Em
breve será lançada nos cinemas a segunda adaptação dos quadrinhos do personagem
Thor, da Marvel Comics, isso após o estrondoso sucesso de The Avengers, em que o
personagem é um dos protagonistas. A primeira aparição de Thor nos quadrinhos
se deu em agosto de 1962 (na “silver age
of comics”) na revista Journey Into
Mystery (vol. 1) #83, na história intitulada "The Stone Men from Saturn!". O personagem foi adaptado para os
quadrinhos pelos legendários Stan Lee (argumentista), Larry Lieber (roteirista),
Jack Kirby (desenhista) e Joe Sinnott. Em sua primeira aparição nos quadrinhos
Thor já surge munido de seu poderoso martelo, Mjolnir, antes da aparição de
qualquer outro elemento Asgardiano. Sua aparência difere da descrição
tradicional das lendas nórdicas e teutônicas, por ser mostrado loiro e sem
barba, ao invés de ruivo e barbado, dirigindo um carro puxado por dois
carneiros que são responsáveis pelo barulho do trovão. Os traços de aproximação
e distanciamento do mito de Thor nos quadrinhos variam de acordo com o
roteirista, sendo incorporados ou abandonados periodicamente, assim como o
aspecto mágico associado ao personagem, que vem ser firmando e ganhou força ao
ser magistralmente explorado no universo paralelo The Ultimates, que tem
sido a principal inspiração para os filmes mais recentes da Marvel.
Mesmo
com a inspiração no mito, o Thor da Marvel Comics adquire contornos próprios,
uma cronologia de histórias e sua “galeria de vilões” como são comuns aos
heróis mascarados dos quadrinhos estadunidenses, mas sempre em um movimento
cíclico de aproximação e afastamento do mito nórdico, seja em seus elementos
narrativos, seja em sua estética visual (o desenhista responsável pelo visual
do Thor de Straczynski usa como fecho do cinto do deus do trovão a runa Uruz que representa força bruta e boa
saúde). Nos quadrinhos Thor é punido por seu pai Odin por sua arrogância e
lançado a Midgard (o reino mortal) na pele do médico aleijado Donald Blake, sua
bengala, ao ser batida contra o solo se transformava em Mjolnir e o fazia
recobrar seu status divino e poderes sobrenaturais para defender o reino mortal
contra qualquer ameaça. Esse aspecto aparece e desaparece nos quadrinhos, tendo
sido resgatado por J. M. Straczynski. No filme de 2011, dirigido por Kenneth
Branagh e estrelado por Chris Hemsworth no papel de Thor, Blake é mencionado
apenas de passagem como uma referência críptica aos quadrinhos somente perceptível
aos fãs do personagem. O aspecto da arrogância de Thor, que está presente nos
primórdios do personagem nas páginas dos quadrinhos, também é explorado no
filme, por mais que se resolva rapidamente, esse aspecto em particular me
parece ser o elo de ligação mais importante entre o mito e suas adaptações tanto
para os quadrinhos quanto para o cinema.
A.
QE. Keary, em seu Tales of the Norse
Warriors Gods, narra a história da viagem de Thor a Jötunheim, a terra dos gigantes, (How Thor Went to Jötunheim), nessa viagem, em diversos momentos,
mesmo com sua imensa força, por meio de artifícios mágicos ele é obrigado a se
tornar mais humilde, apesar de realizar feitos inacreditáveis. Junto de seus
servos Thialfi e sua irmã Roska, bem como Loki, Thor atravessou um longo e
difícil caminho até o final de Manheim
cruzando o oceano, até chegar à terra cheia de névoas e rochas, de Jötunheim em uma floresta eles pararam
para descansar e encontraram um enorme salão vazio e no interior desse salão
cinco quartos onde se alojaram. Após o jantar foram dormir apenas para serem
acordados por um barulho infernal, Thor se mantém de vigília mesmo após seus
camaradas terem ido dormir e após algum tempo descobriu que a origem do barulho
era um colossal gigante que ressonava, a ponto de sua inspiração mover em sua
direção o topo dos pinheiros, tão imenso era o gigante que o salão que abrigou
confortavelmente Thor e seus companheiros não passava de sua luva caída ao
solo. Ao ver o gigante Thor resolve desafiá-lo, pois era esse o objetivo de sua
jornada provar seu valor se batendo contra os gigantes. O gigante ao despertar
reconhece Asa Thor, e o observa do alto com seus “grandes olhos enevoados, como
lagos azuis nas montanhas”, e ridiculariza seu tamanho e o desafia a atacá-lo,
nesse instante Thor não consegue fixar seus olhos no monstro, que se
apresentara como Skrymir, pois sua aparência parecia mudar constantemente.
