palavras e insistiu, mas como ele se recusasse o garotinho explicou. “sou o
príncipe de um reino distante, já estou preso aqui há cem anos, quando você
cortar a minha cabeça eu imediatamente retornarei ao meu reino que precisa de
mim. Depois de pegar o tesouro e a sua esposa, venha me visitar, meu castelo
fica a sudoeste daqui há sete dias de viagem”. Mesmo receoso João fez como lhe
fora ordenado e cortou a cabeça do menino, depois jogou a adaga no mar, foi até
a lagoa e trouxe de volta com ele sua esposa que já não podia mais se
transformar em cobra ou respirar debaixo d’água e removeu a pedra e guardou o
seu ouro. Sem demora ele se dirigiu ao castelo de seu amigo príncipe, pois
estava ansioso para revê-lo e lá viveu até o fim de seus dias como um dos
conselheiros do rei.
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