sexta-feira, 12 de abril de 2013

THE REWARD



No último dia de meu curso de fundamentos de Psicologia Junguiana, novamente utilizei uma animação como recurso didático. Nunca é ocioso salientar que, da mesma maneira como Von Franz afirmava em relação aos contos de fadas, que o conto de fadas é, em si mesmo, sua melhor explicação, pois o seu significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da narrativa; o mesmo pode ser dito do desenho animado a ser aqui analisado com uma finalidade didática. A hipótese de Von Franz sobre os contos de fadas me parece igualmente válida, mutatis mutandis, no que concerne a outros produtos simbólicos. Sendo assim, parafraseando a maior discípula de Jung – e uma mestra em seus próprios méritos – o desenho The Reward possui um significado simbólico essencial, expresso numa série de figuras e eventos simbólicos. Uma das outras hipóteses de Von Franz acerca dos contos de fadas dificilmente poderia ser tão facilmente generalizada para os desenhos animados e histórias em quadrinhos de que tanto gosto, todavia, no que concerne a esse desenho especificamente, creio que essa hipótese oriunda de um extensivo levantamento empírico se aplica. Segundo ela os contos de fadas tentam descrever apenas um fato psíquico, mas se trata de algo tão complexo e multifacetado que mesmo milhares de contos não são capazes de exaurir completamente seu significado, ou mesmo permitir que esse fato penetre na consciência. Trata-se daquilo que Jung denominava em alemão de Selbst, ou em inglês Self, geralmente traduzido em português como Si-mesmo. Trata-se de um fenômeno paradoxal que é a totalidade psíquica de um indivíduo e o centro regulador do inconsciente coletivo. Os diferentes contos de fadas fornecem diferentes imagens de diferentes fases dessa experiência. O desenho que vou analisar, The Reward, assim como os contos de fadas, descreve simbolicamente um dos aspectos dessa experiência, nesse caso temos o tema do tesouro inacessível ou inalcançável.
Certamente não é desperdício de tempo, antes de começar a analisar o fenômeno, o desenho animado, dizer uma ou duas palavras de advertência sobre o método de interpretação de Jung, que consiste de 3 passos. O primeiro passo é a princípio estabelecer os paralelos, isso por uma razão simples, supomos que esse fenômeno seja uma expressão que revela algo do pano de fundo psíquico inexpresso, isto é, do dado irracional existencial inalienável que Jung chamou de inconsciente (das Unbewusste, em alemão), tratando-se de um conceito limite psicológico que abrange todos os processos psíquicos que não estão relacionados ao complexo do eu de modo perceptível. Os paralelos são amplificações, ou seja, uma variante da mesma concepção. O desenho em questão, cum grano salis, assim como o mito, é antes de mais nada, uma manifestação da essência da alma, uma expressão dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Ele representa um arquétipo de maneira extremamente plástica e fascinante, daí a necessidade da amplificação, pois arquétipos são fatores psíquicos desconhecidos e não há possibilidade de traduzi-los em termos meramente intelectuais, só nos restando circunscrevê-los a partir de estudos comparativos.
O segundo passo no método de interpretação é compreender o contexto próprio do fenômeno estudado (seja um mito, sonho, conto de fadas ou desenho animado), segundo Von Franz, é preciso tentar expressar o verdadeiro caráter específico da situação psíquica que as figuras e eventos simbólicos contêm. Esse é um passo crucial, de maneira um tanto jocosa, mas nem por isso menos verdadeira, poderia afirmar que o desenho animado é a sua própria interpretação! Sendo a psicologia complexa uma ciência prática, e que faz uso do método das ciências naturais, o método empírico descritivo (com a diferença de que efetua a reconstrução/explicação em um meio de natureza igual), a atenção ao fenômeno é nada menos que essencial. Por fim, o terceiro passo é a tradução em termos propriamente psicológicos.