Mesmo assim ergueu seu martelo encantado e o arremessou contra o gigante num
golpe formidável, este retrucou “Há! Há! Uma folha me tocou?”. Thor agarrou
novamente Mjölnir que sempre
retornava a suas mãos não importando para quão longe fosse arremessado
(elemento incorporado aos quadrinhos e fundamental para o personagem, tanto que
esse aspecto, fiel ao mito se manteve sempre constante e jamais foi alterado),
e o lançou novamente com ainda mais força, dessa vez o gigante caçoou “Eu
penso, que uma bolota deve ter caído na minha cabeça”. Da terceira vez Thor
arremessou seu malho com uma força inaudita, como nunca antes lançara o
poderoso Mjölnir contra qualquer
outro adversário, fazendo uso de cada iota de sua força descomunal. Dessa vez o
gigante gargalhou alto fazendo pouco do Aesir e disse “com certeza há um
pássaro naquela árvore, que deixou cair uma pena em minha face!”. Então ele se
virou, jogou sua bagagem imensa as costas, agarrou sua luva caída e sem prestar
mais atenção ao deus do trovão se dirigiu para fora da floresta, após caminhar
um pouco ele se virou, seu rosto parecia menos humano e mais a forma pedregosa
do topo de uma montanha sobre um precipício, e disse “Ving-Thor, deixe-me lhe
dar um conselho antes que eu me vá. Quando você chegar a Utgard, não se
vanglorie. Você pode me considerar um homem alto, mas os há ainda mais altos
para se ver, e você é apenas um diminuto passarinho, retorne para onde veio e
se satisfaça em ter aprendido algo sobre si mesmo em sua jornada a Jötunheim”. Ultrajado o Aesir gritou de volta “passarinho ou
não, isso eu jamais farei! Encontraremos-nos novamente e algo mais
aprenderemos, para que possamos ensinar um ou outro!”. O gigante se virou e não
retrucou, continuando seu cominho sem prestar mais atenção em Thor e seus
companheiros de viagem.
É
importante notar que o mito é em si mesmo a sua melhor interpretação, pois o
seu significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da narrativa
e possui um significado simbólico essencial, expresso numa série de figuras e
eventos simbólicos e que, como assevera Von Franz, cada Deus, corresponde, no
plano do mito, a um estilo de comportamento instintivo específico. Nesse ponto
do mito está expresso nas palavras do gigante Skrymir o significado simbólico
da jornada de Thor a terra agreste e selvagem dos gigantes, trata-se de uma jornada de autoconhecimento. Nesse
sentido, no filme de Kenneth Branagh, de uma maneira bem mais capenga, a
jornada ao reino dos homens (Manheim)
é igualmente uma jornada de autoconhecimento. Toda a jornada de Thor a Jötunheim exemplifica de maneira
psicologicamente extremamente precisa, e com grande plasticidade, o significado
essencial de autoconhecimento. Jung, ao tratar desse tema assim o definiu.
Normalmente confundimos "autoconhecimento" com o conhecimento da personalidade consciente do eu. Aquele que tem alguma consciência do eu acredita, obviamente, conhecer a si mesmo. O eu, no entanto, só conhece os seus próprios conteúdos, desconhecendo o inconsciente e seus respectivos conteúdos. O homem mede seu autoconhecimento através daquilo que o meio social sabe normalmente a seu respeito e não a partir do fato psíquico real que, na maior parte das vezes, lhe é desconhecido (...) O que comumente chamamos de "autoconhecimento" é, portanto, um conhecimento muito restrito na maior parte das vezes, dependente de fatores sociais - daquilo que acontece na psique humana. Por isso, ele muitas vezes tropeça no preconceito de que tal fato não acontece "conosco", "com a nossa família", ou em nosso meio mais ou menos imediato. Por outro lado, a pessoa se defronta com pretensões ilusórias sobre suposta presença de qualidades que apenas servem para encobrir os verdadeiros fatos. (Jung, 2011, p.x).
O
que está expresso nas figuras e eventos simbólicos do mito de Thor é justamente
esse processo, penoso e moralmente custoso, visto normalmente ter que, nolens volens, significar abrir mão de ilusões acerca de nós mesmos e
acerca dos outros, o que pode ter muitas vezes o sentido e o significado de knockout moral. Tais pretensões
ilusórias sobre a suposta presença de qualidades, que encobrem os verdadeiros
fatos, normalmente constituem o núcleo de nossa identidade, visto essa repousar
sobre vasto campo de inconsciência, e ser essa inconsciência extremamente
conservadora, treva densa e difícil de atravessar sem a ajuda dos deuses, e que
não se modifica sem passar pelas chamas dos afetos. Thor é um herói, não um ser
humano, mas uma figura divina e seria um equívoco tentar a força, tal qual
leito de Procusto, identificá-lo com a personalidade empírica. Nunca é ocioso
recordar que o mito é fundamentalmente uma manifestação da essência da alma (Seele), uma expressão dos processos
psíquicos do inconsciente coletivo. E que o inconsciente (Unbewusst) possui uma relação compensatória/complementar com a
consciência, e que nesse caso, o mito, enquanto expressão da alma, e oriundo de
uma cultura particular (em termos psicológicos nossa consciência suprapessoal),
possui para com essa cultura, tanto em seus aspectos determinados histórica e
geograficamente, quanto para aquilo que, inevitavelmente, há de humano geral,
uma relação igualmente compensatória/complementar. A consciência (Bewusstsein) é um processo momentâneo de
adaptação, que tende a unilateralidade e a petrificação, nesse sentido, sua
unilateralidade a afasta de suas bases instintivas, o que pode levar a um
colapso adaptativo. O arquétipo é a imagem do instinto, todo arquétipo possui
um contraponto correspondente instintivo (podemos também dizer que o arquétipo é
o padrão do instinto), e o símbolo,
organizado arquetipicamente operacionaliza na consciência a participação do
inconsciente, permitindo uma vez mais a essa consciência adaptar-se as condições
cambiantes da alma e do mundo. Em seu caráter simbólico é isso que faz a imagem
do herói, como Thor em nosso caso. Ao mesmo tempo o símbolo do Herói, a personalidade mana, é gestado pelas
matrizes criativas inconscientes (não raro de forma espontânea e sem a
participação da consciência, daí o frequente tema do nascimento virginal), para
promover a passagem anagógica da pura instintividade em direção a um estágio
mais espiritualizado, elevando o puro instinto e sua energia à possibilidade da
realização cultural. O inconsciente engendra o símbolo do herói e, portanto ele
significa uma mudança de atitude, o herói, por mais que suas qualidades mudem
com as eras, personifica as qualidades que as pessoas mais valorizam, ele se
manifesta como um protesto humano contra a natureza, contra a direção unívoca
do instinto. Segundo Von Franz, o herói constitui uma tentativa do inconsciente
de gestar um modelo de complexo de eu que se comporta de maneira adequada, que
permanece em harmonia com as exigências da psique, paradoxalmente, o herói é
aquele que sempre se comporta segundo os seus instintos.
