O amor da forma a todo o
universo
Mesmo aos abismos do inferno
(Joseph Campbell)
Meu
jovem amigo Thiago Gimenes casou recentemente. Em virtude desse fato resolvi
escrever algo sobre o casamento como um presente ao meu camarada Thiago. Não
que eu seja um profundo conhecedor do assunto, talvez seja exatamente o oposto,
mas pretendo trazer de forma clara e concisa a opinião de homens bem mais
sábios do que eu como Campbell e Jung, para ajudar a iluminar o caminho que se
inicia para o Thiago. Eu desejo a ele toda a felicidade e, além de lhe regalar
com um espremedor de frutas ou algo do gênero, também lhe dedicarei esse
pequeno ensaio, pois às vezes ao desejo e ao pensamento positivo devemos somar
a ação concreta, nem que seja um modesto escrito.
Existem
muitos livros sobre esse tema, alguns bons outros nem tanto, sobre o tema do
relacionamento entre homens e mulheres então já se gastou um oceano de tinta.
Alguma dessa tinta poderia ter sido mais bem utilizada, e espero que esse não
seja o caso do meu esforço. Mas se faço alusão a esses fatos não é para
ressaltar qualquer característica de inovação desse texto, mas para mostrar que
se trata de um tema de suma importância, que afeta a vida de todos desde tempos
imemoriais. Trata-se de um problema humano geral. Certamente o relacionamento
do meu amigo possui suas peculiaridades e idiossincrasias. Todavia, como um
relacionamento humano e imorredouro, um aspecto coletivo de nossas existências
individuais, é possível falar das dificuldades que são comuns a todos nós.
Lembro-me vivamente das palavras de Horácio que chocaram a velha Roma sobre o
relacionamento entre homens e mulheres. Uma das coisas que disse o poeta foi
que nessa relação o homem não é a seta, mas o alvo, pois quando resolve
conquistar uma mulher é por que já foi conquistado por ela. Como se pode ver
por este exemplo e centenas de outros que poderiam ser elencandos, desde muito
antes do Thiago e a Jana se casarem já se escrevia sobre o casamento, mas esse
texto é dedicado especialmente a essa união.
Jung
certa feita discutiu o matrimônio como um relacionamento psíquico, nessa
perspectiva, todo relacionamento psíquico só existe se existir consciência,
esse é um pressuposto fundamental. Não pode existir relacionamento psíquico entre
dois seres humanos se ambos se acham em estado de inconsciência. Certa feita
Jung ao discutir o papel da consciência e o motivo desta tender ampliar-se e
aprofundar-se, e por que a natureza se dignou a inventá-la, disse “é porque sem
a consciência as coisas vão menos bem”. A liberdade pressupõe sempre a consciência,
sem ela não é possível o indivíduo se desviar do instinto e do automatismo inconsciente.
Felizmente, a medida da ocorrência da inconsciência total é muito pequena,
todavia não é nada desprezível a amplitude das “inconsciências parciais”, e a
sua existência também reduz o relacionamento psíquico.
Desde
a mais tenra infância quando a consciência emerge das profundezas da vida psíquica,
passamos por um processo gradativo de desenvolvimento espiritual que significa
ampliação da consciência e que, de uma maneira ou de outra, não cessa enquanto
vivermos. Ao falar aqui de consciência convém deixar claro que se trata da
consciência do eu, para me tornar consciente preciso me distinguir dos outros,
apenas onde existe essa distinção pode haver um relacionamento, infelizmente
(ou felizmente) essa distinção permanece repleta de lacunas e vastas regiões de
nossa vida psíquica podem permanecer inconscientes. Onde ainda reina a primitiva
identidade inconsciente entre sujeito e objeto, do “eu” com os outros, há uma
ausência completa de relacionamento.
Na
idade em que normalmente o jovem de nossa sociedade se casa, ele já tem uma
consciência do eu que vem se aprofundando e se ampliando desde a infância, todavia
possui ainda vasta região que permanece nas sombras, inconscientes. A despeito
de se considerar plenamente consciente de um ponto de vista subjetivo, o jovem
na maioria das vezes age levado por motivos inconscientes. Na prática ele possui
um conhecimento insuficiente de seus motivos e dos do outro. Um efeito pragmático
dessa inconsciência é que quanto maior for a sua extensão menor será a
capacidade de livre escolha no que diz respeito ao casamento. Alguns dos motivos
inconscientes mais poderosos são os que se originam da influência dos pais. A ligação
inconsciente com os pais dificulta a escolha do consorte, isso devido ao fato
de que “em regra, a vida que os pais
podiam ter vivido, mas foi impedida por motivos artificiais, é herdada pelos
filhos, sob uma forma oposta”. Em termos mais práticos, os motivos
inconscientes que limitam a liberdade do indivíduo e cerceiam sua vontade o
forçam a tomar um rumo na vida que compense o que os pais não realizaram na própria
vida. Jung gostava muito de citar um ditado Suíço de que “filho de pastor e
vaca de moleiro nunca dão pra coisa boa”, pois, por exemplo, pais
exageradamente moralistas têm filhos sem moral (no caso de o seu desenvolvimento
espiritual manter essas lacunas a consciência no que concerne a ligação com os
pais).