Finda essa digressão metodológica, nos voltemos ao desenho, sua descrição e as possíveis amplificações. O desenho não possui falas, ou diálogos de qualquer tipo, e as imagens e a trilha sonora são responsáveis por guiar o espectador através de toda a história, ressaltando alguns eventos fundamentais e fazendo apenas rápidas alusões a alguns outros, mas mesmo esses são importantes para o desenrolar da trama. Trata-se da história de uma jornada, uma longa jornada que para ser levada a cabo leva praticamente uma vida inteira, como é sugerido pelas mudanças que ocorrem gradativamente na aparência dos personagens: a calvice de um deles e a longa barba do outro. Isso por si só já é extremamente significativo como veremos. O que vemos de início são os dois levando uma vida pacata e aparentemente monótona em uma vila pequena e de aspecto provinciano. Um deles (o mago) é mostrado de início interessado em garotas, com uma atitude desinibida, mas sem muito sucesso em suas primeiras investidas. Sendo o mais expansivo, as imagens também sugerem sua personalidade, suas roupas são mais despojadas e de cores mais vibrantes, seu cabelo é longo, desgrenhado e ruivo. O segundo personagem (o guerreiro) é mostrado de início distraído lendo o que parece ser um livro de aventuras do tipo “capa e espada” e desdenhando a expansividade e desinibição do primeiro. Seu aspecto é bem mais sisudo, suas roupas tem tons mais sombrios, seu cabelo é curto e cinzento e seus gestos mais contidos quase tímidos. Ao perceber o interesse despreocupado por garotas do outro e seus modos expansivos, ele faz uma cara de desprezo.
A vidinha pacata e sem eventos notáveis muda com um acontecimento importante para toda a história. Surge um cavaleiro, um herói aventureiro, capaz até mesmo de tirar o (futuro) guerreiro de sua introspecção, um típico “herói solar”. Salta aos olhos, na narrativa visual do desenho, que esse aventureiro possui uma distinção, quando seu rosto aparece pela primeira vez ele parece mais real e rebuscado que o traço simples e minimalista de quase todo o restante da animação. Ele agarra e leva embora a garota que rejeitara as investidas do (futuro) mago e deixa cair um mapa. Esse momento revela a existência de um destino, um carisma, os dois agarram esse ominia na forma do mapa e se engalfinham até que o mapa se rasga, ficando cada um com uma metade do todo. Fica claro desde o início, e vai se tornando ainda mais claro o caráter compensatório que existe entre os dois personagens, suas atitudes são opostas e, assim como os dois pedaços do mesmo mapa, complementares. O que reforça o caráter que cada um tem de sombra para o outro, a sombra é aquilo que não se quer considerar sobre si mesmo, a sua parte que você nem mesmo sabe que existe. Cada um deles é a representação de um comportamento, ou atitude típica, apresentada de maneira caricatural e esquemática, e o progressivo processo de equilibração e compensação que ocorre entre ambos.
Os dois seguem juntos o mapa de seus destinos e deixam seu torrão natal e partem em direção ao desconhecido. Temos aqui um tema típico (arquétipo), para Campbell a história básica da jornada do herói “(...) implica abrir mão do lugar onde você vive, entrar na esfera da aventura, chegar a um certo tipo de percepção simbolicamente apresentada e depois retornar à esfera da vida normal” (2008). Temos o chamado a aventura na forma do mapa que aponta para a localização de um possível tesouro, que é prontamente atendido por nossos heróis, e a travessia do limiar, o abandono da esfera familiar da comunidade, e o ingresso na esfera da aventura, o herói, ou os heróis, devem ser submetidos a uma série de provações cada vez mais ameaçadoras, que segundo Campbell simbolizam a auto-realização, isto é, o processo de iniciação nos mistérios da vida, e nosso desenho expressa isso de maneira muito divertida e singela com rara clareza.
Logo no início do caminho eles “acham” as ferramentas para a sua jornada, um escudo, uma espada e um cetro mágico, o mago repara nesses objetos largados sobre as raízes de uma árvore frondosa e os pega assim eles prosseguem a jornada em busca do X. Um dos aspectos mais interessantes dessa busca pelo tesouro é que eles desconhecem o que ele seja, ele é como no x das equações matemáticas, uma variável desconhecida, o que reforça o seu caráter simbólico. Logo de início vemos que o mago é uma personalidade epimetéica enquanto o guerreiro é uma personalidade prometéica. A todo instante o mago desvia sua atenção inapelavelmente para coisas atraentes do caminho, uma caverna interessante onde ele acaba envenenado, garotas bonitas, fogo, ou o que quer que lhe pareça uma novidade brilhante, seu interesse está sendo constante e inapelavelmente atraído pelos objetos externos, de uma maneira evidente. O guerreiro, atento sempre ao objetivo da jornada o arrasta para longe de seus interesses mais imediatos e literalmente o arrasta em direção ao destino que ambos compartilham. Em um dado momento, o guerreiro, mais tímido e circunspecto, se interessa pela primeira vez por uma mulher, uma mulher fantasmagórica do tipo empusa, uma “mãe d’água” e é ludibriado por sua aparência, e teria perecido se o mago não tivesse estourado a cabeça dela com um raio. É significativo que o primeiro interesse do guerreiro por um objeto externo seja uma mulher fantasma e que esse interesse teria tido um resultado funesto não fosse a interferência do mago. Esse fato muda a relação dos dois, quando chegam a uma grande e movimentada cidade o guerreiro imita o gesto do mago de “high five" e em um clima mais harmonioso eles adentram a cidade.