Jung
assevera, em seu clássico “Símbolos da Transformação”, que o herói possui um
significado teleológico como figura simbólica que reúne em si a energia psíquica
em forma de admiração para conduzi-la a esferas mais elevadas por meio das
pontes dos símbolos. O Herói é um tipo ideal de vida masculina, ele é, ao mesmo
tempo, um drama inconsciente que só aparece na projeção. “O herói é o ator da transformação de Deus no
homem; corresponde àquilo que denominei de ‘personalidade mana’.” (Jung, 1999).
O símbolo, tomado de modo denotativo, não pode ser considerado uma verdade
concreta, mas é psicologicamente verdadeiro. Sabemos, por meio da existência de
sonhos, visões, delírios, dos mitos, lendas, contos de fadas e da arte, que a
alma cria símbolos cujo fundamento é o arquétipo, que são elementos
estruturais, numinosos (o númeno é compreendido, entre outras coisas, como a energia específica própria do arquétipo),
autônomos e possuidores de energia específica (númeno). Os símbolos funcionam como
transformadores de energia e age de maneira convincente e, ao mesmo tempo,
exprime o conteúdo da convicção, isso graças ao númeno do arquétipo, e a vivência
do arquétipo é impressionante e comovente.
(...) Nenhum elemento do mito do herói é susceptível de uma só interpretação e – cum grano salis – todas as figuras podem ser trocadas. Certo e seguro é apenas o fato de que o mito existe e possui inegáveis analogias com outros mitos. (Jung, 1999, p.377).
Continuando
a jornada pela sombria e enevoada terra de Jötunheim,
Thor e seus três companheiros deixaram a floresta e após algum tempo, em uma
árida planície se depararam com uma cidade murada imensa, certamente habitada
por gigantes, com seus portões barrados, mas eram portões tão colossais que o
Aesir e seus camaradas puderam facilmente passar pelas grades, como se não
passassem de camundongos. Eles caminharam por um longo tempo sem ver viva alma,
até que por fim avistaram um grande salão com as portas abertas e se resolveram
a entrar. No interior do soturno salão eles encontraram uma longa mesa de
banquetes e ao redor dessa mesa vários tronos de pedra, e nesses tronos se
sentavam gigantes, cada um mais soturno, frio e pedregoso do que o outro, um
deles se sentava num trono mais elevado e parecia ser o líder e a esse Thor
dirigiu seus cumprimentos. Sem nem mesmo se levantar o líder dos gigantes falou
de maneira despreocupada “Eu penso que se trata de um costume tolo importunar
viajantes cansados com perguntas sobre a sua jornada. Eu sei sem precisar
perguntar que você, homenzinho, é Asa Thor. Talvez, todavia, você talvez seja
mais alto do que aparenta; e é a regra aqui que ninguém possa sentar-se a essa
mesa até ele ter executado algum feito maravilhoso, deixe-nos ouvir no que você
e seus seguidores são famosos, e de que maneira vocês escolhem se mostrar
dignos de sentar-se na companhia de gigantes.”.
Cada
um dos camaradas de Thor foi desafiado e humilhantemente derrotado, Thialfi
numa corrida e Loki numa competição para ver quem comia mais, mas vamos nos
concentrar nos desafios de Thor, nos quais ele foi igualmente batido, todas às
vezes. Thor propôs a uma competição de bebida. O rei, que se chamava
Utgard, ordenou a seus servos que trouxessem um cálice especial chamado de
“taça da penalidade”. E desafiou o Aesir a esvaziá-lo de um único gole, segundo
o rei era comum esvaziá-la com um único gole, alguns a esvaziavam com dois,
apenas o mais insignificantes em três goles. Thor tentou esvaziá-lo de um único
gole, mas não conseguiu mover o volume em seu interior nem um milímetro! Thor
tentou novamente com todas as forças, mas o volume na taça diminui de maneira
muito discreta. Na terceira vez, com toda a sua força e vontade, com uma
energia descomunal e sem paralelo entre mortal ou Aesir, mas ao olhar a taça,
percebeu que o líquido recuara apenas um pouco da borda.
Thor não se deu por derrotado e requisitou que os gigantes
escolhessem um novo feito para que ele demonstrasse o seu valor. O rei dos
gigantes sugeriu uma brincadeira apreciada pelas crianças da cidade,
simplesmente erguer o seu gato do chão. Um grande gato cinzento adentrou o
salão e Thor tentou erguê-lo, mas mesmo com toda a sua força ele pôde, no máximo,
erguer um pouco uma das patas do animal. Asa Thor estava enfurecido, os
gigantes não perdiam a oportunidade de escarnecê-lo a cada derrota, e o Aesir
desafio qualquer um deles para uma luta corpo a corpo. Para enfrentar Thor, Utgard
convocou a velha Elli. Quando ela surgiu, era decrépita, velha e sem dentes, e
Thor sentiu por ela uma grande repugnância, mas não podia recuar. O poderoso
guerreiro lutou com toda a sua força e bravura, por um longo tempo, mas foi
tomado por uma sensação de vertigem e fraqueza e seu joelho tocou o solo,
estava derrotado. Os testes tinham terminado e Thor e seus companheiros
derrotados. Os gigantes os convidaram a sentar a mesa e Thor se comportou com
elegância como um bom perdedor. Pela manhã, o rei dos gigantes o acompanhou até
os portões (nesse momento o Aesir percebeu que ele era ninguém menos que
Skrymir) e perguntou a Thor como ele se sentia a respeito de sua jornada a Jötunheim. Humildemente Thor se
confessou desapontado e triste, pois doravante na terra dos gigantes ele seria
tido como um guerreiro sem valor. Skrymir rejeitou essa afirmação, e disse que
Thor jamais teria atravessado os portões de sua cidade se ele não soubesse de
seu grande valor, por fim ele disse.
