sexta-feira, 5 de abril de 2013

Patolino O Mago



Recentemente em uma aula utilizei como recurso didático um desenho curto do novo Merrie Melodies sobre o Patolino para exemplificar alguns aspectos da Psicologia Complexa fundada por C. G. Jung, sendo o mais importante desses aspectos o fato de que a Psicologia Junguiana é fundamentalmente uma psicologia prática e que só tem sentido se puder ter uma utilização prática para poder ajudar a compreender o fenômeno da alma, soma-se a isso que um dos principais métodos empregados por Jung era o método empírico descritivo, o método das ciências naturais (com a diferença de que efetua a reconstrução/explicação em um meio de natureza igual), não a toa ele frequentemente se dizia empirista, logo o fenômeno, sua observação e descrição pormenorizada e a compreensão do seu contexto nativo são passos indispensáveis antes da possibilidade de tradução em termos psicológicos. Von Franz, ao falar da interpretação dos contos de fada, afirmou que o conto de fada é em si mesmo a sua melhor explicação, assim como o sonho é sua própria interpretação, e que seu significado está contido na totalidade dos temas que compõem o fio de Ariadne que liga a história. Assim como o conto de fadas possui um significado psicológico essencial, que é desvendável por meio das figuras e eventos simbólicos nele expresso, o modesto desenho do Patolino (Daffy Duck), também possui um significado psicológico essencial que pode ser percebido por meio de suas figuras e eventos simbólicos. Certa feita, Jung afirmou que os mitos são antes de mais nada manifestações da essência da alma, mutatis mutandis, também podemos ter vislumbres da essência da alma ao assistirmos o desenho do Patolino. Além disso, uma tal análise, demonstra aquilo que Jung afirmara no “O Espírito na Arte e na Ciência”, pois pode ser objeto de estudos da psicologia tudo aquilo que tiver como sua origem a alma humana, o que inclui o desenho em questão.
Justificado o interesse em pensar psicologicamente o desenho, convém salientar que antes de ser uma análise mais sisuda, tratou-se de um recurso didático para permitir aos alunos exercitarem o método e os conceitos aprendidos durante o curso, logo o principal interesse dessa pequena análise, que resulta dessa aula, é igualmente didático. O método de interpretação criado por Jung consiste de três passos, primeiro se estabelecem os paralelos ao fenômeno em questão, tentando circunscrever seu sentido e significado psicológico por meio de nossa própria experiência, pois os paralelos constituem uma amplificação. É preciso sempre recordar que a psicologia faz uso do ignotium per ignotius, ou seja, explica o desconhecido por algo ainda mais desconhecido. Como a compreensão que vamos ter do desenho do Patolino é um fenômeno psíquico de igual dignidade a do desenho, ou seja estamos reconstruindo o processo observado (o desenho) no próprio meio (a psique). O desenho do Patolino, assim como todo processo psíquico na medida em que pode ser observado já constitui em si uma teoria, daí a afirmação de Von Franz de que o conto de fadas possui um significado psicológico essencial, isto é uma concepção.  A tudo o que falarmos sobre o Patolino não passará de uma variante da mesma concepção, e é isso justamente que justifica metodologicamente a amplificação, pois a interpretação deve ser uma variante da mesma concepção, isto é, uma amplificação do contrário não passará de compensação ou polêmica e assim eliminará o processo a ser reconstruído.
O segundo passo é a compreensão do contexto próprio do fato observado, em nosso caso o desenho do Patolino, pois “o conto de fadas é em si mesmo sua melhor explicação”, ou em nosso caso o desenho animado, como já foi explicado o próprio desenho constitui uma teoria, uma concepção, e seu sentido psicológico essencial está expresso em suas figuras e eventos simbólicos, e nos atendo a essas figuras e eventos evita-se que nossa reconstrução seja uma polêmica ou uma compensação. O último passo é justamente a tradução em termos psicológicos.