Na cidade o mago é inapelavelmente atraído pelas luzes e cores e corre até uma boate, onde logo está cercado de pessoas e bebendo e se gabando de sua metade do mapa. Uma mercenária vê o mapa e se dirige a ele, em seguida temos um corte abrupto e vemos a mercenária e seus comparsas com o mapa e tentando conseguir a outra metade do mapa que está em poder do guerreiro. Após uma peleja feroz, o guerreiro derrota o trio de bandidos, mas se machuca e perde 2 dedos da mão esquerda. Preocupado com seu amigo ele corre até a boate, mas o encontra lá bêbado e despreocupado, arrasado ele lança ao chão as duas metades do mapa e deixa o lugar, ferido e sangrando até desmaiar em virtude de seus ferimentos. Quando ele acorda, se vê ao lado do mago, com seus ferimentos tratados e ambos caem no choro e o mapa volta a ser um só. Em harmonia, os dois partem em sua jornada, se ajudando mutuamente, e o ritmo da narrativa se torna mais frenético, mostrando vários feitos heroicos de ambos e o efeito da passagem do tempo sobre suas aparências e poderes, vemos que ambos caminham para se tornarem heróis lendários. Por fim, após toda uma vida repleta de aventuras e realizações, ambos finalmente chegam ao seu objetivo, o X, o desconhecido, e nada encontram lá, o guerreiro se desespera, mas o mago lhe mostra algo, um espelho e eles se veem refletidos e se dão conta de sua maior realização, eles mesmos, a consecução de uma vida repleta de sentindo, e do estabelecimento de uma amizade que equilibrou suas personalidades e os fez passar ilesos pelas simplégades de suas atitudes opostas, mas complementares. Por fim, eles retornam ao começo, e deixam cair o mapa e o ciclo recomeça.
Os dois heróis, o mago e o guerreiro de nossa história, podem ser psicologicamente compreendidos como representações de duas atitudes humanas típicas, uma em que o interesse está voltado para os objetos (o mago), e outra em que o interesse se volta para o sujeito. Simultaneamente, ambos são representações de imagens típicas da fantasia, o mago e o guerreiro. Ao discutir o desenho animado do Patolino, fiz algumas considerações sobre o mago que repito aqui.
(...) o mago (que remete a Wotan, ou mais hodiernamente, Gandalf e Dumbledore), o mago carrega um cetro, um objeto fálico que ressalta seu poder e potência bem como a sua autoridade, não é ocioso recordar de que uma das insígnias do poder real era o cetro, no antigo testamento o cajado de Moisés transforma-se em uma serpente que devora as serpentes (também cajados metamorfoseados) dos magos do faraó, Dumbledore não possui um cajado, mas um equivalente, uma varinha e não qualquer varinha, mas a mais poderosa de todas, uma relíquia da morte. Gandalf, bem como os demais Istari possuem cajados e, quando ele se torna o Branco ele priva Saruman de seus poderes ao quebrar o seu cajado. (Heráclito, 2013).
O guerreiro está presente em diversas histórias, lendas e mitos, Beowolf, Arthur, Lancelot, Orlando, D’artagnan, Thor, Aragorn, Cyrano, Rolando, Carlos Magno, Galahad, Percival, e inumeráveis outros. Heróis que utilizam do destemor e da habilidade com a espada para enfrentar os desafios de suas jornadas, não raro há um mago que os auxilia como Merlin no caso dos cavaleiros da távola redonda, Wotan no caso de Sigurd ou o Tengu Sojobo no caso de Yoshitsune.