Todo esse tempo eu estive ludibriando você com meus encantamentos. Quando você me encontrou na floresta, e arremessou Mjölnir contra a minha cabeça, eu teria sido esmagado pelo peso dos seus golpes se não tivesse habilmente colocado uma montanha entre mim e você, onde seus ataques aterrissaram surgiram três profundas ravinas, que de agora em diante se tornarão vales verdejantes. Da mesma maneira eu o ludibriei sobre as provas em que vocês se engajaram noite passada. Loki comeu como se fosse a própria fome, mas Logi é fogo, que, com sua ávida língua, lambeu a comida e a destruiu. Thialfi é o mais rápido dos corredores mortais, mas o esguio rapaz, Hugi, era o meu pensamento, que velocidade pode se igualar a isso? O mesmo se deu em seus testes. Quando tomou tais profundos goles do chifre, você mal sabia que feito maravilhoso estava realizando. O outro lado do chifre alcançava o oceano, e quando você for até a costa verá o quanto as águas se afastaram, e quanto o mar se tornou menos profundo devido aos seus goles. (...) o que você tomou por um mero gato, era de fato a serpente de Midgard que envolve o mundo, quando você ergueu sua pata, nós trememos, e as fundações da terra e dos mares ficaram abaladas. Não há motivo para ficar envergonhado por ter sido derrotado pela velha Eli, pois ela é a velhice, e não há nem nunca haverá alguém que ela não tenha o poder de derrubar. (KEARY, 2005, pp72 e 73, tradução minha).
Ao
escutar tais palavras Thor tentou desafiar o gigante para um teste força, porém
Skrymir e a cidade se desvaneceram, o Aesir então disse “que tolo eu tenho
sido, por permitir que fosse logrado por um gigante da montanha!”, uma voz
respondeu do alto “eu disse a você, você aprenderia a conhecer mais sobre si
mesmo por meio de sua jornada a Jötunheim.
Este é a grande utilidade das viagens”. Thor, ao se perceber um tolo, ao notar
que mesmo com sua força descomunal e poder inigualável, poderia ser logrado e
vencido realiza a mudança de atitude necessária, sua atitude unilateral baseada
apenas no poder, no uso da força para subjugar a tudo e a todas, é compensada
pela esperteza e poderes de encanto e ilusão do gigante Skrymir, que se tivesse
escolhido testar sua força contra Thor teria certamente um destino funesto,
atitude aqui compreendida como disposição da psique de agir ou reagir em certa
direção. A derrocada de Thor foi uma derrota e um Knockout moral que lhe permitiram conhecer mais sobre si mesmo. Não
é debalde, todavia, que Thor se bate contra gigantes em suas aventuras, como
veremos adiante.
Tanto
no filme quanto nos primórdios dos quadrinhos de Thor, sua falha de caráter, ao
invés de ser uma identificação com o princípio do poder, toma a forma de uma
neurose mais comum em nossos tempos. Apesar de um pouco arrogante, o principal
problema de Thor residia em sua imaturidade. O aspecto compensatório ainda está
presente, mas faz bem menos sentido e é bem mais capenga, talvez pelo fato de
tratar-se, nos casos expostos, de um trabalho sobre um símbolo com significado
apenas histórico e não um símbolo vivo. É importante salientar essa diferença,
pois nada sob o céu pode resistir à velha Eli e ela tem o poder de derrubar até
mesmo os símbolos, assim como derrubou Thor. Um símbolo é vivo quando
representa o indizível de maneira insuperável. Enquanto ele é vivo está repleto
de significado, mas uma vez que se encontra, por meio do trabalho cultural que
ele engendra, a expressão que melhor formula aquilo que era apenas obscuramente
pressentido, e só podia ser por ele representado, o símbolo está morto, ergo, terá meramente significado
histórico. Ao nos referirmos a ele como símbolo, partimos da pressuposição
tácita de que nos referimos ao que ele representou no passado, antes que dele
brotasse uma expressão melhor.
Vejamos
ainda, por meio de outras das histórias de Thor, que elementos de convergência
existem entre o mito e os quadrinhos. Em outra história, Loki estivera se
aventurando no reino do gigante Geirrod e foi por ele capturado e aprisionado,
pois o gigante o reconheceu mesmo na forma de gavião em virtude dos olhos
peculiares de Loki. Deixado em estado de inanição por três meses Loki foi
coagido a trazer Thor até a fortaleza do gigante, mas sem estar portando seu
martelo encantado (Mjölnir) e seu
cinturão de força. Aqui vemos um elemento que na maior parte das histórias em
quadrinhos de Thor se faz ausente, seu cinturão mágico. Loki ludibriou Thor
como fora comandando por Geirrod, mas o deus do trovão foi salvo pelo alerta de
uma boa giganta que lhe emprestou um cajado mágico, outro cinturão e luvas de
ferro, com os quais pôde enfrentar o gigante e suas filhas. A primeira filha do
gigante se postou no meio do rio Vimir e com seu corpanzil fez o rio
transbordar e quase afogou Thor, mas este a abateu com uma grande rocha e
escapou das águas ileso. Em seguida Thor penetrou no palácio e sentou-se em uma
cadeira, de súbito ele sentiu a cadeira ser erguida até o teto, ele teria sido
esmagado se não fora pelo cajado que usou para forçar a cadeira para baixo e
com isso partiu as costas das outras duas filhas de Geirrod que a estavam
empurrando para o alto. Geirrod atacou o Aesir jogando uma bola de ferro quente
contra ele, mas graças às luvas de ferro Thor pôde agarrar a bola sem se
queimar. O gigante se agachou por trás de uma pilastra, mas com sua força
descomunal o deus do trovão arremessou bola que atravessou a pilastra e abateu
o gigante[1].