Outra
influência daninha é a inconsciência
artificial dos pais. Por exemplo, uma esposa que de modo artificial se mantém
inconsciente para não perturbar as aparências de seu casamento e sua tépida
harmonia doméstica, mas inconscientemente conserva o filho muito preso a ela
quase como um substituto do marido. A influência oculta dos complexos que os
pais negligenciaram em si mesmos ou acumularam afeta os filhos, pois a inconsciência
produz falta de diferenciação, e na prática isso leva o indivíduo a sempre supor
uma estrutura semelhante a sua no outro. Esse ponto é de extrema importância, É
essa diferenciação que permite uma ação moral, pois no momento em que alguém se
identifica com o elemento coletivo, ele tentará impor a todos os demais as
exigências de seu inconsciente, pois esse tipo de identificação acarreta um
sentimento de validez geral, nesse caso, ignorará completamente as diferenças
da psique individual dos demais, pois uma atitude coletiva pressupõe esta mesma
psique coletiva nos outros. A conseqüência disso é um menosprezo implacável diante
das diferenças individuais. Ou como dito anteriormente, a ausência de um
relacionamento psíquico genuíno.
Um
relacionamento pessoal (ou individual), ou seja, que se funda na
individualidade das duas pessoas envolvidas e não em sua identificação com o
inconsciente e onde impera o traço coletivo, só se torna possível quando se
tornar conhecida à natureza das motivações inconscientes e se tiver superado em
larga escala a identidade inicial. Um matrimônio raramente ou mesmo nunca se
desenvolve sem crises, pois “não é possível tornar-se consciente sem passar por
sofrimentos”. A maioria de nós fará de tudo para permanecer inconsciente, para
não se confrontar com aquilo que muitas vezes já conhece nos outros, mas
desconhece em si mesma, como disse meu amigo Filipe Jesuíno, apenas a dira necessitas ( a atroz necessidade) nos faz trilhar esse vale de lágrimas,
e a necessidade de se relacionar de maneira genuína com outro ser humano é um
dos motivos que podem nos fazer levar a sério o desafio de nos confrontarmos consigo
mesmos. É preciso sublinhar que essa busca por aquilo que Jung chamou de “autoconhecimento”
é repleta de percalços, pois o que comumente chamamos de autoconhecimento é um
conhecimento muito restrito e dependente de fatores sociais, por isso tropeça
em preconceitos afetivos e pretensões ilusórias. O autoconhecimento não é o
conhecimento da personalidade consciente do eu, mas sim o conhecimento do fato psíquico
real, das motivações inconscientes de que falava há pouco. O eu conhece apenas
o seus conteúdos e desconhece o inconsciente e seus respectivos conteúdos.
Campbell
afirmou certa vez “o casamento não é um caso de amor, é um ordálio. É uma
experiência religiosa, um sacramento, a graça de participar da vida de alguém”.
Para Campbell o casamento genuíno é o “casamento alquímico”, onde existe o
entrelaçamento das psiques e a educação recíproca que provêm desse
relacionamento. Nesse sentido percebemos a possibilidade do casamento, da relação
pessoal e consciente, nos levar cada vez mais longe na dura via do
autoconhecimento. Para Campbell, se você tem um programa ao se casar, vai logo
perceber que ele não funciona na verdade é “uma queda livre a maneira como você
lida com cada fato novo que acontece” um casamento bem sucedido é uma vida
inovadora a dois, ambos abertos, esqueçam a programação ou o que pensaram que
seria antes de casar. Deve existir um senso de responsabilidade para com a
outra pessoa, se ele estiver presente o casamento durará. Amor sem um senso de
responsabilidade não é amor, “tu és eternamente responsável por aquilo que
cativas” ensinou a raposa ao príncipe que veio das estrelas com o coração
partido. “dedicar-se a alguém, transformar seu destino em um destino duplo, é
tarefa para uma vida”. Essa responsabilidade tem um significado todo especial,
ela demanda um sacrifício, esse sacrifício somos nós mesmos, nossos desejos egoístas,
isso precisa ser destruído. Na alquimia o processo alquímico que culminava no
ouro, ou no lapis, a pedra filosofal,
era composto por: fermentação, amalgamação, desintegração e putrefação, só
assim ocorre a união. É preciso ter em mente que no casamento você não está se
sacrificando à outra pessoa, você está se sacrificando ao relacionamento, que
deve ser algo maior do que ambos. Essa união verdadeira depende da compaixão,
sem isso não pode haver um matrimônio. Compaixão é “a participação imediata no
sofrimento de outrem, a ponto de nos esquecermos de nós mesmos e de nossa própria
segurança para fazermos o que é necessário”. Essa é a questão central do
casamento “posso me abrir à compaixão?”.