Como podemos ver com clareza pelo comportamento dos personagens no desenho, um age como extrovertido e outro como introvertido. É sempre importante ressaltar – ainda mais em um escrito com finalidade didática – que para Jung seus conceitos são experimentais e não pura invenção teórica. Isso pelo fato de que uma ciência experimental torna-se inviável quando delimita seu campo segundo conceitos teóricos. Os conceitos têm como único objetivo “nomear um grupo de fenômenos análogos e afins” (Jung, 2003). Para Jung, atitude é uma disposição da psique de agir ou reagir em certa direção, e sem atitude é impossível a apercepção ativa, pois atitude significa expectativa e esta sempre age selecionando e direcionando. Vemos com clareza no mago uma atitude extrovertida, isto é, uma relação manifesta do sujeito para com o objeto, um movimento positivo de interesse subjetivo pelo objeto. A atitude positiva com relação ao objeto na extroversão é sempre evidente e indubitável, nesse estado existe uma forte determinação do sujeito pelo objeto. Quando este estado se torna habitual, temos o que Jung chamou de tipo extrovertido.
O guerreiro, mais sisudo e circunspecto, que pouco interesse demonstra pelo objeto, ao menos de início (vemos uma equilibração da atitude de ambos com o decorrer de sua prolongada convivência), mostra com clareza uma atitude introvertida, ou seja, uma relação negativa para com ao objeto. O interesse não se dirige ao objeto, mas sim para o sujeito, o objeto recebe valor apenas secundário. Quando a atitude introvertida se torna habitual temos um tipo introvertido.
O interessante da relação entre eles, de início conflituosa, como não poderia deixar de ser, é que esse é um conflito humano típico, tanto entre pessoas de atitudes diferentes, quanto no movimento subjetivo de um mesmo ser humano. Em termos das relações humanas, tudo aquilo que é valor para um extrovertido é desvalor para um introvertido e vice-versa, o que é fruto de inumeráveis conflitos, desentendimentos e engodos. Como vemos no início do desenho, o interesse desinibido do mago por garotas é visto com desdém pelo guerreiro, que está mais interessado na leitura de seu livro. O primeiro a se interessar pela majestosa figura do “herói solar” e consequentemente pelo mapa é o guerreiro introvertido. O introvertido está mais ligado ao poder, traço característico da psicologia de Alfred Adler, o introvertido tenta impor sua imagem subjetiva de como as coisas devem ser. Quem está mais ligado ao princípio do Eros volta-se para fora, como vemos no caso do mago, sempre em busca de companhia, pois estar apaixonado significa perder-se no objeto. Esse conflito humano, entre essas duas atitudes, acontece em virtude do mútuo rebaixamento de valores entre introvertidos e extrovertidos, pois a posição de um idiotiza o outro.
Em termos subjetivos, é fundamental lembrar que estamos sempre lidando com o fato psicológico real, o inconsciente, que se comporta de maneira compensatória e complementar a consciência. Jung se utilizou do termo de Goethe sístole/diástole para também denominar o par introversão/extroversão, o que mostra o caráter cíclico dessas atitudes. A extroversão é um voltar-se para fora da libido, enquanto a introversão é um voltar-se para dentro da libido. Em termos de atitude, uma constelação específica de conteúdos na consciência (isto é uma atitude) suscita a percepção e apercepção de tudo o que for homogêneo e inibe tudo o que for heterogêneo. Essa atitude consciente unilateral é compensada pela função autorreguladora existente no psiquismo, existindo assim uma duplicidade de atitudes, uma consciente e outra inconsciente. Uma atitude habitual extrovertida, que corresponde a um tipo, é compensada por uma atitude correspondente inconsciente introvertida. Nesse sentido, a dupla do desenho o mago e o guerreiro, além de representarem uma metáfora para uma situação típica do drama humano no que concerne a lidar e aceitar o outro, igualmente pode ser compreendida como metáfora para a duplicidade de atitudes existente em um único indivíduo. Essa duplicidade de atitudes só tem efeitos nefandos quando a unilateralidade da atitude consciente é excessiva, que é o que vemos na parte inicial do desenho, em que o aspecto unilateral e caricatural das respectivas atitudes e o mútuo rebaixamento de valores aparece com clareza nas ações dos dois heróis da história.