Como
vemos, a fonte do poder de Thor está em seus objetos miraculosos: seu malho
mágico e cinto de força. Sobre esse tipo de objeto de poder existem inúmeros
paralelos, como os raios de Zeus forjados por Hefestos, o elmo de Ares, as sandálias
e elmo alados de Hermes, a lança de Wotan, suas runas mágicas que lhe permitem
conhecer o futuro, a pele do leão de Neméia que Héracles vestia como uma
armadura, a espada Kusanagi (草薙) de Yoshitsune (義経), o manto de penas e o leque dos Tengus (天狗), o martelo e tambor do
duque do trovão o imortal Lei Gong (雷公), os tambores adornados do símbolo tomoe de Raijin (雷神) o deus do trovão japonês,
o saco de vento de Fuujin (風神), os exemplos poderiam se estender indefinidamente. Pois
bem, como vimos o martelo Mjölnir nos cinemas e quadrinhos é um aspecto
importante do personagem, assim como o malho místico do mito, ele sempre
retorna as mãos de Thor após ser arremessado, e, além disso, nos quadrinhos,
boa parte dos poderes mágicos do deus trovejante derivam do martelo. O cinto de
força normalmente está ausente, exceção feita ao Thor do universo Ultimate.
Nesse arco de histórias, o leitor é conduzido pelo roteiro a se questionar se
Thor é realmente um deus, ou se não passa de um lunático com delírios de
grandeza, nessa série, todos os poderes de Thor derivam de seu malho e de uma
veste que faz às vezes do cinto de força e lhe concede força e vigor sobre
humanos, sem esses dois objetos ele fica desprovido de qualquer poder ou
faculdade sobrenatural.
Ao
martelo Mjölnir é acrescentada a faculdade de só poder ser erguido por Thor, ou
por alguém digno do deus do Trovão. Da mesma maneira, algumas de suas
faculdades miraculosas estão ausentes, como a capacidade demonstrada na
história de sua jornada a Jötunheim
de ressuscitar os mortos. Para os Aesir o malho encantado Mjölnir era seu maior
tesouro, pois lhes defendia dos gigantes, nos templos dedicados a Thor ele
estava sempre retratado com o martelo em punho e nos rituais de casamento ele
era utilizado para consagrar a noiva. Além disso, o martelo era erguido para
consagrar o bebê recém-nascido, há evidências que também era utilizado nos
ritos fúnebres, pois no mito da morte de Balder ele foi utilizado para
consagrar o barco funerário antes que lhe ateassem fogo. Um sinal de proteção
semelhante ao sinal da cruz cristão era chamado de “sinal do martelo”, o mesmo
que Thor utiliza para trazer de volta a vida seus dois bodes sacrificados para
que se banqueteassem com eles, num claro paralelo a eucaristia cristã. No
século X era uso corrente utilizar preso ao pescoço como amuleto o martelo de
Thor, talvez em uma possível reação aos cristãos que utilizavam uma cruz
pendurada ao pescoço. As representações norueguesas do martelo de Thor possuíam
um anel de metal preso ao final do cabo, para facilitar o arremesso
(característica preservada nos quadrinhos exatamente com a mesma finalidade,
menos no martelo do Thor do universo Ultimate).
Outra representação do martelo, e, por conseguinte de Thor, era a cruz suástica,
ou cruz gamada. Bem antes de seu uso pelo nazismo na Alemanha, ela já era
conhecida em várias partes do mundo desde a mais remota antiguidade (a
utilização da suástica nazista se deve, em parte a um retorno a símbolos e
práticas pagãs por parte dos nazistas), é provável que exista uma ligação entre
a suástica e a roda do sol, conhecida desde a idade do bronze, ou pode ter
surgido do uso do machado ou martelo para representar o trovão, que sempre se
fazia acompanhar do raio, o fogo celeste. Thor era o deus que mandava o raio e
a chuva, e é plausível que a suástica estivesse relacionada a ele. A suástica e
o martelo podem ser vistos em pedras com inscrições rúnicas na Noruega e Suécia
e algumas delas invocam Thor para proteger o lugar do funeral, a runa Thurisaz, segundo algumas fontes também
representa o malho de Thor. Ao que indicam esses e outros indícios, o poder de
Thor, simbolizado por seu martelo, se estendia por uma gama ampla de assuntos
importantes para a comunidade, ele dizia respeito ao nascimento, casamento,
juramentos e ritos fúnebres[2].
A famosa arma de Tor não era apenas símbolo do poder destrutivo da tempestade e do fogo do céu mas também uma proteção contra as forças do mal e da violência. Sem ela, Asgard não poderia mais ser protegida dos gigantes, e os homens contavam com ela também para lhes dar segurança e garantir a regra da lei. (Davidson, 2004, p.70).