Passemos então a uma cuidadosa observação do pequeno musical Patolino o Mago, a primeira coisa que salta aos olhos é o fato de que, aparentemente, qualquer coisa que misture RPG e Metal fica muito bacana! Mas vejamos, o que temos é a possibilidade de ver através dos olhos do Patolino, ou seja, temos acesso a maneira como a sua imaginação se sobrepõe aos fenômenos perceptivos, cum grano salis, temos acesso ao seu processo de apercepção e a constelação específica de complexos que predispõem a sua ação, mas eu me adianto de maneira indevida. Patolino passa a maior parte do tempo sem fazer nada, e ocupa a sua mente com seus devaneios de grandeza, onde ele é na realidade o Mago, o Místico Mago, o Mago Implacável, e não um Zé ninguém ranzinza e desempregado. No contexto do desenho, o Patolino vive de favor na casa do Pernalonga (Bugs Bunny), não consegue se manter em nenhum emprego, e se alimenta basicamente de açúcar e Tacos, sua “personalidade” consiste em ser ranzinza, ter um elevado e irreal conceito de si mesmo, e ser bastante propenso a mentira. Em um dos episódios o caráter caricatural de cada personagem é destacado quando o coelho mente para evitar viajar para o “festival do pêssego” com o gaguinho e todos (principalmente o Patolino) lhes dizem que esse não é o seu papel (mas o do Patolino), e essa inversão de papéis acarreta uma série de desventuras engraçadas para ambos (Pernalonga é preso na Albânia e o Patolino entra para os Fuzileiros Navais). Toda a fantasia consciente do Patolino possui um caráter fantástico, ele é um Mago e está cercado de criaturas místicas, e belas elfas o que contrasta com os cortes que mostram o “mundo real” em que ele está sempre sozinho, ao invés de estar desocupado ele está em uma missão para obter o poder supremo, o que parece francamente redundante visto seus poderes serem implacáveis, monstros e demônios desfilam impotentes diante dele. Os cortes entre imaginação e a percepção corriqueira mostram que ele brinca com as coisas corriqueiras fingindo que elas se dobram a sua vontade, no caso da escada rolante “as pessoas maravilhadas com seus olhos cheios de poder”, mas o que vemos são as pessoas meio estupefatas vendo o pato fazendo gestos estranhos, diferente de nós, eles não podem ver o mago, apenas o pato. Sua imaginação está repleta de imagens coletivas o mago (que remete a Wotan, ou mais hodiernamente, Gandalf e Dumbledore), o mago carrega um cetro, um objeto fálico que ressalta seu poder e potência bem como a sua autoridade, não é ocioso recordar de que uma das insígnias do poder real era o cetro. No antigo testamento o cajado de Moisés transforma-se em uma serpente que devora as serpentes (também cajados metamorfoseados) dos magos do faraó, Dumbledore  não possui um cajado, mas um equivalente, uma varinha e não qualquer varinha, mas a mais poderosa de todas, uma relíquia da morte. Gandalf, bem como os demais Istari possuem cajados e, quando ele se torna o Branco ele priva Saruman de seus poderes ao quebrar o seu cajado.