Ocorre durante todo o sucinto drama que se desenrola no desenho, um contínuo processo de equilibração e de uma cada vez maior ajuda mútua entre ambos. Ao invés de um enxergar e apontar de maneira maldosa a fraqueza do outro, ocorre que o aspecto complementar das atitudes leva a uma ação harmoniosa de ajuda mútua e fraterna onde um está lá quando o outro falha ou tropeça. O tema mítico do “tesouro inacessível ou dificilmente alcançável” também pode ser traduzido psicologicamente como uma metáfora para o processo que Jung denominou de individuação, no sentido do processo que gera um “individuum” psicológico, ou seja, um todo. Como já aludi anteriormente, Von Franz afiança que todos os contos de fadas fundamentalmente tentam descrever o inefável e paradoxal Selbst, a totalidade do psiquismo e centro regulador da alma. A possibilidade de uma expressão consciente e cultural de uma das possíveis facetas da multifacetada totalidade, bem como um eu que colabora ativamente com o processo de equilibração psíquica é uma das metas humanas mais arriscadas, difíceis, penosas e, mesmo assim, não há nenhum outro objetivo ou meta mais digno ou nobre. Jung gostava de citar Goethe sobre esse tema. “que a maior dita dos filhos da terra/ seja somente a personalidade”. Ainda sobre as duas atitudes fundamentais, há uma extroversão ativa quando ela é intencional, e outra passiva quando o objeto atrai o interesse do sujeito, mesmo contra a sua vontade. Vemos algo dessa extroversão passiva quando o guerreiro se interessa pela fascinante mulher do lago, uma vampira cheia de tentáculos, sua primeira incursão na atitude oposta foi tacanha e canhestra, sem as qualidades conscientes de discriminação e seleção, agindo de maneira compulsória e primitiva, e só não teve um fim trágico em virtude da possibilidade equilibrativa e compensatória que existia em seu parceiro o mago. Do mesmo modo, há uma introversão ativa, quando o sujeito conscientemente se isola do objeto, e uma introversão passiva quando o indivíduo é incapaz de reintegrar no objeto a libido que refluiu dele.
E qual é a recompensa? O título do desenho, o que se esconde no misterioso X? existem aqui duas simbólicas das mais interessantes, uma delas é a do espelho, que é justamente o que permite a realização do significado exato do tesouro dificilmente alcançável, e a outra é o próprio prêmio, fruto de toda uma vida de aventuras e façanhas, lutas e perigos, que é a personalidade. A personalidade se contrapõe ao ideal do homem coletivizado, ou normal, promovido pela massificação. O desenvolvimento da personalidade se dá pelo processo de assimilação do inconsciente, processo eivado de perigos, como o erro de incluir a psique coletiva no rol das funções psíquicas pessoais, o que acarreta o que Jung chamou de “dissolução da personalidade em seus pares antagônicos”, como a mania de grandeza e o sentimento de inferioridade, bem como a assimilação pessoal do par de opostos Bem e Mal, pois alguns se apropriam da virtude coletiva como algo de sumamente pessoal e outros assumem para si como culpa pessoal o vício coletivo. Esses pares de oposto são conteúdos da psique coletiva e, em seu estado inconsciente, não apresentam contradição, só surge à contradição quando se inicia o desenvolvimento pessoal, quando se descobre a natureza irreconciliável dos opostos. O perigo de se confrontar o inconsciente, a ousadia do desenvolvimento da personalidade, também encerra o perigo de que a psique coletiva e a pessoal se confundam. Creio que todos aqueles que estudam psicologia complexa já se depararam com aquelas personalidade mórbidas e infladas cujo contato com o inconsciente levou a essa confusão nefasta e, a despeito de se acharem novos profetas ou novos autores revolucionários, não passam de medíocres cuja alma foi aniquilada pelo contato, mesmo que mínimo, com a psique coletiva. É um espetáculo verdadeiramente lamentável ver os efeitos da identidade com o inconsciente, o que leva invariavelmente ao sentimentalismo e ao mau gosto, e aos maiores equívocos sintomáticos no que diz respeito das concepções acerca do inconsciente, infelizmente esses indivíduos representam a regra e não a exceção. A identidade com a psique coletiva pressupõe a mesma psique coletiva nos outros e isso leva a um implacável desprezo por tudo aquilo que for diferente, esse desprezo significa, segundo Jung, a asfixia do ser individual que é o elemento de diferenciação da comunidade. A asfixia do ser individual é perniciosa, pois conduz inexoravelmente a massificação, pois pedem-se os pontos de orientação e surge o desejo de ser conduzido por alguém.