Perceba-se
que esse aspecto que, mutatis mutandis, pode ser chamado de
propriamente “religioso”, está ausente dos filmes, é como se sua divindade não
estivesse relacionada ao mundo mortal ou sua adoração, mesmo que pretérita. Nos
quadrinhos a maior parte desses aspectos, importantes para formar um quadro
mais completo de Thor estão totalmente ausentes. Sua adoração como divindade
pelos mortais foi parcamente explorada nos quadrinhos. No malfadado universo
2099, os deuses nórdicos, bem como os heróis, sumiram, e surgiu um culto a
Thor, e alguns personagens até mesmo usavam o pingente em forma de martelo para
se distinguirem como devotos do deus. Na cronologia normal, quando os deuses
passaram a habitar a terra e Thor adquiriu os poderes de Odin, alguns mortais
passaram a venerar os deuses nórdicos, todavia, o melhor exemplo de exploração desse
aspecto, mesmo que de maneira superficial se dá com o roteiro de The Ultimates,
de autoria de Mark Millar, em que Thor passa a congregar ao seu redor um grupo
de seguidores new age, que em muito recordava o atual
neopaganismo, principalmente em sua versão estadunidense criada por Gerald B. Gardner,
a Wicca, com sua crítica difusa ao
modo de vida capitalista e tendências ecológicas. Nesse arco de histórias Thor
figura entre seus seguidores mais como um “guru
new age” do que como um Aesir, um deus do trovão e da tempestade, ligado a
fertilidade e a proteção, com uma ritualística e iconografia bem estabelecida.
Thor
não é apenas um deus de grandes acessos de fúria e de força descomunal,
protetor de Asgard contra a ameaça dos gigantes, ele é igualmente filho da própria
terra, e existe uma ligação entre o Aesir e a fertilidade e abundância da
terra, pois ele comanda o raio e o trovão, a chuva, governa o ar, os ventos, e
as estações do ano (esses poderes se preservam nos quadrinhos em sua maior
parte, mas com exceção dos raios estão ausentes nos filmes), de acordo com Jung,
com o significado da tempestade como fecundação da terra o relâmpago tem
significado fálico. Segundo Ellis Davidson, os primeiros colonizadores
islandeses que levaram consigo da Noruega as colunas de cadeiras do templo de
Thor, mas igualmente a terra que existia entre essas colunas e consagravam a
terra em que iriam construir suas casas e iniciar suas plantações a Thor, a
quinta feira (Thursday, puresdaege, Donnerstag), o dia de Thor era guardado como um dia santo. Percebe-se
com clareza, pelo mito, pelos poderes a ele relacionados, e pelos rituais e áreas
da vida cotidiana a ele dedicadas que Thor, assim como as forças da natureza,
que em certa medida personifica, era, ao mesmo tempo, destruidor e protetor. Assim
como a chuva pode ser benéfica as plantações, uma tempestade pode causar inundações
e catástrofe, o vento traz refrigério, mas um furacão é uma calamidade. Na era
Viking, em virtude de seu poder de comandar os elementos e as tempestades (tão
temidas pelos marinheiros) ele era o guia definitivo para aqueles que se
aventuravam a singrar os mares, e era o deus invocado para proteger aqueles que
faziam viagens marítimas. Sendo os Vikings grandes navegadores, pode-se deduzir
a importância prática de Thor entre seus devotos. Assim como no estado do Ceará,
terra seca e árida a maior parte do ano, o padroeiro das chuvas, são José, e
venerado com grande ardor e devoção. Esses aspectos estão ausentes da moderna
encarnação do deus do trovão, nos filmes isso surge de maneira ainda mais
limitada do que nos quadrinhos, onde ele não passa de um bruto, um guerreiro
muito forte com uma arma impressionante, e seu aspecto de protetor fica
bastante diluído. Nos quadrinhos há uma ênfase constante em seu papel como
campeão de Midgard, e protetor de Asgard, que parece um pouco mais condizente
com seu papel originário, apesar de que a maior parte de sua simbólica original
estar completamente ausente. Outro aspecto que nunca teve lugar nos quadrinhos
diz respeito ao terrível clarão dos olhos incandescentes de Thor, mencionado
com frequência na poesia, bem como sua voz potente e tonitruante, ou a ligação
de Thor com os grandes carvalhos e seus bosques sagrados.
Thor,
um Aesir irascível e tremendamente poderoso, propenso a grandes acessos de
cólera, é sempre representado se batendo contra gigantes, algo que se preserva
em suas histórias “solo” dos quadrinhos, mas com ênfase em apenas um tipo de
gigante, os gigantes do gelo. Nas lendas ele de fato se batia contra vários
gigantes do gelo como Hrungnir, Thryn, Hymir, Geirrod e seus descendentes, no Prose Edda, Snorri descreve Thor como o Asa que derrotou todos os
gigantes e berserks. Todavia o
principal adversário de Thor é a serpente que circunda a terra, Jömungandr, que foi explorada uma vez
nos quadrinhos, quando seus ossos ficaram fracos como os de um velho e ele
precisou se encerrar numa armadura, além de ter sido privado da possibilidade
de morrer Thor encarou a serpente que se disfarçava do Dragão Fing Fang Foo, e
ela não o reconheceu, pois Thor estava de barba e armadura, mas ao final ele a
matou mesmo antes do Ragnarok. Nessa
história é feita uma menção direta ao poema Voluspá
que afirma que ambos morrerão em um embate no fim dos dias durante o Ragnarok. Ao que parece em versões mais
antigas dessa história, Thor derrota a serpente, como acontece nos quadrinhos,
um de seus títulos era “orms einbani”, “o único destruidor da
serpente”. É bem conhecida à história em que Thor “pesca” a serpente, e ela era
frequentemente retratada em seus templos.