Ao
nos casarmos assumimos a tarefa de com o outro e pelo outro olharmos para nós
mesmos, vencer empedernidos preconceitos, e caminhar para lançar luz às trevas
que habitam em nós e que estão sempre a espreita. Assumimos o lugar que outrora
foi de nossos pais, nos tornamos agora papai e mamãe e devemos viver isso em
sua plenitude, conseguindo cortar os laços de dependência infantil. E assumimos
o risco e a responsabilidade de amar alguém como a nós mesmos, a sofrer com o
outro como se sua dor ferisse a nossa própria carne, estamos diante da aventura
de nos modificarmos, como os reagentes que se unem e se modificam ao se tocarem.
Há algo de mágico e sublime no casamento que nossa sociedade parece não mais
enxergar, mas ainda está lá, para aqueles que tiverem os corações e mentes
abertos.
Eu
demorei mais tempo do que normalmente levaria para escrever esse pequeno mimo
ao meu casal de amigos, mas havia algo preso em mim que precisava estar livre
para que essas palavras realmente fizessem sentido. Falar do casamento é, sem
sombra de dúvida, falar do amor, e por mais que se fale sobre o amor jamais se
poderá dizer tudo, pois nada é mais universal na vida humana. Quando pensamos,
o fazemos com a cabeça, e algumas pessoas dizem que amamos com o coração, pois
eu digo que elas estão todas erradas. Quando somos tomados pelo amor, nós o
sentimos em nossa cabeça povoando nossos pensamentos e imaginação, o sentimos
em nosso coração, que parece estar tão cheio de algo estranho e sublime que enviar
sangue aos órgãos não passa de um detalhe. O amor se manifesta no estômago, ao
anteciparmos com um frio na barriga o momento em que vamos ver novamente a
pessoa amada, nos olhos quando eles brilham de um jeito que nunca brilharam
antes, na pele que parece antecipar o toque de quem se ama, o amor demanda o
homem todo! Todo o corpo e toda a alma são capturados por esse sentimento que possui
o estranho condão de nos fazer sentir vivos, mais vivos e mais ávidos por vida.
Enquanto caminhamos por ruas cinzentas, olhando rostos sem face que passam por
nós como espectros, com um buraco no peito e uma cabeça cheia de ideias,
movidos unicamente pela fome, pela inércia, ou por algum juízo tolo, não
sabemos o que é realmente estar vivos, não até termos nos apaixonados. Nesse momento,
o sentido genuíno da vida e do mundo ao nosso redor se manifesta com uma força
tão arrebatadora que mesmo o mais brilhante dos céticos, o mais loquaz dos cínicos,
o mais empedernido pessimista não poderia nos dissuadir de que o mundo é um
lugar maravilhoso, e que a vida vale a pena. Pensar sobre o amor é uma tolice,
assim como falar sobre ele sem se deixar tomar pelo enlevo divino que é essa
emoção, a mais poderosa que o ser humano pode almejar sentir. Que lamentável
passar pela vida sem ter se apaixonado! E que felicidade é perceber que duas
almas se uniram irmanadas por esse sentimento, duas almas que almejam mudar o
mundo e sem saber já o fizeram ao se apaixonar, ao aumentar o amor que existe
nesse nosso mundinho já o tornaram muito melhor. Felicidades meus amigos,
obrigado por terem se apaixonado, e sigam vivendo e sentindo da maneira mais
intensa possível, nós talvez só vivamos uma vez, e viver sem amor é insuportável.
Que lindo heráclito. Muito obrigado por esse texto tão massa e que diz mais ou menos o que somos e pra onde vamos. Valeu Mesmo! Quero esse texto num quadro na nossa casa. (Thiago)
ResponderExcluirFico muito emocionada, Heráclito! Obrigada pelas palavras tão sábias e num momento tao certo...espero revisitá-las sempre, pra oxigenar esse ciclo interminável que é o relacionamento amoroso entre as pessoas! Busco construir uma aliança feliz e conciliável entre a liberdade e consciência, entre o amor e a compaixão! Thiago Gimenes e eu ainda temos muito o que aprender! Obrigada mesmo, de coração! Beijos, Jana Alencar Eleuterio
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