A personalidade depende da existência de determinação, inteireza e maturidade. Vemos no desenho a determinação no que concerne a fidelidade ao caminho, ao desejo de se conseguir chegar ao X, mas as duas outras condições não estão presentes desde o início. Vemos isso com clareza no caso do comportamento do mago extrovertido, a inteireza e a maturidade são aquisições duramente alcançadas graças às provações do caminho, elas não estavam presentes nos jovens e, ainda apenas potenciais, mago e guerreiro. Raramente essas 3 características não estão presentes na infância ou juventude, mas são características que podem ser encontradas no indivíduo adulto, e isso o desenho expressa com admirável clareza.
E não é a criança, mas sim o adulto quem pode atingir a personalidade como fruto amadurecido pelo esforço da vida orientada para esse fim. Atingir a personalidade não é tarefa insignificante, mas o melhor desenvolvimento possível da totalidade de um indivíduo determinado (...) Personalidade é a realização máxima de um ser vivo em particular. Personalidade é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita possível, a tudo que existe de universal, e tudo aliado a máxima liberdade de decisão própria. (Jung, 2011, p.182).
O que vemos no desenho é justamente o que assevera Jung, que pela nossa ação é que se manifesta o que somos verdadeiramente. É preciso, todavia, evitar a inflação a que aludi anteriormente, pois a consecução da personalidade, em certo sentido, é um ideal inalcançável, pois a totalidade de nosso ser, o fato paradoxal e inefável que é chamado em psicologia de Selbst, não pode ser totalmente expresso por uma vida individual, mas a personalidade em sua totalidade existe como um ideal que indica o caminho a seguir. Mas essa meta tão difícil, esse “tesouro dificilmente alcançável”, a pérola da sabedoria, o que é preciso para escapar aos muitos e assustadores perigos do caminho? Jung responde a isso dizendo que primeiramente é preciso haver necessidade, sem necessidade nada muda. O desenvolvimento da personalidade não é um mero arbítrio, não obedece a desejos, ordens, ou considerações, mas apenas a necessidade. Ao se colocarem a caminho os dois, mago e guerreiro, extrovertido e introvertido, se deparam com a necessidade de lidar um com o outro, bem como os perigos do caminho, um passo em falso e seu destino seria funesto. Sem a necessidade, a dira necessitas, o que surge é apenas o individualismo, isto é uma atitude inadequada e impertinente que colapsa diante do primeiro problema. Outro fator de suma importância é que o desenvolvimento da personalidade é paradoxalmente um carisma e, ao mesmo tempo, uma maldição. Como consequência do caminho que leva ao desenvolvimento da personalidade o indivíduo se separa da massa, ou seja, sofre com o isolamento. Há um preço muito alto a se pagar para conseguir o tesouro que se esconde no misterioso X.
Como se enfrenta tantos e tais perigos? Como se suporta estar separado de tudo o que pode trazer proteção e consolo, como a pátria, família, igreja? Surge nesse ponto aquilo que Jung chamou, utilizando um termo grego, de pístis, que é a fidelidade a sua própria lei, uma lealdade confiante naquilo que é o seu caminho. A personalidade não pode desenvolver-se se não existir uma escolha consciente pelo próprio caminho, uma decisão moral. Todavia tudo isso apenas não basta, os perigos são tantos e tais que é preciso ainda mais para enfrentar essa senda tão íngreme e perigosa, aquilo que Jung chamou de designação “um fator irracional, traçado pelo destino, que impele a emancipar-se da massa gregária e de seus caminhos desgastados pelo uso”.
Personalidade verdadeira sempre supõe designação e nela acredita, nela deposita pístis (confiança) como em Deus, mesmo que na opinião do homem comum seja apenas um sentimento pessoal de designação. Esta designação age como se fosse uma lei de Deus, da qual não é possível esquivar-se. O fato de muitíssimos perecerem, ao seguir seu caminho próprio, não significa nada para aquele que tem designação. (Jung, 2011, p.187).