Thor
foi visitar o gigante Hymir, disfarçado como um garoto, e pediu para acompanhar
o gigante em uma pescaria. O gigante mandou Thor pegar a isca e ele se apoderou
do maior machado de Hymir e separou a cabeça do cabo para usar como anzol. Thor
remou o barco com tanta velocidade que Hymir ficou estupefato e ambos chegaram
num piscar de olhos ao local da pescaria, mas Thor continuou remando, a
despeito dos alertas de Hymir, pois este temia perturbar a serpente de Midgard,
quando Thor lançou as águas à cabeça do machado foi justamente Jömungandr quem mordeu a isca. Thor usou
sua força descomunal para trazer a tona à cabeça da serpente, a tal ponto que
seus calcanhares perfuraram o casco do barco e se fixaram no leito do oceano. Quando
surgiu a cabeçorra do monstro Ving-Thor ergueu seu malho encantado para esmagar
a cabeça da serpente o gigante Hymir foi mais rápido e cortou a linha,
permitindo a serpente submergir novamente. Furioso Thor jogou o gigante para
fora do barco e retornou sozinho de volta a praia[3].
Nesse
conto, como no de sua ida a Utgard, aparecem tanto os gigantes quanto a famigerada
serpente, filha de Loki. Como se pode perceber, Thor é um deus de grandes acessos
de fúria e um tanto quanto impetuoso (como convém a um deus das tormentas), e
bastante impulsivo (intempestivo), mas qual o significado psicológico dessas
imagens? As palavras de Von Franz ajudam a esclarecer um pouco mais o que está
representado em Thor de nosso drama anímico imorredouro, para que ao olharmos para
o deus do trovão, possamos ver, como que em espelho, tudo aquilo que medra em
nossos próprios corações.
Em nossa linguagem psicológica, os deuses da mitologia são arquétipos, e os arquétipos têm simultaneamente um aspecto psíquico, que tende a se traduzir em imagens, e um aspecto instintivo. (...) podemos ligar cada deus a um campo biológico instintivo, sendo o primeiro o aspecto psíquico do segundo. Inversamente podemos afirmar que a todo dinamismo instintual corresponde uma imagem, ou um conjunto de imagens e um comportamento específico. (...) Os deuses são, pois, representações de complexos gerais, e Ares-Marte é a imagem na cultura clássica, do instinto de agressividade e de autodefesa, tal como existem na natureza. (Von Franz, 2010, p.102).
Todo
arquétipo é bipolar, e comporta ao menos duas interpretações opostas, mas
complementares, Thor é tanto guardião e nutridor, deus celeste que controla as
chuvas e estações e fecunda a terra, quanto furioso e feroz, que se encarrega
de atacar e destruir berserks e gigantes, nesse sentido, menos espiritualizado
e mais instintivo, ele, assim como Ares-Marte, é a imagem da cultura Viking do
instinto de agressividade e autodefesa, bem como, representa de maneira plástica
as possibilidades anagógicas desses instintos. Ao adorar Thor, e conhecer as
suas histórias, os antigos Vikings traziam para sua consciência de maneira
organizada na forma de imagem esse funcionamento instintivo (agressão/proteção),
e Thor, assim como defendia Asgard dos gigantes, protegia psicologicamente seus
adoradores dos afetos descontrolados. Nos
atuais filmes da Marvel esse papel parece ter sido ocupado pelo Hulk, baseado
no mister Hyde, de Louis Stevenson. Ainda segundo Von Franz, os símbolos arquetípicos
possuem uma enorme carga de energia, e liberam emoções avassaladoras, e o que
podemos perceber dos arquétipos, que são fundamentalmente fatores
desconhecidos, são a imagem e a emoção a eles associadas. Von Franz afiança, e
isso é extremamente útil para se compreender do que falo aqui que “o arquétipo é
um modo comum de experimentar as coisas de maneira psicológica”(2010/2). Arquétipos
são categorias da fantasia, como podemos notar aqui com clareza.
Um
afeto violento e intempestivo nos traz um sentimento de poder, o que faz com
que muitas pessoas não consigam renunciar ou controlar seus acessos de cólera,
e não suportariam se desfazerem deles, nesses momentos elas estão como que
possuídas por um deus, capazes de atos que ordinariamente não poderiam. Não à
toa, entre os guerreiros o Aesir a ser adorado era Wotan/Odin, deus aparentado
com Dionísio, capaz de causar imensos afetos arrebatadores, êxtase e eram a
eles que eram dedicados os temidos Berserks, os acessos formidáveis de cólera
dos seguidores de Wotan os tornavam guerreiros formidáveis, incansáveis e
completamente destemidos. Ao mesmo tempo sem o instinto de autodefesa, de
autopreservação e alguma agressividade, a vida entra em estase e não pode mais
fluir, estando barrada diante de qualquer obstáculo e muitas vezes, trata-se de
uma questão de vida e morte. Em termos do simbolismo objetivo, daquilo que Jung
denominou de interpretação “a nível do objeto”, podemos perceber que nos mitos
e contos de fadas os gigantes normalmente representam esses afetos
descontrolados. No primeiro mito de Thor que apresentei aqui, todavia, os
gigantes das montanhas, ou gigantes de pedra, especialmente Skrymir, desempenham
outra função, pois têm uma atitude compensatória em relação à impetuosidade de Thor,
compensando sua atitude unilateral identificada unicamente com o princípio do
poder, mesmo Hymir, na pescaria de Thor, possui uma atitude mais ponderada do que
o deus trovejante, evitando o confronto desnecessário com Jömungandr, o que contrasta com a estupidez dos gigantes em outras
histórias, o que mostra, ex posistis, que os arquétipos são
bipolares.