Quando ele está sonhando, Patolino dorme por três dias, enfrenta um demônio, e a despeito do poder do demônio que o fustiga com gelo, vento e rochas, “o mago é implacável” e ele o derrota facilmente. Certa feita Jung interpretou o sonho de um homem que saíra de uma origem humilde, numa vila do interior e por meio de seus esforços conseguira uma boa posição social, ele estava prestes a tentar voos mais altos ainda, mas fora impedido pelo aparecimento de uma neurose em que ele manifestava os sintomas do mal das montanhas, Jung comentou dois dos sonhos desse homem, em um deles ele enfrentava um monstro terrível, um “lagarto caranguejo” que se movia a sua frente e ele derrotava o monstro com assustadora facilidade usando um pedaço de madeira e depois ele mesmo se assombrava com o fato e observava maravilhado a tal “varinha”, o que lembra bastante a luta do Patolino com o demônio no “mundo dos sonhos”. Esse mesmo homem sonhara que estava de volta a sua vila e as pessoas o reconheciam e comentavam que ele não tinha mais aparecido, ele tenta pegar um trem, e o perde e vê que como a locomotiva vai rápido demais numa curva em S os vagões do final não conseguem acompanhar e acontece um desastre. Esse homem era um arrivista e não percebia que suas forças tinham se esgotado com a extenuante subida que já fizera, mas mesmo assim ele queria mais, como não soube interpretar a mensagem em seus sonhos, levou adiante seus planos e o desastre sobreveio. A similaridade não é debalde, salta aos olhos a desmedida e a inflação do Patolino que em sua imaginação é o Místico Mago. Jung também fala de outro sonho em que um homem modesto e humilde em sua vida vígil sonhava sempre que tinha jantares com grandes personalidades ilustres da história como Napoleão e o Papa, o Patolino desempregado e que mora de favor na casa do Pernalonga, em sua fantasia possui poderes místicos implacáveis. É interessante que quando vão se abrir os portais do poder infinito ele acorda e dá de cara com o Pernalonga, é interessante, pois ambos são figuras compensatórias um do outro, o que ressalta o aspecto sombrio de um para o outro. Também salta aos olhos o individualismo do pato, pois em sua fantasia aparecem apenas seres fantásticos e em momento algum as pessoas de seu convívio humano. Na fantasia de Patolino, se o encaramos por um momento como uma personalidade, para finalidades didáticas, percebemos com clareza que o pano de fundo psíquico inexpresso, o dado irracional existencial inalienável, se manifesta de formas compensatórias e complementares a consciência. O estado de inflação do pato fica ainda mais marcado por dois fatores, o termo surge inicialmente na psicologia de Adler e ele o toma de empréstimo do romantismo alemão como “semelhança a deus” o que fica claro na fantasia do Patolino. No processo de confronto com o inconsciente, a figura do mago, do herói ou do deus, é uma figura arquetípica, impessoal que Jung chamou de Personalidade Mana, e justamente nesse momento do processo surge o risco da inflação em virtude da possibilidade de se imaginar, de maneira equivocada, que se pode possuir o mana do inconsciente, o que é um obstáculo ao processo de conscientização. O inconsciente é um dado objetivo, ou seja não é um arbítrio, e em seus aspectos numinosos, não pode ser um objeto da consciência, pelo contrário, pode subverter a hierarquia da consciência e retirar o complexo do eu do seu centro.
A alusão do Patolino como sendo um “eu” é meramente didática, ele e os demais personagens do desenho são representações bastante caricatas de funcionamentos típicos, como ocorre por exemplo em personagens de contos de fadas, o tolo será tolo do começo ao fim do conto, assim como o esperto só resolverá tudo sempre por meio da esperteza, esse aspecto de caricatura os priva da profundidade que um ser humano real pode ter. mas mesmo assim, para fins didáticos, podemos perceber vendo pelos olhos do mago, o quanto os complexos podem interferir de maneira decisiva em nossa percepção de nós mesmos, dos outros e do mundo a nossa volta, caso fosse uma pessoa real, Patolino estaria preso de fatal identidade com a personalidade mana, com uma figura impessoal e coletiva, que o lançaria a alturas inumanas e o descolaria fatalmente do solo, não a toa o termo “inflação”, metaforicamente, ele engoliu o sol. Como exemplo de um funcionamento humano típico, podemos perceber além do caráter compensatório, e justamente por isso, que toda atitude de soberba e arrogância tenta compensar uma inferioridade interior, assim como uma suprema humildade e servilismo compensa um secreto desejo de poder, da mesma forma que tanto a subserviência quanto à atitude de desafio constituem dependência. Em um de seus escritos Jung ao se referir ao fanatismo e o fanático afirma que o fanático tenta apaixonadamente convencer os outros para sanar secreta dúvida interior. Vemos que o Patolino, que depende quase que totalmente do Pernalonga no desenho, em sua fantasia é completamente autossuficiente. O Patolino representa, em termos psicológicos, esse funcionamento ranzinza e arrivista, que aparece como caricatura divertida e inusitada no desenho, justamente esse aspecto caricatural permite a rápida compreensão do personagem tanto em termos intelectuais quanto afetivos.

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