A penúltima parte da aventura é a chegada ao X e a tomada de consciência do que é o tesouro dificilmente alcançado, antes do retorno. Surge nesse ponto uma imagem poderosa e que encerra uma simbólica das mais interessantes, a imagem do espelho. A princípio o guerreiro se desaponta ao encontrar apenas um enorme X desenhado no chão de uma imensa sala vazia, todo aquele esforço, tantos anos de peleja e nenhuma moeda de ouro, nenhuma arma mágica ou uma joia sequer. Nesse momento, quando o guerreiro introvertido se joga no chão desesperado e frustrado o mago extrovertido vê o espelho e juntos chegam aquilo que Campbell chamou de “percepção simbolicamente apresentada”, ao invés do ouro vulgar, eles se deparam com o ouro mercurialis. Ao se verem refletidos no espelho eles percebem que o X sempre estivera em seus próprios corações. Na tradição japonesa, Amaterasu, zangada com seu irmão o intempestivo Sunao-o se escondeu numa caverna, sendo a kami do sol, o mundo foi lançado em trevas, um dos artifícios para atraí-la para fora da caverna foi postar defronte a entrada um espelho, quando ela foi atraída para fora, ao se ver refletida ficou fascinada com a própria imagem e disse “omoshiroi!” (面白い) que literalmente significa “faces brancas”, mas é usado como “fascinante”, “interessante” ou “engraçado”. Para enfrentar a Medusa, Atená presenteia  Perseu com um escudo de bronze polido como um espelho, com isso podia ver o reflexo da górgona sem ser petrificado. Em Coríntios 13:12 lemos “Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma forma com que sou plenamente conhecido.”. No conto de fadas dos irmãos Grimm “Branca de Neve”, a bruxa possui um espelho mágico, e é esse espelho que lhe revela que a mais bela é na verdade a jovem Branca de Neve e não ela. No conto de fadas de Hans Cristian Andersen, “A rainha da neve”, o diabo produziu um espelho enfeitiçado que não refletia as qualidades das pessoas, mas apenas os defeitos e os aumentava consideravelmente. Em Harry Potter, Harry se depara com um espelho mágico que reflete o maior desejo de quem o mira, o jovem bruxo se vê refletido ao lado de seus pais falecidos.

Segundo Von Franz, algumas vezes, experimentamos o inconsciente como se estivéssemos sendo observados, mas não de uma maneira pessoal, como se uma consciência superior nos observasse e julgasse, de uma maneira não intencional e que simplesmente reflete a nossa natureza, exatamente como um espelho. O inconsciente, em sonhos, visões e imaginação criativa, pode nos aparecer como se fosse um ser consciente e cheio de intenções, e outras vezes de maneira impessoal como um espelho. Centenas de evidências empíricas poderiam ser elencadas aqui para demonstrar tais fatos, especialmente a maneira como o inconsciente se manifesta nos sonhos, mas fiquemos apenas com a simbólica do desenho, onde o espelho reflete de maneira impessoal sua natureza e lhes revela o que se tornaram após uma vida de grandes aventuras e realizações seguindo o mapa de seu destino.
A simbólica do espelho toca em um ponto de extrema importância: a projeção. Além das impressões sensoriais, nossa imagem do mundo é formulada a partir de influencias internas. Todo inconsciente é projetado, asseverou certa vez Jung, e, como está nos evangelhos, em Lucas 6:42 “Como você pode dizer ao seu irmão: 'Irmão, deixe-me tirar o cisco do seu olho', se você mesmo não consegue ver a viga que está em seu próprio olho? Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão.”. Apenas através do processo de projeção podemos nos tornar conscientes de certos processos psíquicos inconscientes. O momento de se verem refletidos no espelho foi um momento de conscientização, como vimos antes, esse desenho, como a totalidade dos contos de fada, nos fala da paradoxal realidade da totalidade e centro regulado do psiquismo, segundo Von Franz.
É desse centro que partem os impulsos de um recolhimento meditativo da personalidade. Os conteúdos percebidos como projeções são reconhecidos, então, como partes integrantes da própria personalidade anímica. Desse modo, a energia psíquica neles contida aflui em direção ao próprio centro interior, fortalecendo sua intensidade de Ser. (Von Franz, 1997, p.184).
Ao se darem conta do que se tornaram, do verdadeiro sentido simbólico do tesouro, essa energia que é recolhida e aflui em direção ao próprio centro é simbolizada por uma espetacular explosão de luz, e como sabemos, é em toda parte um símbolo da consciência. Por fim, realizados, eles retornam ao início, agora eles são os heróis lendários, as grandes personalidades, e dão ensejo a uma nova jornada ao repetir o gesto do herói do início de suas jornadas, deixando cair o mapa com o misterioso X marcando o lugar onde aguarda o maior de todos os tesouros e a jornada que é a mais nobre e grandiosa aventura humana. Agora em idade madura, eles passam o bastão (ou o mapa) a novos aventureiros e se dirigem com tranquilidade ao por do sol, ao outono da vida, tendo adquirido o mais difícil de todos os tesouros: a personalidade.

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