Um
comportamento mais descuidado, impensado e estúpido por parte de um gigante
pode-se ver na história do gigante Hrungnir.
O tal gigante possuía um aspecto bastante estranho, sua cabeça, bem como seu
coração, eram feitos de pedra e lutava usando um enorme escudo de pedra e uma
pedra de amolar. Além disso ele possuía um cavalo de crinas douradas muito rápido
chamado Gullfaxi, a história
principia com Odin (Wotan) vagando com seu magnífico corcel de 8 patas Sleipner e se aventurando pelas terras
onde se localizava a fortaleza de Hrungnir,
cheio de arrogância o senhor dos Aesir desafiou o gigante para uma corrida de
cavalos e apostou a própria cabeça, tendo como certa a invencibilidade de seu
corcel, o gigante imediatamente aceitou o desafio e iniciaram a corrida. Odin,
em certo momento, pressentiu que o cavalo do gigante poderia realmente vencer Sleipner e valeu-se de um ardil para
evitar a derrota, virou seu garanhão e se dirigiu a fortaleza dos deuses
Asgard. Quando Odin atravessou os portões, o gigante por prudência desistiu da
disputa e parou com sua montaria diante das muralhas da cidade, derrotado. Enfurecido
com o estratagema de Odin, e deixando de lado toda a prudência, Hrungnir atravessou a ponte Bifrost e penetrou no reduto dos Asa
gritando impropérios contra Odin e se queixando de sua trapaça.
Percebendo
a injustiça de seu logro, Odin convidou o gigante para jantar com os deuses,
durante esse jantar Hrungnir começou
a soltar a língua em virtude dos efeitos do hidromel, e a jactar-se de que
comandaria os gigantes no Ragnarok e
arrasaria tudo aquilo, não satisfeito gabou-se olhando para Sif e Freya de que
elas seriam os mais belos troféus conquistados pelos gigantes quando finalmente
esmagassem os deuses. Thor que estava fora de Asgard chegou bem a tempo de
presenciar essa cena e ergueu seu martelo encantado para exterminar o falastrão
quando Odin o reteve, pois não poderiam quebrar a lei sagrada da hospitalidade
e ferir ou injuriar um convidado. Odin então, esclarecendo ao gigante que sua
conduta era inapropriada pediu que ele se retirasse e exigiu que ele
respondesse por suas injúrias em um duelo contra Thor, o beberrão prontamente
aceitou.
Quando
o efeito do hidromel se dissipou Hrunginir
se deu conta de sua insensatez em aceitar duelar com Thor, por isso levou
consigo para o campo de batalha um gigante de barro, um autômato gigantesco
para se bater com o segundo de Thor, seu servo Thialfi. Quando começou a luta
Thialfi ludibriou Hrunginir sugerindo
que Thor poderia atacá-lo por baixo da terra, assim ludibriado ele ficou em pé
sobre seu imenso escudo de pedra abrindo mão de sua proteção. O gigante
arremessou sua formidável pedra de amolar em Thor, e este ao mesmo tempo lançou
seu malho encantado e as duas armas se chocaram em pleno ar. A pedra se partiu
em mil pedaços, e Mjölnir prosseguiu
em seu trajeto até se chocar contra a cabeça do gigante que morreu
instantaneamente, ao mesmo tempo Thialfi com sua grande agilidade dava cabo do
autômato de barro. Acontece que Thor foi atingido na cabeça por um dos
estilhaços da pedra de amolar que se cravou em seu crânio e caiu desmaiado. Nenhum
dos Aesir conseguiu remover o estilhaço e uma bruxa foi chamada para realizar o
feito, mas em todas as versões da história ela falha e Thor permanece com o
pedaço de rocha firmemente fixado em sua cabeça.
Como
vemos, ao encarar o gigante com cabeça de pedra, Thor fica ele mesmo, com um
fragmento de pedra em sua cabeça, de uma maneira violenta e indesejada, ele
assimila algo do gigante que derrotou, o confronto não é isento de consequências.
Afinal Thor é, ele mesmo, presa de muitas das paixões que assolam os gigantes
que ele combate.
Nos
quadrinhos mais elementos do mito são incorporados, em um movimento de aproximação
e afastamento que depende muito do viés escolhido pelo roteirista encarregado
de Thor. Alguns roteiristas até mesmo já esboçaram a tentativa de transformar
Asgard e os deuses nórdicos em “aliens”
cuja ciência é tão sofisticada que parece ser magia (há uma pitada disso nos
filmes), mas influência dos roteiros de Mark Millar sobre os filmes parece ser
decisiva, mesmo assim elementos cruciais algumas vezes são abandonados de
maneira leviana. Como exemplo disso no primeiro filme de Thor, vemos a perda do
olho de Odin ser retratada como mera cicatriz de batalha, ao invés de ser um
elemento importante de seu mito. Nos filmes o aspecto de Thor que recebe mais ênfase
é a sua imensa força e resistência (como atesta sua luta contra o homem de
ferro) e seu poder sobre os raios, quase todo o restante dos aspectos
relacionados ao mito são abandonados, mesmo Sif, que no mito é sua esposa e nos
quadrinhos tem com ele uma relação, digamos, complicada, no primeiro filme não
passa de uma guerreira coadjuvante. É certo que estamos diante de algo que não
se trata meramente de quadrinhos ou filmes, mas como escreveu um dos editores do
Batman, estamos diante do folclore da sociedade pós-industrial.
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